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Correio Braziliense: 'Auxílio é importante, mas com responsabilidade', defende diretor da IFI

Felipe Salto admite a importância da criação de um benefício emergencial para os mais vulneráveis, de preferência, fora do Bolsa Família e de forma temporária. Ele também considera a vacinação essencial para a retomada econômica

Vicente Nunes e Rosana Hessel, Correio Braziliense

O economista Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal, demonstra preocupação com o excesso das propostas na lista de 35 prioridades apresentadas pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso. Para ele, a inclusão de pautas de costumes atrapalha o andamento dos trabalhos do Legislativo, pois as reais prioridades do país são a saúde e a economia. Nesse sentido, ele considera a vacinação em massa e o auxílio emergencial, que não provoque desequilíbrio fiscal elevado, os assuntos mais urgentes. “É preciso que o governo acelere essa questão da vacinação contra a covid-19 para que a economia possa ter uma recuperação, ainda que pequena, mas garantida, neste ano, porque ainda não está”, afirma.

Em relação ao auxílio, Salto acredita que o melhor formato seria fora do Bolsa Família, usando um modelo temporário e mais focado. Especialista em contas públicas, ele reconhece que o fato de o governo ter avançado pouco nas reformas limita uma ação mais contundente para socorrer os mais vulneráveis. No entender dele, os problemas estruturais do país continuam os mesmos e precisam ser encarados, pois a dívida pública está muito elevada e continuará crescendo por um longo período.

Pelas projeções da IFI, o país permanecerá com as contas no vermelho por pelo menos até 2030, num cenário conservador. Com isso, é mínimo o espaço para a criação de um novo auxílio emergencial sem comprometer o Orçamento e o teto de gastos — emenda constitucional que limita o crescimento das despesas pela inflação do ano anterior. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida por Salto ao Correio.

As reformas vão andar agora? Em uma lista de 35 itens, nada é prioritário.
Pois é. Reformas, nesse sentido genérico, não resolvem muito o problema. Precisamos saber mais claramente quais são as prioridades de verdade. A PEC Emergencial, por exemplo, dependendo do desenho, pode ajudar numa questão importante, que é o teto de gastos. A emenda 95, aprovada em 2016, prevê os chamados gatilhos, que seriam as medidas automáticas de ajuste. Mas a interpretação majoritária é de que seria necessária uma mudança de um trecho dessa emenda para poder acionar os gatilhos. O diabo mora nos detalhes. Não sabemos, ainda, qual será a proposta. E as outras reformas são relevantes, como a tributária e a administrativa, que estão na mesa. Contudo, é preciso saber exatamente quais são as propostas que o governo tem. No modelo brasileiro de presidencialismo de coalizão, a Presidência tem um papel fundamental e o Ministério da Economia, também. Eles são os definidores da agenda.

Nos últimos dois anos, não vimos um papel ativo do Planalto e do Ministério da Economia. A reforma da Previdência, por exemplo, só foi aprovada graças ao esforço do Congresso. Desta vez, o empenho vai ser maior? Por quê?
A reforma da Previdência tem um mérito importante do governo Michel Temer, que definiu essa pauta como prioritária e trabalhou muito por ela. Pelas razões políticas que sabemos, atrasou. Mas ele amadureceu a discussão. Fazia tricô com quatro agulhas. O governo atual conseguiu terminar, então, mérito dele. Agora, nas outras agendas, está tudo muito confuso. O Ministério da Economia, por exemplo, vive falando do imposto de transações financeiras. E, ao mesmo tempo, mandou uma proposta de reforma tributária para o Congresso prevendo a unificação do PIS e da Cofins. Em paralelo, o Congresso tem duas PECs sobre reforma tributária, a 45 (na Câmara) e a 110 (no Senado), que tratam de outro tema mais abrangente, que é o IVA nacional ou o IVA dual — um, para o governo federal e, outro, para estados e municípios. Esses temas precisam ser mais bem detalhados, porque não está claro.

