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Vinicius Torres Freire: Comando do Congresso se torna cúmplice do matadouro de Bolsonaro

Em um país sob risco de ficar sem remédio e UTI, lideranças não reagem a Bolsonaro

No dia mais sombrio da epidemia no Reino Unido, soube-se da morte de 1.253 pessoas. Quer dizer, mais de 18 britânicos mortos por milhão de habitantes do país. No Brasil, seria o equivalente a 3.913 mortes, considerada apenas a diferença de tamanho da população, sem outros ajustes estatísticos. O Reino Unido levou mais de 20 dias para reduzir o número de mortes diário à metade.

No Brasil de agora, anotamos nas nossas lápides mais de 2 mil mortos por dia. Isto é, mais de 9 mortos por milhão de habitantes (na média móvel de sete dias). Algo menos que os picos da Alemanha em janeiro, da Espanha em fevereiro ou da França em novembro. Esses países levaram mais de um mês para reduzir o morticínio à metade. Isso porque, mal ou bem, têm governo. E aqui?

Por sabotagem de Jair Bolsonaro, pela pobreza, pela desigualdade ou por diferenças na interação social, as medidas de restrição tendem a funcionar menos. Mesmo se a onda de mortes diminuísse como nos grandes países europeus, ainda teríamos mil mortes por dia em meados de abril. Mas o Brasil nem sabe se chegou ao pico do monte diário de cadáveres. No presente ritmo da epidemia e pelo número de leitos por ora disponível, não haverá mais UTIs em uns dez dias, antes do fim de março.

O clamor do desastre era alto nesta quinta-feira. Os remédios necessários para entubar os doentes estariam para acabar em 20 dias, noticiou Mônica Bergamo nesta Folha. Associações de prefeitos, de secretários de saúde, de hospitais privados, de farmacêuticos ou de médicos intensivistas avisavam do colapso dentro do colapso. A cidade de São Paulo vai praticamente parar na segunda quinzena de março, pelo menos (a economia paulistana faz 11% do PIB do país).

O Brasil vai para o matadouro bolsonariano quase em silêncio político, sem reação maior de sua elite. Os governadores tentam administrar a crise, na ausência de governo federal, isso quando não têm de se defender na guerra civil midiática promovida por Jair Bolsonaro. Os estados tentam articular uma vaga e frágil tentativa de coordenação nacional. Mas parece haver um acordo para evitar o confronto com o genocida.

As lideranças do Congresso estão à beira de se transformar em cúmplices de Bolsonaro. Os presidentes de Câmara e Senado contemporizam e querem manter de pé o acordão que os colocou nos comandos do Parlamento.

Rodrigo Pacheco (DEM-MG), do Senado, fez declaração protocolar de interesse de agir: “Sentar à mesa, planejar e agir o mais rapidamente possível. Isso é fundamental! A situação crítica do Brasil exige a coordenação do presidente da República, ações do Ministério da Saúde e toda colaboração dos demais Poderes, governadores, prefeitos e instituições”.

Arthur Lira (PP-AL), da Câmara, menos do que isso: “Os brasileiros precisam ter esse conforto, e nós precisamos evitar essa agonia e esse vexame internacional... Então nós temos, sim, que nos unir, sem estar apontando justamente culpados”.

Isso é conversa fiada.

Parece que o apoio restante a Bolsonaro, 30% do povo, serve de baliza para justificar a contemporização oportunista com a morte, ao menos na política de governistas, agregados ou cúmplices. O possível efeito de uma convulsão política na economia, afora os colaboracionismos animados, parece o motivo do imobilismo da elite econômica. A morte tem um preço que, parece, vale pagar.

Não é fácil entender os motivos da apatia ou da cumplicidade. Mas era certo que neste 18 de março de 2021, o Brasil se dirigia quase sem reação para o abatedouro de Jair Bolsonaro.


Eliane Cantanhêde: Bolsonaro, agora 'Capitão Gotinha', muda a retórica, assume as vacinas e vai abrir as torneiras

O Brasil vai assistir a uma guerra do populismo de esquerda contra o populismo de direita, com Lula ressentido e disposto a tudo e Bolsonaro cada vez mais sem escrúpulos, massacrando os fatos

À deriva, à mercê do coronavírus e exportando novas cepas para o mundo, o Brasil vai assistir – e sofrer – uma guerra do populismo de esquerda contra o populismo de direita, com o camarada Lula ressentido e disposto a tudo e o capitão Jair Bolsonaro cada vez mais sem escrúpulos, massacrando os fatos. Acaba de surgir o "Capitão Gotinha", o maior defensor da vacina no planeta. Acredita quem quer. E o pior é que tantos acreditam em qualquer coisa.

Os dois lados estão armados até os dentes e só nos resta torcer para que a imagem de retórica não vire realidade na era de um presidente com delírios autoritários e fetiche por armas. Depois de papai Jair combater incansavelmente as vacinas, a família presidencial assume um slogan oposto: "Nossa arma agora é vacina". Mas deixaram rastro, fantasiando o doce Zé Gotinha de miliciano, com um fuzil em forma de seringa. Argh!

E a deputada Carla Zambelli (PSL-SP)? Ao assumir a emblemática Comissão de Meio Ambiente da Câmara, a bolsonarista posou para o Estadão com cara de brava e... uma pistola 380. Não, não é contra desmatadores, traficantes, invasores de terras indígenas e criminosos em geral. Seus alvos são as ONGs!

Tudo isso num ambiente contaminado pelos recados velados e ameaças explícitas de Bolsonaro após a entrada de Lula no campo de batalha. Nervoso, o presidente deu um salto triplo carpado a favor das vacinas e atacou, além de Lula, governadores inimigos, como João Doria (SP), e amigos, com Ibaneis Rocha (DF). E acenou com insurreição, saques em supermercados... Eu, hein?! É convocação? Guerra civil?

Lula calibrou milimetricamente o confronto com Bolsonaro e a bandeira branca para o resto, enquanto Bolsonaro perdeu as estribeiras. Mas, afora táticas e estratégias, a polarização vai mostrar o quanto os extremos se aproximam, se parecem e se alimentam mutuamente, inclusive com métodos semelhantes de destruição de adversários, tratados como inimigos, e causas surpreendentemente comuns, camufladas pela ideologia.

PT e Bolsonaro, unha e carne no cerco a Sérgio Moro e à Lava Jato, trabalharam pelo mesmo candidato à presidência do Senado e estavam muito mais próximos na disputa na Câmara do que parecia à luz do dia. Agora, esquartejam a Lei das Improbidades – não para proteger os probos. Na campanha, sítio, triplex, rachadinhas e mansões milionárias farão a festa em palanques e na internet. Pior para Lula, que carrega os fardos do mensalão e do petrolão.

Na economia, PT e bolsonarismo caminham de mãos dadas no "nacionalismo" anacrônico, estatizante e corporativista. As corporações petistas estão na educação, cultura, ambientalismo, sindicatos. As bolsonaristas são mais "hard": militares, policiais, reinos universais, quartéis e cultos. (Lula, lembre-se, jamais teve arroubos contra a democracia, ao contrário de seu oponente, com esse exército.)