E ainda há a covid...
No meio disso tudo, há as medidas que são ainda mais prioritárias. É preciso que o governo acelere a vacinação para que a economia possa ter uma recuperação, ainda que pequena, mas garantida, neste ano – porque ainda não está. Há uma incerteza muito grande, e isso tem a ver com a dificuldade de se ter um plano mais coeso e bem executado para a vacinação. Com isso, a pauta econômica e fiscal também se funde com a da saúde. E o Orçamento que abrange tudo isso está em aberto. Achei positivo o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, anunciar que a CMO (Comissão Mista de Orçamento) deve ser instalada nesta terça-feira. A Comissão vai ser o local para a discussão de muitas coisas, inclusive, o auxílio emergencial, e outras questões envolvendo gastos com saúde, como comportar tudo no Orçamento, que está sem margem alguma.

Será possível recriar o auxílio emergencial?
O auxílio emergencial é muito importante, porque, no ano passado, a população ocupada no mercado de trabalho diminuiu bastante, e, neste ano, vai se recuperar menos do que caiu. Então, haverá um contingente de pessoas que estão à margem de qualquer tipo de recebimento de renda formal ou mesmo no mercado informal. E a pandemia continua evoluindo. Algum auxílio, aparentemente, pelo que avaliamos, é possível que seja necessário. A questão é como fazer isso com responsabilidade fiscal.

Mas tem espaço no Orçamento?
Se olharmos a LDO para 2021, a despesa discricionária está em R$ 83,9 bilhões, sem contar os
R$ 16,3 bilhões de emendas parlamentares, que são impositivas. Esse é o menor nível de despesa discricionária da série. O risco de romper o teto é elevado porque a despesa discricionária, que é a variável de ajuste, está bastante exaurida. Para resolver essa questão, existem dois caminhos. O governo deveria eleger uma série de despesas que poderiam ser cortadas ou contingenciadas, inclusive, gastos obrigatórios. Claro que tudo isso tem um custo político. Se o governo for mexer em subsídio creditício, que é uma despesa que está sujeita ao teto, ele vai enfrentar aqueles que defendem cada um dos programas que estão lá nessa rubrica. Tem também mais de 50 mil cargos a título de reposição de aposentadorias de servidores previstos no PLOA. Só isso já tem um efeito de R$ 2,4 bilhões. O que seria importante é verificar despesas que podem ser cortadas para mostrar que está havendo um esforço fiscal. O outro caminho é via crédito extraordinário, que está previsto na Constituição para situações de imprevisibilidade e de urgência e, claro, que tem que ter critérios. Seria importante o governo sinalizar medidas compensatórias e não partir direto para uma coisa extrateto. Essas são as duas possibilidades.

É melhor retomar o auxílio ou ampliar o Bolsa Família?
O Bolsa Família é um programa de sucesso e bem avaliado, inclusive, pela academia. Ele beneficia muita gente com um valor orçamentário anual, em torno de R$ 35 bilhões, que é relativamente baixo para o benefício que ele produz (na economia). São discussões diferentes. A reformulação dos programas sociais seria importante, com melhor focalização, porque temos Benefício de Prestação Continuada (BPC), Bolsa Família, abono salarial, tudo para públicos diferenciados. Agora, a discussão do auxílio é mais imediata. É uma transferência que precisar ser feita, temporariamente, para resolver algo que não estava previsto, que foi a crise da covid-19 que se abateu sobre nós. O benefício pode ser resolvido pelo Bolsa Família. Mas o ideal é ter uma ação concreta direcionada para essa finalidade e, em paralelo, discutir a eficiência dos programas sociais, como melhor focalizar.

O Brasil precisa de um programa de renda mínima?
Nós já temos o Bolsa Família, que é um programa importante nesse sentido. Ele poderia ser ampliado. Agora, qualquer discussão a respeito de um novo programa precisaria ser pensada também do ponto de vista do equilíbrio fiscal. A dívida pública bruta, no ano passado, encerrou em 89,3% do PIB. Foi mais baixo em relação ao que se projetava, mas houve um efeito do PIB, que ficou mais alto por causa da inflação. Quando comparada à evolução da dívida, foram 15 pontos percentuais do PIB de aumento em relação aos 74,3% de dezembro de 2019. É uma dívida gigantesca, que vai continuar crescendo ainda por algum tempo. Por isso, o governo precisa anunciar um plano de médio prazo para mostrar quando essa relação dívida-PIB voltará a ficar sustentável. Essa falta de um horizonte para as contas públicas me preocupa até mais do que as questões de curtíssimo prazo. O momento é de exceção, que exige medidas excepcionais.

As propostas apontadas pelo governo são paliativas?
A PEC Emergencial é uma tentativa de dar uma sobrevida ao teto de gastos, permitindo acionar os gatilhos da regra. É claro que o teto, nas condições atuais do cenário base, não vai aguentar até o 10º ano, quando está previsto na emenda a alteração do indexador. Não podemos perder de vista que os problemas estruturais continuam, infelizmente, sendo os mesmos de 10 anos atrás: uma despesa obrigatória grande e crescente e um espaço para investimento cada vez menor. O Estado vem perdendo capacidade para investir e está aumentando, cada vez mais, a pressão das despesas. Claro que parte dessas despesas também tem a ver com a melhora de vida das pessoas, porque tem saúde e gastos sociais, mas será preciso uma reestruturação muito mais complexa do que apenas a discussão da PEC Emergencial.

Mas a PEC Emergencial ainda está em pé? Ela foi enviada ao Congresso no fim de 2019.
Quando o governo enviou ao Congresso essa PEC Emergencial em 2019, ele prometia que ela seria aprovada até dezembro daquele ano. Então, está muito atrasada essa previsão que o governo tinha.

Arthur Lira e Rodrigo Pacheco disseram que a reforma tributária pode ser aprovada em até oito meses. Acredita nisso?
A questão tributária é a mais complexa de todas, porque envolve várias trincheiras de batalha. Tem a trincheira dos estados e municípios contra a União, porque, nessa situação em que todo mundo está, o desejo dos entes federativos é ter mais receita e não menos. E tem, também, a questão da autonomia, porque, com a criação do IVA, estados e municípios perderiam o ICMS e o ISS. Não é uma questão trivial, ainda que as compensações fossem feitas e fosse criado o mecanismo automático para a distribuição das receitas que seriam arrecadadas centralmente. Mas essa é a primeira trincheira. A segunda é a setorial. O setor de serviços ainda não engoliu essa questão de ter aumento de tributação. Não se fala muito que esse segmento é subtributado. Só que é difícil sair de um equilíbrio ruim para um equilíbrio melhor, em que a indústria seria menos tributada com o IVA e o setor de serviços, que não tem uma cadeia de produção tão longa, tem dificuldade de acumular crédito. E, como vai tudo para o destino, obviamente, vai ter um aumento de tributação. E tem a terceira frente de batalha que é o fato de a União e o Ministério da Economia quererem aumentar a receita. O próprio ministro Paulo Guedes vive falando no imposto de transações financeiras, ou seja, está implícito aí um ajuste pelo lado da receita também. Isso é muito complicado. Acho positivo que as novas lideranças do Congresso indiquem que isso é uma prioridade, mas não vai ser fácil. Há pouco tempo para conseguir avançar nesse tema tão complicado.

Passados dois anos, é possível considerar que o governo Bolsonaro é reformista ou é mais discurso?
Eu acho que não é um governo reformista. O Ministério da Economia, sob a liderança do Paulo Guedes, tem essa intenção. Começou com aquela história das privatizações, de reduzir o tamanho do Estado, de fazer um enxugamento de gastos... Ele até prometeu zerar o deficit primário em um ano, mas percebeu que era impossível. Na verdade, o discurso da área econômica vai numa direção mais liberalizante, mas, na prática, o governo vai em outra direção. Até agora, com mais da metade do mandato, além da reforma da Previdência, não teve mais nada de relevância aprovado. O que podemos constatar é que as agendas que foram consideradas prioritárias, em algum momento, ainda não avançaram.

O presidente Bolsonaro já deixou claro como quer que a pauta de costumes ande, como excludente de ilicitude, ampliação ao acesso ao porte de armas... Isso é prioridade quando o país está atrasado na vacinação e ainda não tem Orçamento aprovado? Há riscos dessa agenda de costumes se sobrepor a das reformas?
A agenda de costumes que está refletida na lista de prioridades do governo é uma coisa que já se sabia que era intenção do presidente. E, claro, ela ocupa espaço e tempo no Congresso. Mas o que mais me preocupa na lista de 35 prioridades é que são muitos itens e não se sabe, ao certo, qual é a pauta prioritária e o que virá primeiro. Agora, as agendas de saúde e de economia deveriam ser prioritárias.