Os dois lados douram a pílula para atrair o capital, mas gostam mesmo da boa e velha mão pesada em Petrobrás, BNDES, BB, Caixa, Eletrobrás e Correios. Nada como manipular preços politicamente, alardear a "função social" das estatais e ter o Centrão a bordo. Mas, quando entra o "social", a balança pesa a favor de Lula. Além de correr desesperado atrás de vacinas, Bolsonaro será obrigado a mudar a retórica, acampar no Nordeste e abrir as torneiras.

Se o centro é uma incógnita, o Centrão (ou direitão) é fácil. Quem está com Bolsonaro e já esteve com Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer irá para onde os ventos soprarem. Como define um expert em Centrão, eles são garçons diligentes e cuidam bem da louça suja, não estão nem aí se o menu é comida chinesa ou pizza napolitana. Querem boa remuneração e nacos de poder, que Lula, Bolsonaro e centro dão de bandeja. Quem dá mais?


Pedro S. Malan: 2022, o ano que vem chegando mais cedo

Aung San Suu Kyi: ‘O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem’

 “Creio que nenhum homem tem plena consciência das engenhosas artimanhas a que recorre para escapar à sombra terrível do conhecimento de sua própria pessoa” (Joseph Conrad). Seria possível imaginar o mesmo de um país? Dizer, como o personagem de Shakespeare (em Macbeth): “Ai de ti, pobre país, quase com medo de conhecer a si próprio”. O Brasil sob o bolsonarismo parece cada vez mais enredado no autoengano e na autocomplacência, empenhado em perder-se em engenhosas artimanhas para escapar ao conhecimento de si próprio.

Mas a terrível sombra está a ficar mais visível com o agravamento da pandemia, e com suas consequências. Paradoxalmente, é o que poderá talvez permitir que escapemos, nos próximos 18 meses, do autoengano coletivo, que seria trágico. Terrível como possa ser, o Brasil, a duras penas, pode estar se conhecendo melhor. Afinal, Bolsonaro e sua grei são parte integrante de nossa realidade. Cumprirá a cada um de nós procurar construir coalizões – de pessoas, de partidos – aptas a apresentar-se à sociedade em geral (não apenas a nichos identitários, corporações estabelecidas e interesses consolidados) como alternativas de poder viáveis e construtivas.

Não será fácil. No presidencialismo à brasileira o poder incumbente dispõe de enormes vantagens, particularmente quando a busca da reeleição constitui sua inequívoca prioridade. O poder que detém o presidente de nomear, demitir, vetar e cooptar não deve ser subestimado. Nem sua presença nas redes sociais ou o expressivo contingente do eleitorado que lhe confere o status de mito.

Em algum momento será preciso convergir para nomes, a política assim o exige. Mas tão importante quanto o quem é com quem mais (pessoas, partidos, grupos sociais), com que tipo de proposta sobre os principais desafios do País, com que tipo de interpretação sobre onde estamos, como até aqui chegamos e para onde se está propondo que caminhemos.

Carlos Pereira, em artigo recente (Folha 8/2), comenta a diferença entre montar uma coalizão para uma disputa eleitoral e gerenciar uma coalizão para efetivamente governar, à luz das dificuldades de coordenação, custos de governabilidade e perspectivas de sucesso legislativo. Após um ano e meio de recusa, Bolsonaro foi obrigado a aceitar uma coalizão e a empenhar-se pessoalmente na eleição dos novos presidentes da Câmara e do Senado. Mas, como notou o autor, “estando o presidente disposto a jogar o jogo do presidencialismo multipartidário, precisa aprender a gerir a sua coalizão de forma profissional e não amadora”. Sua forma de gerir a coalizão alcançada tem se mostrado volátil e estouvada, mas claramente concentrada em sua reeleição. Que depende da consolidação e ampliação de seu eleitorado fiel, do cultivo das corporações que tem como suas e da transferência de responsabilidades para governadores, prefeitos e para a mídia profissional.

A extraordinária disfuncionalidade do Executivo federal no combate à covid é o exemplo mais flagrante e doloroso dessa inépcia, mas não o único. Afinal, é de nosso presidente a afirmação: “O País está quebrado, e eu não consigo fazer nada”. Eis a continuação da mensagem, implicitamente sugerida: porque não me deixam fazer o que eu gostaria, ou o que precisaria ser feito, a culpa não é minha. Em outra fala, saiu-se com variante muito mais grave: “Alguns acham que posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo”. Nada surpreendente para quem em janeiro afirmara que “quem decide se um povo vive sob uma democracia ou uma ditadura são as Forças Armadas”. As duas frases não deveriam surpreender a quem conheça sua trajetória, no Exército e no Congresso, ou a quem se dê ao trabalho de assistir, na íntegra, ao vídeo da famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020, verdadeira ressonância magnética de um organismo disfuncional.

A História ensina que uma sociedade enjaulada em acerbas polarizações é particularmente vulnerável a populismos fraudulentos. Existem sempre instigadores que despertam e incendeiam a ambição de populistas e tiranos em potencial. Como existem sempre os facilitadores que, ainda que percebam o perigo representado por aquela ambição, imaginam-se capazes de controlar os arroubos autoritários do populista (ou do tirano) enquanto se beneficiam de seu estilo de assalto a instituições estabelecidas. Como aponta com pertinência Aung San Suu Kyi, “não é o poder que corrompe, mas o medo. O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem. E o medo do açoite do poder corrompe aqueles que estão sujeitos a ele”. Persio Arida retomou o tema em excelente live recente, a propósito do Brasil de hoje.

Nos próximos 18 meses o Brasil deverá decidir se afinal deseja assumir-se como uma democracia vibrante, reconhecida como tal pelo resto do mundo; ou se persistirá na trajetória de incerteza crescente sobre nosso futuro econômico, social e político. E a correr sério risco, à luz de eventos dos últimos dias, de reeditar o tipo de polarização que marcou tanto nossa experiência em 2018 como os últimos trágicos 12 meses de pandemia.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC


Rolf Kuntz: A chanchada sinistra do autoritarismo

A pandemia avança, enquanto o governo encena a paródia da ditadura militar

Pornochanchada já era. O Brasil vive agora uma chanchada trágica, encenada pelo mais incompetente e mais desastroso governo de sua História. Não há como estranhar as obscenidades de Jair Bolsonaro e de seu filho Eduardo, especialmente quando dirigidas à imprensa. Suas barbaridades apenas expressam, de modo chulo, o padrão moral, intelectual e político do grupo instalado no centro do poder federal. Quando manda enfiar em lugar impróprio as máscaras destinadas à prevenção sanitária, o filho do presidente celebra, como seu pai, a mortandade dos brasileiros. Essa grosseria, tipicamente bolsonariana, foi postada em 10 de março, quarta-feira. No mesmo dia, um novo recorde de mortes pela covid, 2.349 em 24 horas, foi registrado. A família presidencial poderia celebrar um novo marco em sua história.

Também na quarta-feira o ministro Eduardo Pazuello, famoso por sua omissão quando pacientes morriam sufocados em Manaus, negou o risco de colapso nos serviços de saúde. “O nosso sistema de saúde está muito impactado, mas não colapsou nem vai colapsar”, assegurou. Em todo o País, governadores, prefeitos, secretários e médicos apontavam hospitais lotados e filas de doentes à espera de vaga em UTIs. Todos esses fatos eram componentes de um desastre muito maior: o desmoronamento, iniciado em 2019, da administração federal.

O papel mais patético nessa quarta-feira coube ao chefão da trupe, o presidente Jair Bolsonaro. Ele apareceu de máscara, num evento no Palácio do Planalto, defendeu a vacinação e até lamentou as mortes causadas pela covid. Em São Bernardo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de novo em condição de concorrer à Presidência, havia criticado a ação federal diante da pandemia. O senador Flávio Bolsonaro pediu aos seguidores a distribuição, em redes sociais, de uma foto de seu pai com a frase: “Nossa arma é a vacina”.

Vinte e quatro horas depois o Bolsonaro de sempre reapareceu, já sem máscara e com a truculência habitual. Apoiadores o haviam aconselhado, segundo fontes de Brasília, a desfazer a impressão de ter sido acuado por Lula. Mas havia sido. Isso foi evidenciado até pelo globo exibido em sua live de quinta-feira, uma resposta a quem o havia chamado de terraplanista.

Palavras grotescas, falsas e ameaçadoras compuseram a live. Contrariando fatos conhecidos e documentados, o presidente negou ter chamado de gripezinha a covid-19. Confundiu com estado de sítio as medidas preventivas, como o toque de recolher, determinadas por alguns governadores. Ele obviamente ignora o sentido de “estado de sítio”, tema tratado na Constituição.

Bolsonaro lembrou sua condição de chefe supremo das Forças Armadas. Raramente um presidente democrata menciona esse fato. Mas, além de falar sobre isso, lembrou o regime militar e pediu apoio ao povo para enfrentar os governadores. “Como é que eu posso resolver a situação? Eu tenho que ter apoio. Se eu levantar minha caneta BIC e falar ‘shazam’, vou ser ditador. Vou ficar sozinho nessa briga?”.

O palavrório é meio estranho, mas, apesar da obscuridade e dos subentendidos, a convocação lembra as ameaças de promover algo parecido com a mobilização comandada pelo presidente Donald Trump. Nos Estados Unidos, o presidente derrotado na última eleição incitou seus apoiadores a invadir o Congresso. Há alguns meses, Bolsonaro mencionou o risco de algo semelhante no Brasil se a eleição de 2022 for realizada sem voto impresso.

Bolsonaro chamou de herói nacional o torturador Brilhante Ustra, criou mal-estar com o governo chileno ao elogiar a ditadura do general Pinochet e cita com frequência o regime militar no Brasil. Referências à ditadura estão longe de ser meros componentes de uma retórica infeliz, grotesca e muitas vezes chula. O presidente, seus filhos e vários componentes da administração federal têm conseguido encenar uma paródia sinistra dos tempos ditatoriais.

O Ministério da Educação enviou a reitores de universidades federais um documento ameaçador, prometendo sanções, por “imoralidade administrativa”, a “manifestações de desapreço ao governo”. A censura é aplicável a professores e alunos. Um processo disciplinar foi aberto contra o ex-reitor e o pró-reitor de Extensão e Cultura da Universidade Federal de Pelotas. Ambos tiveram de assinar um termo de ajustamento de conduta para encerrar o processo.

Técnicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) também foram pressionados. Receberam recomendação de limitar seus contatos com a imprensa e de evitar a divulgação de estudos antes de “aprovação definitiva” pela direção. O presidente do Ipea, Carlos von Doellinger, parece haver esquecido sua experiência dos anos 1970, quando ele mesmo e outros pesquisadores tinham amplo contato com jornalistas. Estudos eram produzidos sem censura. Artigos publicados na revista Pesquisa e Planejamento Econômico discutiam livremente a política econômica. Esse padrão, sustentado por João Paulo do Reis Velloso, um dos criadores do instituto, foi mantido por muito tempo. Talvez faltasse um governo bolsonariano.

*Jornalista


Cristovam Buarque: Lula Taí

A história do Brasil já está marcada por ele

Quando Arraes voltou do exílio, não havia TV a cabo, internet, WhatsApp, mas logo se espalhou o cochicho de “Arraes Taí”. Lembrei disto ao assistir a fala do Lula na manhã da quarta-feira, depois que o Supremo Tribunal Federal anulou seu julgamento pela Lava-Jato de Curitiba. Foi como anistia de condenação que está passando a ideia de ter sido motivada politicamente. Muitos dos que se indignam e condenam a comprovada avassaladora corrupção na Petrobras, durante seu governo, desconfiavam das provas contra o Lula nos casos que o envolviam pessoalmente. Sobretudo depois de o juiz dos casos abandonar a toga para assumir um ministério. Mais ainda, ao tomarem conhecimento dos diálogos entre juiz e procuradores, durante o processo.

Por isto esperei a fala de Lula com temor de que voltasse ao discurso desagregador de quando foi solto em 2019, e com esperança de um discurso agregador, como fez em 2002 e durante seus dois governos. Colocando-se à disposição das forças políticas para encontrar o candidato com mais chance de impedir a reeleição do atual presidente. Seu discurso não teve a mensagem desagregadora, nem foi suficientemente esperançoso. Não passou a arrogância do isolamento, nem deixou clara mensagem de que “Lula Taí” para ser um dos líderes, não o monopolizador, de uma aliança pela democracia, olhando o futuro com responsabilidade econômica e empatia social. Mas deixou aberta a possibilidade dele e o PT participarem da construção de uma aliança de todos que desejam superar a atual tragédia que o Brasil enfrenta na epidemia, na incompetência gerencial, nas ameaças à democracia, no obscurantismo e no isolamento internacional.

Quem gosta e quem não gosta do Lula tem de reconhecer que a história do Brasil já está marcada por ele: ao demonstrar que um operário retirante nordestino é capaz de ser um presidente que representou bem ao país no Exterior, que manteve compromisso com a estabilidade monetária durante seus dois mandatos e atendia demandas sociais.

Mas talvez a maior contribuição de Lula ao Brasil, sua “melhor hora”, será a partir de agora: ajudar o Brasil a eleger um novo presidente, seja ele próprio ou não. Para isto, seu discurso precisa afirmar sua abertura a participar da aliança em um bloco maior do que apenas a esquerda tradicional. Abrir-se à realidade do mundo da globalização, dos limites ecológicos ao crescimento, da inexorável modernização tecnológica, deve reconhecer as dificuldades fiscais, éticas e gerenciais da máquina do Estado. Ele tem argumentos para afirmar que sua condenação foi anulada e que sua consciência está em paz, mas precisa assumir que houve corrupção avassaladora em instâncias de seu governo, devido ao aparelhamento pelos partidos que o apoiavam no Congresso. Deve se colocar à disposição de todos os candidatos já lançados e se propor a participar na escolha do candidato que terá mais chance de barrar a monstruosidade do atual governo, seja ou não de seu partido.

“Lula Taí” e tem diante dele a tarefa maior e mais difícil do que se eleger pessoalmente em 2002, a tarefa de ser um dos líderes, não o único, a retomar a democracia plena, com empatia pelos problemas do povo, com rumo para o Brasil.