O cenário básico da IFI prevê deficit primário até 2030. É possível que fique pior?
O nosso cenário atual prevê que o deficit público diminuirá aos poucos até 2030, quando ainda estará negativo, em torno de 0,8% do PIB. Nos próximos anos, o quadro vai melhorando, porque a receita aumentará com algum crescimento do PIB, de 2% a 2,5% na média da década. E, do lado da despesa, nossa previsão não considera nenhuma, digamos assim, estripulia. O nosso cenário é bastante conservador. E, ainda assim, não é suficiente para vermos o superavit primário voltar em um período mais curto. Isso só acontecerá depois de 2030.


Fernando Gabeira: Roteiro para tempos difíceis

O Congresso caiu nas mãos de Bolsonaro. É o fato da semana.

Um bolsonarista escreveu no Instagram que me ver chorar na TV não tinha preço. Usava o termo chorar em sentido figurado. Certamente expressei tristeza com a vitória de Arthur Lira, coroada com uma festa para 300 pessoas, sem máscaras, numa mansão do Lago.

Mas se, como no poema, o bolsonarista nunca conheceu quem tivesse levado porrada, muito prazer, me apresento.

Situações difíceis não devem nos intimidar, embora seja assustador pensar na continuidade de um governo que mata as pessoas com seu obscurantismo e destrói vorazmente os recursos naturais de um dos mais belos países do mundo.

Muita gente acha que Bolsonaro tornou-se mais forte em 22, porque controla o Congresso. Temer controlava, mas jamais foi uma alternativa eleitoral viável.

As coisas não passam por aí. Pelo contrário, as relações de toma lá dá cá, as diárias afirmações de que é dando que se recebe, apenas reforçam a aura de decadência que envolve a política no Brasil.

A ideia de uma frente não se esvai porque alguns setores saltaram do barco. O que a fortalece, de fato, não são as letrinhas que designam partidos, nem necessariamente o número de deputados e senadores que a compõem.

O importante para uma oposição é compreender essa nova relação de forças no Congresso e olhar mais para fora, buscar o apoio da sociedade, batendo em alguns pontos essenciais. Um deles é denunciar o estelionato eleitoral de Bolsonaro, separando-o das pessoas que acreditaram em seu discurso.

Os outros estão claros na própria conjuntura: apoio emergencial para milhões de necessitados, defesa da ciência na condução da política contra a pandemia e luta para que todos se vacinem de forma eficaz e segura.

Esse encontro com a sociedade poderá ser mais amplo ainda na medida em que a vacinação avance. Muitos discutem as eleições de 22, quem será candidato, quem vai vencer.

É um tema inescapável. No entanto, daqui até lá, há muita luta, muitas peripécias. Os nomes devem surgir desse processo. Não creio em candidaturas que ficam abrigadas da tempestade e aparecem apenas no momento eleitoral.

Bolsonaro, Witzel e outras figuras se elegeram num momento de decadência da política. Nas próximas eleições, possivelmente viveremos um clima em que não só a política, mas também as novidades radicais decaíram. Daí a importância do que sobrou de resistência, de como se mostrará no processo, sua habilidade para unir, coragem para encarar o governo de frente.

Grande parte dos analistas descarta o impeachment quando um governo passa a dominar o Congresso. É razoável. Mas não se pode ver o Congresso como um bloco impermeável à pressão popular.

É preciso trabalhar com todos os cenários, sabendo que são tempos quase tão difíceis como no período da ditadura. É verdade que agora existe liberdade de imprensa, mas, no entanto, desapareceu um clima mais fraterno entre os opositores.

E isso não apenas porque a história moderna do Brasil colocou em campos opostos os que lutaram pelas eleições diretas.

O debate político não é mais mediado exclusivamente pela imprensa profissional. Ele vive noutras plataformas, deformado por fake news e num clima de agressividade verbal sem precedentes.

Um agradável lugar-comum que sempre vale a pena repetir: a história não coloca problemas que as pessoas não possam resolver.

É urgente evitar mortes e, simultaneamente, desenvolver as lutas que possam fortalecer uma vontade de tirar o Brasil dessa condição de pária sanitário e ambiental, dominado pelo obscurantismo.

Perdemos o Congresso, é verdade. Mas algum o dia o tivemos? Por enquanto, a parte que nos toca é uma modesta minoria. Vamos com ela, com o que sobrar, pois resistir ainda é melhor do que tudo.