Se o STF não voltar a surpreender, “Lula Taí”: esperemos que os outros líderes reconheçam sua força política e que ele entenda que o Brasil é maior do que qualquer um de nós e de nossos partidos.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador


Dorrit Harazim: Brasil, ano 2

Lançado em 1976, ano do bicentenário da independência dos Estados Unidos, o filme-sátira “Rede de intrigas”, de Sidney Lumet, contava a história de um âncora de TV demitido porque sua audiência despencara. Interpretado por Peter Finch (Oscar póstumo de melhor ator), o personagem decide comunicar ao vivo sua saída e avisa que se suicidará na semana seguinte com o programa no ar. A audiência dá um salto, e a emissora decide voltar atrás.

A partir daí, o âncora passa a encarnar um oráculo insano que só diz verdades. Numa cena antológica, ele convoca os espectadores a se insurgirem contra a lógica do mercado e da dominação do capitalismo: “Quero que todo mundo levante de sua poltrona agora, vá até a janela, abra-a, ponha a cabeça pra fora e grite a plenos pulmões: ‘Chega! Não aguento mais! Estou explodindo de raiva!’.”

O Brasil de 2021 tem um quê de “Rede de intrigas”. Temos o cidadão que não aguenta mais, que gostaria de explodir sua raiva contra o abandono a que foi condenado. Ele só não explode nas janelas e pelas ruas do país por medo de morrer de Covid-19. A diferença é que, no lugar de um maluco de ficção que no filme apontava para a realidade, temos um presidente da República insano, porém real, descontrolado e amoral, a nos enredar em falsidades.

Ao longo do interminável ano de 2020, o país se acomodou, encolhido no que pesquisas sobre saúde mental definem como “pensamento mágico” — apostou-se na vã esperança de um reencontro com a vida em 2021. No fundo era um mero atalho mental para sair da era da incerteza pandêmica, escapulir do estado de ansiedade e do silêncio coletivo. Apostamos, muitas vezes às escondidas de nós mesmos, que, no decorrer do ano novo, poderíamos sair da toca e procurar nos reconhecer nas pessoas que algum dia fomos. Aniversários cancelados seriam comemorados duas vezes, o Natal adiado reuniria famílias e amigos na Páscoa de abril, e o resto do calendário de 2021 ficaria lotado de abraços apertados.

No dia a dia, um pouco de pensar mágico não faz mal a ninguém. Sua utilidade se assemelha à das superstições inofensivas. Quando o problema é imenso, e sua solução parece fora de alcance, o recurso apenas aumenta a sensação de desamparo. É onde o Brasil se encontra neste primeiro aniversário da primeira morte por Covid-19, registrada em 12 de março de 2020. O choque, o horror inicial, cedeu primeiro à inércia, depois à fadiga, mas finalmente adquire contornos de consciência. Agora é torcer para que se transforme em cobrança. É como se só agora estivéssemos despertando de verdade para 2021: com a cara num muro pandêmico de 275 mil mortos, falta de vacinas e o colapso do sistema hospitalar.

Também governadores, prefeitos e o Congresso, ora em separado, ora em ações emergenciais conjuntas, acordaram para o galope da devastação humana nacional. Ainda assim, de modo atabalhoado, indesculpavelmente a reboque da mortandade anunciada, ainda sem linha mestra clara. Basta listar algumas decisões tomadas num mesmo dia — a quinta-feira passada — em nível estadual e municipal para desnortear qualquer bípede. No Paraná, estado com a maior fila por leitos hospitalares (500) do país, o governador Ratinho Jr. reabriu o comércio e anunciou o fim do lockdown de 12 dias, apesar de constatar que o Brasil vive “a maior guerra de saúde pública dos últimos 100 anos”. Em Curitiba, é o prefeito Rafael Greca que alerta para a eventual necessidade futura de um lockdown. “Cumpro meu dever de prefeito para anunciar que estamos chegando ao nosso limite”, disse ele. Seu dever de prefeito não seria agir ANTES que o colapso ocorra? O governador de São Paulo, João Doria, fez discurso semelhante ao suspender normas anunciadas dias antes e decretar “fase emergencial”: “Pessoal, infelizmente chegamos ao momento mais crítico da pandemia”. Ou seja, deixou chegar a emergência crítica, para só então fechar cultos em igrejas e estádios para jogos.

No Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes desfolhava de forma errática a margarida das vacinas : uma hora tem o imunizante, na hora seguinte não tem. Resta ao grupo da faixa etária que se apruma para estender o braço voltar para casa sem saber do amanhã. Paes também afrouxou medidas tomadas na semana anterior — liberou o comércio na praia, academias de ginástica, cultos, ambulantes, barraqueiros, entre outros —, não dando tempo para que se estude a eficácia de medida alguma. É sabido que, para um lockdown ter algum impacto na curva de contágio e de óbitos por Covid-19, e poder ser analisado em detalhes, ele deve ter duração de ao menos 15 dias. A medida exige uma serenidade difícil de encontrar nas diversas esferas do poder nacional.

O mais esquizofrênico e deletério, sem dúvida, continua a ser o capitão do Palácio da Alvorada, que confunde a medida sanitária do toque de recolher, adotada pelo governador do Distrito Federal para reduzir a disseminação do vírus, com estado de sítio, instrumento excepcional pelo qual o presidente da Republica suspende por determinado período a atuação dos poderes Legislativo e Judiciário.

“Por vezes, morremos muito antes de sermos enterrados”, escreveu o francês Romain Gary em seu romance “Além deste limite, seu bilhete não vale mais”. O Brasil, neste ano 2 da pandemia planetária, parece decidido a não morrer tão antes do inevitável. A sociedade civil se organiza, a iniciativa privada se mexe, um reordenamento nas esferas estadual e municipal brota como opção B ao inexistente comando federal. Mas, para sobrevivermos, urge deixar Jair Bolsonaro e sua sombria parentela falando sozinhos. 


Míriam Leitão: A falha dos poderes é ameaça perigosa

A democracia brasileira, nos últimos dias, deu mais alguns passos na perigosa trilha em que entrou. O Supremo Tribunal Federal (STF) aumentou a insegurança jurídica, ao dar vários sinais de que os ministros tomam decisões que mudam a vida do país seguindo a lógica das brigas internas da corte. A Câmara entregou a Comissão de Constituição e Justiça a uma deputada que esteve em atos que propuseram rasgar a Carta e a Comissão do Meio Ambiente a quem faz parte da tropa antiambiental. O presidente mais uma vez ameaçou o país com a ditadura, contando para isso com o silêncio dos generais.

A decisão do ministro Edson Fachin obedece à lógica de que se o caso não é relativo à Petrobras não tem que ficar na 13ª Vara Federal em Curitiba. A dúvida que permanece é por que levar tantos anos para descobrir a procedência da tese sempre apresentada pelos advogados do ex-presidente. Fachin explicou em entrevista a Aguirre Talento e Bela Megale do GLOBO que o assunto havia sido mencionado, mas que ele não recebeu pedido direto da defesa de Lula até novembro de 2020. O ministro disse que a Justiça tem que ser imparcial e apartidária. É verdade. Mas também precisa ser tempestiva. A intempestividade pareceu mais um lance da briga entre duas das onze ilhas da corte

O ministro Gilmar Mendes afirma que é insuspeito. E explicou por quê: “ao contrário da ministra Cármen, dos ministros Lewandowski e Fachin, não cheguei aqui pelas mãos do Partido dos Trabalhadores.” Isso quer dizer que os outros três ministros são suspeitos em ações do PT? Ou que ele é suspeito para julgar os casos do PSDB? Ele acusa o ex-juiz Sergio Moro de ter se tornado inimigo do réu, quando ele próprio dá demonstrações constantes desse sentimento em relação ao ex-juiz e aos procuradores.

Depois do duelo jurídico entre Fachin e Gilmar para saber quem tem a última palavra no destino de um ex-presidente da República, outro conflito emergiu no plenário virtual do STF. Na quinta-feira, o ministro Marco Aurélio chamou o ministro Luiz Fux de autoritário e o ministro Alexandre de Moraes de xerife. Foi mais um sinal ruim. Não é a primeira vez que as divisões na mais alta corte são expostas, mas esta semana houve um concentrado de votos idiossincráticos e falas pontiagudas. Quem acredita na democracia defende o STF dos ataques bolsonaristas, mas, na devastação institucional em que vivemos, certos ministros deveriam entender que seus ombros envergam as togas não a título pessoal, mas em nosso nome.

A Câmara enfraqueceu o sistema de check and balances ao fazer duas escolhas para as comissões. Não é uma questão partidária que torna a deputada Bia Kicis (PSL-DF) a pessoa errada para presidir a Comissão de Constituição e Justiça. São as suas manifestações em rede, ou nas ruas. Ela é uma radical e por isso não terá o equilíbrio necessário. Kicis esteve em atos que pediram um novo AI-5, o Ato Institucional que fechou o Congresso e cassou deputados na ditadura. A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) fará o oposto do que se espera de uma presidente da Comissão de Meio Ambiente. O governo está fazendo uma demolição do aparato legal que protege o meio ambiente. O legislativo precisava ser o freio e o contrapeso dessa ação de passar a boiada pela cerca das leis.

O executivo trabalha contra a democracia. Isso já virou rotina. Basta ouvir o que o presidente diz. Sua visão distorcida do artigo 142 da Constituição, sobre o papel das Forças Armadas, é sempre jogada na cara do país como ameaça. Ele está tentando mudar o que quis dizer com “o meu Exército”, afirmando que se referia aos seus seguidores, mas a Arma nada fez para lembrar que ela pertence ao país.

Bolsonaro mostrou no Sebrae, no seu habitual tom colérico, que continua prisioneiro da visão conspiratória. Mentiu que o país está há um ano em lockdown e afirmou que isso está sendo feito para atingi-lo. “Até quando aguentaremos a irresponsabilidade do lockdown?” E tudo “só consegue atingir o presidente da República”. Bolsonaro chamou de “estado de sítio” as medidas protetivas tomadas em todos os países do mundo. Houve quem se iludisse, achando que a elegibilidade de Lula iria convencê-lo a mudar. Exceto por aceitar, enfim, a forma esférica da Terra, no resto Bolsonaro continua sendo negacionista. Ele ameaça a saúde dos brasileiros e a democracia. Quando os outros poderes falham, o país fica ainda mais vulnerável ao candidato a tirano que nos governa.


Pablo Ortellado: Eles em nós

A editora Record acaba de lançar o novo livro de Idelber Avelar, “Eles em nós”, que busca interpretar os acontecimentos recentes da política brasileira com os instrumentos da análise retórica.

O maior mérito da obra é examinar os processos políticos recentes, reconstruindo cuidadosamente os acontecimentos, de uma perspectiva razoavelmente distanciada. A posição política do autor, que vem da esquerda, mas se afasta dela, confere rara equidistância para tratar criticamente as administrações petistas e o governo Bolsonaro.

A principal limitação do livro é justamente o que seria a sua virtude: o uso de categorias da retórica para explicar os processos políticos. Avelar tem larga experiência como comentador político, mas preferiu se apoiar em sua especialidade, como professor de Literatura, para se lançar neste projeto de interpretação do Brasil contemporâneo. Os conceitos da retórica às vezes dificultam, em vez de ajudar a esclarecer as questões.

Avelar usa, por exemplo, o conceito de oximoro (figura de linguagem que combina palavras de sentido oposto) para tratar das contradições do lulismo. Mostra que, enquanto Lula criticava os ruralistas, tinha Blairo Maggi como interlocutor; enquanto atacava os meios de comunicação, ampliava as verbas de publicidade do governo.

A análise dessas contradições é perspicaz, mas o recurso à figura do oximoro não as ilumina. Lula não empregava expressões antinômicas, mas adotava uma postura ideológica junto à militância, contraditada por seu pragmatismo como presidente. Se se debruçasse sobre o conceito de “governo em disputa”, reivindicado pela militância petista, talvez pudesse entender melhor o fenômeno.

Avelar caracteriza essa ambivalência como uma forma de administração dos antagonismos sociais. E é essa forma de gerenciar os conflitos que teria implodido com os protestos de junho de 2013. A incapacidade do sistema político de entender e dar resposta à revolta teria criado as condições para a emergência de Bolsonaro, cuja radicalidade antissistêmica daria uma expressão de ultradireita aos antagonismos represados.

O último capítulo do livro trata da ascensão de Bolsonaro. Avelar explica sua candidatura a presidente por meio de uma aliança entre o agronegócio, o punitivismo policial e judiciário e o evangelismo cristão. A coalizão teria, no ativismo de internet, uma espécie de vanguarda digital e seria sacramentada pelo compromisso liberal de Paulo Guedes.

A enumeração das forças políticas que apoiam Bolsonaro é bem ponderada, mas a sugestão de que Bolsonaro tenha costurado uma coalizão política é pouco amparada em evidências. Tudo indica que Bolsonaro lançou sua candidatura de maneira aventureira e foi ganhando o apoio desses setores à medida que se popularizava.

As explicações de Avelar nem sempre são persuasivas, mas o livro tem o mérito de fazer as perguntas certas. Entender como passamos do impulso libertário de junho de 2013 para o pesadelo autoritário de 2018 segue sendo um dos grandes desafios da inteligência brasileira.


Marco Aurélio Nogueira: Impotência e ação democrática

Dois fatores travam a situação nacional: a impossibilidade de se ter gente protestando nas ruas e a falta de voz firme dos políticos.

Há uma sensação de impotência solta no ar. Faltam governo, coordenação, vacinação. Sobram ofensas presidenciais, mortes, medo, desolação. 

Parte da sociedade bate panelas e protesta nas redes. Outra parte, aplaude o presidente. Difícil dimensionar o peso de cada pedaço, mas a percepção é que Bolsonaro está encurralado e perdendo apoios. Precisa enfrentar a pandemia de algum modo, pois sem isso não haverá recuperação econômica, sua pedra mágica para sobreviver no cargo. Precisa também encobrir os crimes cometidos, em série, pela família. A mansão do filho mais velho, senador da República, é o problema mais recente. Mas não é o único. Há uma montanha de lixo tóxico pronta para desabar sobre o presidente que, acossado pela covid, pelas mortes assustadoras, pela crise econômica, não mostra capacidade de resposta. 

Na verdade, nunca mostrou capacidade de resposta. Com isso, facilitou o avanço da crise. O vírus se alimentou dessa incapacidade.