Fernando Abrucio: Não verás país nenhum com Bolsonaro

Seguindo essa toada, o Brasil aprofundará a sua crise e passará por uma longa travessia de pelo menos dois anos

O Brasil está à deriva e deverá passar por uma longa travessia até o fim do governo Bolsonaro, com provável piora de sua situação. Dois fatos levam a esta constatação. De um lado, a crise já era grave em 2018 e aprofundou-se nos últimos dois anos, numa proporção gigantesca. O país precisaria mudar muitas coisas, algo que só é possível com um diagnóstico preciso dos problemas, trabalho árduo de equipes bem preparadas e muito diálogo político e social. E aqui entra o outro lado do cenário atual: o presidente não está preparado para combinar essas qualidades. O pior é que praticamente não há chance de ele modificar seu estilo de governar.

Esmiuçando melhor este diagnóstico geral, cabe inicialmente mostrar o tamanho do buraco em que o país está. Há uma combinação de crise sanitária, estagnação econômica, aumento da desigualdade social, redução da legitimidade dos políticos junto aos cidadãos e uma piora gigantesca de políticas públicas essenciais. Parte desse processo foi uma herança deixada para o atual governo. Todavia, Bolsonaro não só não conseguiu avançar no combate desses problemas, como piorou a situação geral e trouxe novas dificuldades. Por este caminho, o Brasil estará pior daqui a dois anos, no fim de seu mandato.

A afirmação de que a manutenção do modelo bolsonarista empurrará todos ladeira abaixo precisa de melhor qualificação. Vamos aos fatos. Primeiro, Bolsonaro foi uma tragédia no combate à pandemia. Isso pode ser constatado pelo número absurdo de casos e mortes, inclusive em perspectiva comparada, bem como pelas medidas preconizadas e pelas lacunas governamentais. Nenhum governante mundial foi tão contundente na defesa do negacionismo. A vacinação demorará para ter impacto no Brasil e os próximos meses deverão de ser de crescimento da covid-19. Casos trágicos como o de Manaus poderão se repetir.

A situação econômica ainda pode ter uma chance de melhorar, especialmente no ano que vem. Menos pelo que o país tem feito e mais pelas políticas expansionistas que os Estados Unidos e a China deverão adotar. Eis aí uma notícia auspiciosa. Não obstante, o Brasil poderá aproveitar bem menos essa bonança, porque não há grandes perspectivas de melhora, até 2022, da produtividade, da taxa de investimento e do consumo da população.

Não me parece que o governo será capaz de fazer uma mudança fiscal mais ampla do que o atual feijão com arroz que o teto de gastos gera. O ministro Paulo Guedes tem enviado uma série de propostas ao Congresso, mas poucas são aprovadas. Geralmente, a última metade do mandato não é o melhor momento para dar uma arrancada em reformas estruturais, especialmente porque Bolsonaro tem mais apetite por outros tipos de mudança legislativa, como a ampliação do uso de armas pela população e o Estatuto da Família. Esta é a agenda para a qual usará sua influência política, com muitos cargos e verbas ao Centrão.

Para completar esse panorama econômico, o desemprego tende a continuar alto, talvez com algum alento no mercado informal, que gera menos renda. Parte dos ganhos do país virá da exportação de commodities, como tem ocorrido há 20 anos. Mas, diferentemente de outros momentos do passado, como no Plano Real e no governo Lula, definitivamente não somos a bola da vez para os investidores internacionais. Alguma coisa pode vir das concessões em infraestrutura. Só que a imagem internacional do Brasil sob Bolsonaro atrapalha esse movimento. Os erros em políticas ambientais e de direitos humanos, bem como o isolacionismo diplomático, vão custar caro.

A crise social tende a aumentar nos próximos dois anos. O auxílio emergencial foi uma tábua de salvação inventada pelo Congresso que caiu no colo de Bolsonaro. Terminado o Orçamento de Guerra, caberia ao governo federal pensar em uma estratégia mais ampla de combate à desigualdade social. Pelo tipo de pensamento mágico que orienta a cabeça do presidente, não há perspectiva de se ter um plano estruturado para as políticas sociais. O aumento da desigualdade nos principais centros urbanos vai criar um cenário distópico, típico de filmes como “Mad Max”.

Políticas públicas essenciais para o país também estão à deriva. O MEC vive seu pior momento em 30 anos e a abstenção recorde no Enem revela uma política educacional trágica, que vai aumentar a desigualdade entre os alunos. O Ministério do Meio Ambiente é contrário à política ambiental. Com o atual titular, não há chances de melhora, até porque o bolsonarismo prometeu a madeireiros e garimpeiros que eles teriam tudo aquilo que os “ecologistas” tiraram deles nas últimas décadas. Sobre a política indigenista é melhor não comentar. Marechal Rondon deve estar se remexendo no túmulo.

No plano político, duas trajetórias suicidas foram traçadas. No âmbito externo, a política internacional levou o Brasil a um isolacionismo inédito, particularmente depois da vitória de Joe Biden nos Estados Unidos. Quem são nossos aliados? De um modo ou de outro, China, União Europeia, os vizinhos latino-americanos e agora os EUA, no mínimo, desconfiam do governo brasileiro e, na pior das hipóteses, mantida a lógica bolsonarista, vão certamente nos retaliar.

Desde o fim da ditadura militar, nunca um presidente ameaçou tanto a democracia como Bolsonaro. Num dia, propõe o voto impresso para tumultuar o jogo político e acusar os outros de fraude, já preparando um possível golpe caso perca a eleição. Noutro, diz que as Forças Armadas são o alicerce do regime democrático, quando qualquer manual de ciência política diria que o povo e as instituições é que dão legitimidade à ação dos militares, e não o contrário. O bolsonarismo não acredita nos valores básicos democráticos, como o pluralismo, a crença nas regras do jogo e os freios e contrapesos entre os poderes. Em seu comportamento mais benigno, Bolsonaro aceita o apoio de políticos medíocres que se deixam comprar por cargos e verbas, contanto que eles não interrompam sua estratégia autoritária mais profunda.

A rota do bolsonarismo pode ser interrompida, com o presidente mudando seu estilo de governar, diriam alguns. Os mesmos que acreditaram que Paulo Guedes faria privatizações em massa e reformas profundas no Estado; que Sergio Moro seria o guardião do republicanismo de todos, inclusive da família Bolsonaro; que o general Santos Cruz garantiria uma participação parcimoniosa das Forças Armadas no poder, que nunca aceitariam obedecer ordens absurdas como receitar cloroquina em massa para uma população que nem oxigênio tinha; e, como última esperança dos ingênuos, que o Centrão evitaria que o presidente trilhasse por caminhos autoritários. Sinto informar: a era da esperança pela mudança da natureza do bolsonarismo acabou.

O núcleo duro das crenças de Bolsonaro o leva a preferir a guerra cultural, uma política populista e autoritária, como também ser mais fiel ao seu eleitorado mais radical. Na linha contrária, ele não vai optar claramente por políticas públicas baseadas em evidências e na opinião dos especialistas, nem por um estilo político baseado no diálogo e na moderação. Crises políticas maiores podem resultar em concessões e alguns recuos, como aconteceu em junho do ano passado, após a prisão de Fabrício Queiroz. Mas quanto mais as eleições presidenciais se aproximam, mais o presidente acredita que precisa manter a aliança com seus alicerces básicos, em termos de ideias, grupos políticos e modos de atuação.

Em outras palavras, o roteiro básico daqui para frente tende a ser de poucas reformas profundas - se houver alguma -, conflito constante com os possíveis adversários políticos, inclusive fortalecendo o gabinete do ódio, discursos e propostas moralistas para agradar ao eleitorado conservador e, sobretudo, ameaçar a todos que o criticarem. É possível que haja algum populismo fiscal para distribuir alguma renda aos mais pobres e obras para o clientelismo do Centrão, mas o essencial para Bolsonaro é montar um exército de apoiadores entre trabalhadores informais, policiais militares, evangélicos e milicianos puros, sempre dizendo que as Forças Armadas estarão com ele em qualquer situação.

Seguindo essa toada, o Brasil aprofundará a sua crise e passará por uma longa travessia de pelo menos dois anos. O momento é similar ao do governo Figueiredo, quando o projeto dos militares já tinha fracassado, porém as forças em prol da democracia não tinham força suficiente para mudar a lógica do poder. Foi nesse momento, em 1981, que Ignácio de Loyola Brandão escreveu o livro “Não Verás País Nenhum”, uma ficção distópica que caracterizava o Brasil como um país marcado pelo autoritarismo, pela tragédia ambiental e pauperização da população, tudo isso ambientado numa São Paulo caótica. Nada mais atual do que essa história.

O Brasil sofreu muito, inclusive com atentados terroristas de milicianos incrustados no Estado autoritário, mas superou aquele momento autoritário. Para isso, precisou da aliança de muita gente diferente, como mostram as fotos dos comícios das Diretas-Já, com Montoro, Lula, FHC, Brizola e Ulysses abraçados e unindo-se pela mudança. O país provavelmente terá de fazer isso daqui a dois anos, embora possa fazê-lo agora em nome de um impeachment que tem razões de sobra para ocorrer, em especial a garantia da sobrevivência do país.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas


Elio Gaspari: Bolsonaro e Mourão mostram o caos

O general e o capitão tiveram posições diferentes, mas fazem parte do mesmo pandemônio

Pelos mais diversos motivos, 57 milhões de pessoas votaram em Jair Bolsonaro. O general da reserva Hamilton Mourão fez mais que isso, aceitando ser o seu vice-presidente. Hoje os dois mal se falam e não se ouvem.Mourão tinha grandes expectativas para si e para o governo. Nas suas palavras:-- Eu me vejo como um assessor qualificado do presidente, um homem próximo ali, junto dele, dentro do Planalto, ali do lado dele, nossas salas serão juntas. Não seremos duas figuras distantes, como já aconteceu, um para o lado e o outro para o outro lado. Aquelas reuniões que ocorrem ali, eu estarei presente.Ou ainda:-- Posso atender à necessidade de coordenar trabalhos que sejam interministeriais. Ele pode me delegar essa tarefa. Por exemplo, em projetos de infraestrutura, de parceria público-privada, coisas que a gente tenha algum conhecimento.

Deu em nada. Hoje, Mourão reconhece que "faz algum tempo" que não conversa em particular com Bolsonaro. Era apenas ilusão de um general ajudando a campanha do capitão. Mourão sempre soube onde se metia.

O grande Stanislaw Ponte Preta ensinou que o vice-presidente acorda mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada. Marco Maciel (vice de FHC) e José Alencar (vice de Lula) seguiram a lição, cada um à sua maneira.

Mourão agora revela que está "pronto para acompanhar Bolsonaro caso ele deseje e vá ser candidato em 2022, porque tudo é possível daqui para lá".

Tudo é possível, mas com recessão, uma pandemia e tanta maluquice solta por aí, o que o país menos precisa é de uma crise entre o presidente e seu vice. Michel Temer detonou Dilma Rousseff, mas sua origem e força política estavam no Congresso. Mourão veio da caserna e, como muitos militares, entrou numa campanha e caiu num governo que pouco tem a ver com o que esperava. O general Eduardo Pazuello não sabia o real tamanho da encrenca em que se meteria. Militar, ele é capaz de achar que manda em quem o ouve e obedece ao que determina o presidente. Melhor destino teve o paisano Nelson Teich, que aceitou o ministério da Saúde e foi-se embora 28 dias depois, salvando sua biografia de médico.Tudo é sempre possível, mas há o tudo indesejável. O capitão Bolsonaro governa criando conflitos.Sua última proeza foi a construção de uma briga sanitária que, se não for aplacada, caminha para um desfecho desfavorável ao Planalto no Supremo Tribunal Federal. Supremo esse no qual ele já achou que poderia "intervir".

O vice-presidente tornou-se um personagem secundário nessa usina de conflitos, mas é parte dela. Bolsonaro pode ter exagerado quando disse que "Mourão é mais tosco do que eu", mas os dois se conhecem melhor do que a maioria das pessoas que votou neles.

Em dois anos de coabitação palaciana, o general e o capitão tiveram algumas posições diferentes mas, no essencial, fazem parte do mesmo pandemônio. Bolsonaro não fez de Hamilton Mourão um "assessor qualificado" e o general deslizou para uma condição de eventual contraponto.

Como ensinou o poeta, no vasto mundo das confusões de Bolsonaro, se ele se chamasse Raimundo, seria uma rima, não seria uma solução.