Daí sua recusa em assumir qualquer responsabilidade. Não é só expressão de uma ignorância fanática. É receio de ter de responder pelo que não fez quando devia e tinha condições de fazer. Joga a culpa nos outros. Até o vírus está sendo acusado de contribuir para revelar o que já se anunciava em 2018: Bolsonaro não preside, não governa, porque não tem preparo, porque se cercou de um bando de paspalhos tão despreparados quanto ele e porque tem um cálculo político voltado exclusivamente para sua sobrevivência, quer dizer, sua reeleição. 

Cada bobagem que fala, cada agressão que comete, cada mentira que conta, é parte de uma operação dedicada a ocultar sua incompetência, sua desonestidade, seu cinismo frio e criminoso. 

Analistas, pesquisadores, formadores de opinião, lideranças democráticas têm falado isso desde que a desgraça começou a tomar forma no Brasil. As coisas só foram piorando. O presidente não irá mudar: não tem como nem sabe fazer isso, está com o corpo amarrado a sua própria biografia. 

As coisas pioraram também para Bolsonaro. Hoje ele se movimenta com mais dificuldade, o ringue em que atua está menor, as cordas chegam a lhe bater no peito, as pernas pesam. A imagem é de uma fera acuada, suando, babando, adrenalina fora de controle. O sonho da reeleição está mais distante, porque o desgaste da pessoa acompanha a crise: quanto mais a desgraça avança, mais fraco fica o presidente. Ele posa de bam-bam-bam, mas está tremendo nas bases, com aquele travo amargo na boca, atarantado.

Dois fatores ainda lhe fornecem oxigênio: a impossibilidade de se ter gente protestando nas ruas e a falta de voz firme dos políticos.

Chega a constranger que não se tenha no Brasil uma reação política compatível com o tamanho do buraco em que estamos. Onde estão nossas lideranças, os chefes de partido, os políticos realistas, os que são tidos como guias geniais, os que dizem morar no coração do Brasil profundo? Por que não se manifestam, por que não se articulam, por que não conversam com a população para que ela entenda a situação, por que não se engajam numa campanha política de imunização, ou seja, em favor das vacinas e do uso crítico da razão? 

Com o avanço da vacinação, os protestos voltarão às ruas. É esperar para ver. Produzirão pressão, criarão esperança e desejo de mudar, massas se formarão. Irão se contrapor aos fanáticos que vêm no presidente o “mito” redentor. Modificarão a correlação de forças. 

Já quanto aos políticos democráticos, seu silêncio reverbera com a força de um trovão, chega a ensurdecer. Dizem que alguns são ativos nas redes, falam diariamente com seus fiéis. Outros dão entrevistas ou fazem discursos, nos quais repetem as mesmas obviedades de sempre, justas, mas inócuas. Pode ser, mas nada disso vira opinião pública, não se materializa em uma alternativa ao que existe, nem sequer no plano discursivo. Não acossa quem precisa ser acossado.  

Estarão eles estarrecidos, assustados com a ignomínia presidencial? Ou estarão cegos pelos próprios cálculos, convencidos de que o silêncio poderá dar-lhes a musculatura de que julgam necessitar para avançar em 2022? Ou se protegem nas sendas da moderação, da temperança, da prudência, certos de que o mais importante é não atrapalhar a luta contra a pandemia? 

Mas como, se a luta contra a pandemia só será vitoriosa com a remoção do entulho político que impede a gestão sanitária eficiente? 

Estamos mal parados, o tempo corre contra nós. A exigência de ação precisa nos contagiar e fazer com que os democratas se movimentem. 


Ascânio Seleme: Na casa da tua mãe

A frase foi usada por Bolsonaro, em agenda em Uberlândia (MG), para falar sobre "idiota que pede compra de vacina"

Jair, onde você absorveu tanta arrogância? Onde você iniciou o processo involutivo que o transformou no indivíduo tosco que deixa o Brasil atônito? Foi na casa da tua mãe.

Onde você emburreceu tanto e virou esse indivíduo desconectado do mundo civilizado? Onde você encontrou tanta gente obtusa como você para reunir ao seu redor? Foi na casa da tua mãe.

Onde você teve seu caráter desviado de forma tão radical que alcança até mesmo todos os zeros que você criou? Foi na casa da tua mãe.

Capitão, onde você construiu toda a perversidade que escorre em suas veias e baba da sua boca? Onde você foi encontrar tanto ódio que se percebe claramente no seu olhar e na sua risada sádica? Foi na casa da tua mãe.

Onde foi concebido este espírito antidemocrático que o domina de maneira irrevogável e que ameaça um país inteiro? Foi na casa da tua mãe.

Onde o seu coração de pedra foi lapidado, ou dilapidado? Onde foi que o endureceram de tal forma que a empatia não consegue penetrar? Foi na casa da tua mãe.

Diga, onde talharam e envernizaram esta sua lustrosa cara de pau? Onde você aprendeu a mentir tanto, Jair? Foi na casa da tua mãe.

Onde mesmo foi que te ensinaram que chorar por seus mortos é frescura e mimimi?

Onde foi que você descobriu que os corajosos enfrentam o vírus e saem às ruas? Na casa da tua mãe.

Onde você aprendeu a roubar, a desviar dinheiro público para comer gente? Teria sido no mesmo lugar em que você ensinou seus filhos a fazer rachadinhas? Foi na casa da tua mãe.

Jair, onde você se tornou homofóbico e misógino? Onde começou a entender que mulher é filha da fraqueza e gay deve levar porrada? Foi na casa da tua mãe.

Conte onde foi que você descobriu que o Brasil é um país de maricas? Foi na casa da tua mãe.

E onde você percebeu que há excessos de direitos no Brasil? Foi na casa da tua mãe.

Capitão, onde você se afastou da luz e mergulhou nas trevas? Onde você aprendeu que torturar e matar fazem parte da vida? Foi na casa da tua mãe.

Onde te ensinaram que a ditadura errou por torturar e não matar? Aposto que foi no mesmo lugar onde você ouviu que os porões deveriam ter fuzilado 30 mil corruptos e erraram por não matar Fernando Henrique Cardoso. Foi na casa da tua mãe.

Diga, onde você entendeu que Pinochet, o mais sanguinário ditador latino americano, devia ter matado mais gente? Foi no mesmo lugar em que você passou a idolatrar o torturador Brilhante Ustra? Foi na casa da tua mãe.

Onde foi, Jair, que você descobriu que fazer cocô dia sim, dia não, melhora o meio ambiente? Que comer menos resolve o problema das queimadas? Foi na casa da tua mãe.

Explique, onde você percebeu que trabalho infantil, de meninos e meninas com menos de dez anos de idade, não prejudica em nada as crianças? Foi na casa da tua mãe.

Conte, onde foi mesmo que te disseram que é uma grande mentira falar que tem gente passando fome no Brasil? Que isso só acontece em outros países? Foi na casa da tua mãe.

Onde te ensinaram que é correto beneficiar filhos, como os zeros que você tem, quando se exerce cargo público, capitão? Foi na casa da tua mãe.

Finalmente, onde foi mesmo que você virou este monstro que assombra o país e espanta o mundo? Foi na casa da tua mãe.

Nosso Rio 1

Para conseguir fazer algumas poucas restrições na cidade contra o coronavírus, o prefeito Eduardo Paes teve de enfrentar os membros do comitê científico que ele mesmo montou quando tomou posse e do qual participam os ex-ministros da Saúde José Gomes Temporão e José Agenor Álvares da Silva. “O comitê mandou manter tudo do jeito que está”, disse o prefeito um dia antes de anunciar as novas medidas. “Estou enfrentando os cientistas”, explicou Paes, referindo-se ao comitê, no dia em que saíram as medidas.

Nosso Rio 2

De acordo com o prefeito, o comitê só recomendaria medidas se houvesse “alguma tendência de alta” de episódios, o que não era o caso, segundo Paes. O secretário de Saúde, Daniel Soranz, garantiu que 15 dias antes de qualquer medida se saberia que os casos estariam aumentando em razão de eventos de gripe verificados nas UPAs. Disse também que não havia razão para fechar ou reduzir o tempo de funcionamento de estabelecimentos comerciais porque “o Rio é a cidade com a segunda menor taxa de ocupação hospitalar do país, atrás apenas de Aracaju”.

Nosso Rio 3

Aliás, alguém consegue explicar por que bares e restaurantes podem ficar abertos até às 17h? Significa que o cidadão pode se contaminar à vontade de dia, mas de noite não? E as praias, por que ambulantes e quiosqueiros estão proibidos e os bacanas não? Não vale dizer que sem ambulantes vendendo água de coco os bacanas saem logo da areia. Se for essa a explicação, significa que a estes é dada a chance de se infectar por uma ou duas horas, e nada mais?

Nosso Rio 4

O secretário Soranz disse que o número de infectados no Rio não aumentou tanto nos dois primeiros meses do ano, que os registros do Consórcio de Veículos de Imprensa não refletem a realidade. “Os números foram represados na gestão de Marcelo Crivella”, afirmou o secretário. E mais. Ele acrescentou que o ex-prefeito fechou praias e parques, como o Campo de Santana, para economizar com gastos de manutenção.

Ah, Bittar

O senador Márcio Bittar (MDB-AC) lamentou muito não ter conseguido garfar dinheiro de Saúde e Educação no seu texto da PEC Emergencial. Ele foi obrigado a desistir de acabar com as vinculações obrigatórias das duas áreas por falta de apoio da maioria dos senadores. Bittar disse que queria uma PEC “mais robusta, com mais itens”, mas se viu forçado a desidratar a proposta. Sorte do Brasil e dos brasileiros.

Conta outra

Querem criminalizar a política, dizem os que tentam defender deputados e senadores de malfeitos. Estes normalmente ganham as causas nos tribunais superiores quase sempre por tecnicalidades. Não estamos defendendo a corrupção, mas a legalidade. Porque hoje é o parlamentar que está sendo condenado com estes erros processuais, amanhã pode ser você.

Casa do zero

Você conhece alguém que tenha 39 anos, que trabalha há apenas 20 anos com remuneração mensal variando de R$ 15 mil a R$ 28 mil ao longo dos anos, que tem dois filhos em idade escolar e que conseguiu reunir dinheiro suficiente para comprar uma casa de R$ 6 milhões? Pois é. Eu também não.

Faz sentido

O nome do condomínio da nova mansão do Zero das Rachadinhas em Brasília é perfeito. Chama-se “Ouro Branco”, que pode significar tanto riqueza quanto chocolate. Nas duas modalidades o Zerinho abunda.

Custo zero

“Geralmente quando se fala em famílias na política, são famílias enroladas em atos de corrupção. A minha família é limpa na política”. A frase é de Jair Bolsonaro, pronunciada na entrevista que deu na bancada do Jornal Nacional na campanha eleitoral de 2018. A imagem mostra o cara de pau com um ar de seriedade que nunca mais se viu. Lembrar não custa nada.

No crea em brujas

A fabulosa Bia Kicis tem prometido miragens aos deputados. Na tentativa de viabilizar sua candidatura para presidir a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, diz que vai ser democrática e respeitará as diferenças. Tem bobo que acredita. Como se ela fosse de fato capaz de cumprir a promessa, apesar de democracia não ser parte da sua natureza. Há também os aliados de Artur Lira que defendem a candidatura de Kicis para não atrapalhar outros entendimentos partidários. Bobagem. O que se quer é controlar toda a agenda da Casa.

Enquanto isso

E a oposição por onde anda? Por que não vemos mobilização articulada contra o monstro. Na quinta-feira, enquanto Jair Bolsonaro falava em chororô e mimimi, os próceres deputados Paulo Pimenta e Paulo Teixeira, do PT, convocaram a imprensa para uma importante comunicação: denunciaram a Lava Jata e pediram a punição do procurador Deltan Dallagnol.

Lula e FHC

E por que não vemos uma ação coordenada dos ex-presidentes? Tirando Collor, que já se aliou ao capitão, claro, caberia muito bem uma manifestação dos demais em favor da vida e da democracia, sugere o autor e roteirista George Moura. Uma ação conjunta de Sarney, Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer pode não dar em nada, mas mostraria que os ex-líderes do país repudiam esse amontoado de agressões de Bolsonaro.

Intervenção

Os bolsonaristas mais atrasados, Jair em primeiríssimo lugar, que imaginavam que o Brasil sofreria uma ocupação de países ricos em razão das riquezas da Amazônia, podem acabar surpreendidos com uma intervenção global para sanear o país e salvar o mundo.


Adriana Fernandes: Quem vai disparar as medidas de socorro e apertar o botão de guerra?

Saúde e Economia caminham em passos distintos, enquanto o colapso do sistema de saúde de Manaus atinge o resto do País

Na briga insana contra as medidas de isolamento social para frear a pandemia, Jair Bolsonaro repete a toda hora que a economia e a saúde “andam juntas”. No seu governo, essas duas áreas, porém, não se conversam.

Não se tem notícia de nenhuma reunião de cúpula dos Ministérios da Economia e da Saúde – Paulo Guedes e Eduardo Pazuello – para a organização de uma estratégia conjunta, a não ser por repasse de dinheiro. Nenhum encontro sequer dos “generais” de Bolsonaro num gabinete de guerra, de crise.

Saúde e Economia caminham em passos distintos enquanto o cenário mais catastrófico do início do ano se confirmou: a disseminação do colapso do sistema de saúde de Manaus para o resto do País. Tudo ao mesmo tempo.

Vírus avançando, com famílias inteiras contraindo a doença, UTIs lotadas, retrocesso na retomada econômica, alta volatilidade dos mercados e desconfiança dos investidores em relação ao que vai acontecer com o Brasil. A paciência deles com o País indo embora. 

É a tempestade perfeita, que ocorre quando um evento ruim é drasticamente agravado pela ocorrência de uma rara combinação de circunstâncias que se transforma em um desastre sem proporções.

É bem verdade que vão dizer no governo que a coluna está equivocada. Que em março do ano passado foi criado um comitê de crise para a supervisão e monitoramento dos impactos da covid-19. Que o comitê já publicou uma série de resoluções com ações para o enfrentamento e está em pleno funcionamento. Que o comitê está atuando conjuntamente e tem uma lista de medidas para provar isso. Que está dando tudo certo e dentro do previsto.

Oficialmente, o discurso é o de que Guedes e Pazuello mantêm diálogos constantes e frequentes em relação às medidas para o enfrentamento da pandemia no Brasil, o que não traria a necessidade de encontros presenciais.

Quem viu essa tropa em ação reunida? O Ministério da Economia diz que faz a sua parte com o repasse de dinheiro e o Ministério da Saúde faz a dele cobrando os recursos que estão em falta.

No domingo passado, Bolsonaro postou nas suas redes sociais uma foto enfileirado ao lado dos presidentes Arthur Lira (Câmara), Rodrigo Pacheco (Senado), e os ministros Walter Braga Neto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Guedes e Pazuello. O assunto oficial: vacina e a PEC do auxílio emergencial.

O tema de maior interesse foi outro: mostrar que Bolsonaro fez a sua parte repassando recursos para os Estados no ano passado. Tudo isso para desmontar o aperto nas restrições que estão sendo tomadas pelos governadores e prefeitos e que a disponibilidade de caixa dos Estados e municípios fechou 2020 em patamar 70% maior do que um ano antes.

Isso demonstra que ter mais dinheiro não basta. A prova disso é que o governo já pagou R$ 524 bilhões em medidas emergenciais e o Brasil está no topo entre os países com pior situação na pandemia.

Depois da cloroquina e do tratamento precoce, a prova de energia gasta fora do lugar é o envio de uma comitiva a Israel para conhecer o spray para o combate da covid-19.

Mas nunca mandaram uma comitiva de peso – de alto nível – atrás de vacina. Por que não Guedes e Pazuello juntos numa comitiva? A equipe econômica pode e deveria ter se engajado mais nessa cobrança e articulação da diplomacia, pois tem seus canais particulares de diálogo internacional e instrumentos outros econômicos. A compra de vacina é uma guerra internacional e se deve disputá-la com todas as armas possíveis.

Com o temor de uma desorganização econômica, Guedes repete que o Brasil precisa de vacina. Mas não temos vacina. Com lucidez, disse que a guerra sem fim não vai chegar a nenhum lugar. Guedes conta para o presidente? O pior temor de Bolsonaro ao se lançar contra o combate duro da pandemia, o desastre econômico, pode acabar se concretizando.

O ministro já falou diversas vezes que aguardaria o sinal de Pazuello para disparar as medidas de socorro e acionar o botão da calamidade. No fim de janeiro, afirmou que o governo poderia retomar os programas de socorro, caso houvesse o entendimento de que o número de mortes por covid-19 continuará acima de mil por dia com a vacinação atrasada. Nessa situação, seria declarado novamente “estado de guerra”.

Infelizmente, esse é o quadro de hoje no Brasil. Quem aperta o botão?


Miguel Reale Júnior: Presidente de cemitério

O Ministério Público, a Câmara e o Senado precisam cumprir o dever de salvar o País

Em que momento a considerável parcela da população que ainda acorre às aglomerações ilícitas provocadas pelo presidente vai se dar conta de estar, em crença fanática, a louvar um perverso para quem o medo da morte por asfixia é “mimimi”? Até quando o Brasil será conduzido pelo quarto cavaleiro do apocalipse?

Bolsonaro não é presidente para administrar o País, mas tão só para se reeleger em 2022, seu único interesse, mesmo que venha a ser apenas presidente do cemitério. Jamais assumiu a liderança do enfrentamento da covid-19, preocupado só em atribuir a crise econômica e a perda de empregos a governadores e prefeitos, para se livrar dessa responsabilidade e angariar votos.

Bolsonaro, absolutamente indiferente ao crescente número de mortos, muitos sem oxigênio ou nos corredores por falta de leitos em UTIs, passeia pelo País sem máscara, promovendo aglomerações, nunca se compungindo diante da dor ou visitando algum hospital. Somente mandou sequazes invadir hospitais para flagrar ser mentira sua superlotação!

Continuamente conspirou contra a importância da vacina, cuja pressa em obtê-la ridicularizou, proclamando mentirosamente haver efeitos colaterais nocivos, desorientando a população.

Os obstáculos ao combate ao vírus não se limitaram aos maus exemplos. Deixou de adquirir, em julho, vacinas Coronavac e da Pfizer, impôs vetos de verbas e ignorou a cooperação com Estados e municípios na precaução e reação contra a doença, como ressalta estudo realizado pela Universidade de São Paulo, por meio do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública, em conjunto com a Conectas Direitos Humanos (Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil, em https://www.conectas.org/publicacoes/download/boletim-direitos-na-pandemia-no-3).

Esse estudo revelou a existência de uma “estratégia institucional de propagação do vírus”, entendendo ser “razoável afirmar que muitas pessoas teriam hoje” a mãe, o pai, irmãos e filhos vivos “caso não houvesse esse projeto institucional”. Conclui-se, então, não haver tão só incompetência e negligência, mas “empenho em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo”.

A comprovar tal conclusão, verifica-se que, de R$ 24 bilhões disponíveis no Orçamento para compra de vacinas, apenas R$ 2 bilhões foram gastos em 2020 (Folha de S.Paulo, 1.º/3, pág. A13). Tão grave quanto isso foi o corte de financiamento de leitos de UTI nos Estados para atendimento a pacientes com covid-19, que o STF acaba de mandar seja realizado (Estado, 1.º/3, A12).

Ao pôr a ambição política acima da proteção da saúde de seu povo, Bolsonaro revela egocentrismo incompatível com a permanência como primeiro mandatário, pois brasileiros foram lançados, por sua insensibilidade, na tragédia que a OMS reconhece estar instalada entre nós.

Quatro ex-ministros da Saúde clamam por um governo de salvação nacional ou pela criação de um gabinete de crise que dirija e coordene o enfrentamento da pandemia, sob o risco de afundarmos definitivamente na desgraça. Como fazer?

Há meio breve, justo e correto, já aventado antes por vários juristas. Ao Ministério Público, que tem por missão a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais, entre eles o da saúde, cumpre promover, em face desses fatos, ação penal por crimes contra a saúde pública e contra a paz pública, o primeiro previsto no artigo 268 do Código Penal: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”.

Ademais, ao estimular a população a se aglomerar, não usar máscara e não se vacinar, o presidente incita-a a praticar o crime acima mencionado, configurando-se, então, o delito do artigo 286 do Código Penal: “Incitar, publicamente, a prática de crime”. Ou seja, compele a se infringir determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa.

Há, evidentemente, dois desafios: 1) fazer o procurador Aras sair de seu imobilismo, sendo essencial a pressão da sociedade e de colegas procuradores; e 2) a Câmara dos Deputados, ciente da gravidade do momento, aceitar a denúncia, afastando o presidente, para o vice, em governo de união nacional, atuar em prol da salvação de nossa gente.

Outra forma seria a assunção da condução da área da Saúde pelo Congresso Nacional, via CPI ou promovendo o impeachment do ministro (artigo 14 da Lei n.º 1.079/50), cabendo ao novo titular da pasta atuar em conjugação com secretários de Saúde dos Estados.

A sociedade civil organizada, hoje silente, deve se manifestar por via de suas inúmeras entidades, exigindo que Ministério Público (competente, sim, para processar o presidente, como o fez contra Temer), Câmara dos Deputados e Senado cumpram o dever de salvar o País. Mexa-se, Brasil!

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça