urna eletrônica

Bruno Carazza: São muitos os Brasis

Entender resultado das urnas exige mergulho nos dados

Nas últimas semanas vocês foram inundados com números sobre as eleições municipais. Fechadas as urnas, no calor da apuração, produzimos uma profusão de análises apontando vencedores e derrotados. A partir do sobe-e-desce das prefeituras obtidas por cada partido, generalizamos os resultados e projetamos seus impactos para a eleição presidencial de 2022. E em geral a história termina aí.

Mas o Brasil é muito grande e diverso. Entender o que houve em 2020 e tentar extrair lições para o futuro exige um mergulho nos dados que a maioria de nós não faz - e mesmo os que desejam fazê-lo, esbarram na baixa qualidade dos dados.

O TSE até merece elogios por divulgar os dados das votações na unidade mais desagregada possível (a seção eleitoral). O problema é que as planilhas são extremamente pesadas e de difícil manuseio, além de os dados do perfil dos eleitores não serem atualizados periodicamente - o que os torna inúteis com o passar do tempo, pois as pessoas envelhecem, mudam de cidade, continuam estudando e até escolhem trocar de gênero.

Porém, como muitas cidades brasileiras realizaram o recadastramento biométrico de sua população recentemente, abriu-se uma breve janela de oportunidade para se analisar o comportamento do eleitor no microcosmo de cada seção eleitoral Brasil afora com dados pouco defasados. E quando nos aprofundamos nessa pesquisa, a realidade se mostra muito mais complexa do que os grandes números fazem parecer, como pode ser visto nos gráficos a seguir.

Muito se falou sobre o efeito da pandemia sobre a disposição do eleitor em votar. Analisando o comparecimento às urnas em Belém e Vitória no primeiro turno, podemos constatar que o medo de contrair covid-19 pode ter sido a razão para a alta abstenção na capital do Pará - pois lá houve maior abstenção nas seções com maior presença de idosos -, mas não em Vitória, onde praticamente não se observou essa correlação.

Do ponto de vista da disputa eleitoral, as duas capitais tinham um cenário bastante parecido: em ambas ex-prefeitos de esquerda (Edmilson Rodrigues, em Belém, e João Coser, em Vitória) enfrentaram numa disputa apertada com candidatos apoiados por Jair Bolsonaro - Delegado Federal Eguchi e Delegado Pazolini, respectivamente.

Quando comparamos o desempenho dos candidatos bolsonaristas em cada seção eleitoral no primeiro turno com o nível educacional dos seus eleitores (uma boa proxy para nível de renda), também chegamos a resultados díspares: na capital paraense o preferido do presidente foi menos votado nas seções eleitorais com maior percentual de analfabetos e pessoas com instrução até o ensino fundamental, enquanto entre os capixabas ocorreu justamente o contrário.

Os dados de Belém e de Vitória indicam ser precipitado generalizar se houve um deslocamento da base eleitoral de Bolsonaro dos mais ricos para os mais pobres em função do auxílio-emergencial.

Entender o Brasil não é fácil - e dá trabalho.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


José Casado: Acabou a moleza

Com voto facultativo na prática, candidatos terão de se virar para convencer o eleitor a sair de casa

Por lei, o voto continua obrigatório. Na vida real, está mais facultativo a cada eleição. Um em cada três eleitores decidiu não votar no domingo. A abstenção avançou na década e, agora, mais que dobrou em relação às eleições municipais de 2000. Na cidade do Rio, chegou a 35%. Somou 47% em Copacabana, o bairro de maior densidade demográfica.

A recusa voluntária de 1,7 milhão superou a determinação da escolha majoritária nas urnas: Eduardo Paes (DEM) se elegeu com 1,6 milhão de votos, 91 mil abaixo do volume de abstenção. Não ofusca sua vitória acachapante sobre o trêfego pastor-prefeito, desde ontem em súplica por vaga no Ministério de Jair Bolsonaro.

O vírus semeou medo. Foi real o temor da contaminação em Petrópolis. Há 15 dias, a cidade registrava a média de 100 infectados transmitindo para 110 pessoas. Na semana passada, a taxa saltou de 110 para 230. Resultado: abstenção de 35,6%, muito acima do primeiro turno (29,9%).

Mas a pandemia também disseminou empatia. Beneficiou quem ficou contra o pandemônio governamental, o negacionismo fomentado pelo Palácio do Planalto. Bruno Covas (PSDB) esgrimiu com o argumento da Ciência e acabou premiado em São Paulo com um milhão de votos de vantagem sobre o adversário e 400 mil acima do volume de abstenção.

Porém o mais notável efeito pandêmico foi deixar escancarado o desleixo pelo eleitor, que espertos chefes partidários embutem na lei eleitoral.

Há 33 partidos registrados — outros 77 em formação—, todos acomodados numa legislação que impõe bilionário financiamento anual dos partidos, o custeio extraordinário de cada eleição, a propaganda subsidiada em rádio e televisão, além da obrigatoriedade do voto. É dinheiro fácil do Erário e imposição do dever de votar ao cidadão.

Acabou a moleza. A pandemia motivou, e a tecnologia ajudou a facilitar a justificativa de ausência. Na prática, o voto obrigatório já é facultativo. Partidos e candidatos terão de se virar para convencer o eleitor a votar. Caso contrário, assumem o risco de declínio na representatividade eleitoral, fórmula certa para a crise permanente.


Vinicius Torres Freire: Boulos e como jovens e velhos decidem as eleições de São Paulo

Eleitor de mais de 60 é cada vez mais relevante e vota à direita; jovens são inconstantes

Em São Paulo, a disputa principal foi sempre entre esquerda e direita desde que a cidade voltou a eleger seu prefeito, em 1988. O voto dos mais velhos é sempre marcadamente mais direitista. Mas em poucas vezes a maioria dos mais jovens votou na esquerda; em poucas vezes o voto dos idosos teve um peso tão decisivo quanto deve ter no segundo turno deste ano, entre Bruno Covas (PSDB) e Guilherme Boulos (PSOL).

É entre os eleitores de 60 anos ou mais que Covas abre sua maior vantagem sobre Boulos, consideradas as categorias maiores e mais tradicionais em que as pesquisas dividem o eleitorado (sexo, idade, renda, instrução) e com dados comparáveis com os levantamentos mais antigos.

Na pesquisa Datafolha mais recente, de 24 e 25 de novembro, Boulos vence Covas entre os eleitores de 16 até 44 anos; entre o eleitorado de 16 até 59 anos, empatam. Entre aqueles de 60 anos ou mais, o tucano vence de longe, por 61% a 28% (ou 68% a 32%, nos votos válidos).

Além da diferença percentual grande, a diferença absoluta é importante. A população paulistana envelhece. No Censo de 1991, os paulistanos com 60 anos ou mais eram 11,6% do total da população com mais de 16 anos (agora apta a votar). Em 2010, eram 15,3%. Em 2019, eram 21,7%.

Há, claro, outras maneiras de entender as vantagens que Covas tinha sobre Boulos no início da semana. O tucano vence entre os que fizeram até o ensino fundamental (57% a 31% nos votos totais) e entre os mais pobres. Na conta total dos votos, porém, essas diferenças são inferiores àquela que Covas obtém entre os “idosos”.

A esquerda ganhou a eleição paulistana com folga ou endureceu o jogo quando ao menos dividiu com a direita os votos de mais pobres e menos escolarizados, é fácil de entender. Boulos disputa palmo a palmo o povo de renda mais baixa. Mas fica longe entre quem passou poucos anos na escola. Os mais jovens de qualquer classe não vão resolver o problema eleitoral do psolista, pois.

De 1988 até 2000, petistas enfrentaram os malufistas. De 2004 a 2016, foi o tempo de petistas vs. tucanos e agregados. Agora, é PSDB contra PSOL.

Houve tempo em que os malufistas venceram em todas as categorias relevantes, entre os mais jovens e os mais pobres inclusive, como quando Celso Pitta (PPB) bateu Luiza Erundina (PT), em 1996, ou na pesquisa de uma hipotética disputa final entre João Doria (PSDB) e Fernando Haddad (PT), em 2016, quando Doria levou no primeiro turno.

Os mais jovens estavam divididos quase igualmente entre o vitorioso Paulo Maluf (PDS) e Eduardo Suplicy (PT) em 1992, entre o vencedor, José Serra (PSDB), e Marta Suplicy (PT), em 2004, e entre o eleito Gilberto Kassab (DEM) e Marta, em 2008.

Os jovens votaram na esquerda mesmo apenas quando Marta ganhou em 2000 e Haddad em 2012. Na verdade, nessas eleições os petistas ganharam em quase todas as categorias, exceto entre os “idosos” (e, em Haddad vs. Serra, exceto entre os mais ricos).

Na eleição em que Erundina bateu Maluf, em 1988, as pesquisas de véspera davam quase empate entre os mais jovens. Mas não se sabe bem o que se passou. Erundina, agora vice de Boulos, virou a eleição nos últimos dias e não havia segundo turno.

Em suma, o peso crescente do “idosos” e sua preferência regular e marcada de votar à direita fazem desse eleitorado força decisiva especial. Note-se ainda que não conseguir falar com muitos dos eleitores que passaram menos anos na escola e sempre confundi-los com os mais pobres é outro problema para a esquerda.


Merval Pereira: Contra a democracia

O presidente Bolsonaro entrou em um terreno perigoso ao insinuar, tendo como pretexto o atraso da apuração da eleição municipal pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que não temos um sistema confiável. “Temos que ter um sistema de apuração que não deixe dúvidas”, afirmou a seus seguidores na porta do Palácio da Alvorada. O presidente já havia feito uma afirmação irresponsável em março, denunciando que houvera fraude na eleição de 2018, que ele venceu, e prometeu apresentar as provas.

Agora, ele volta a insinuar irregularidades, e nem se lembra de mostrar as supostas provas que disse que tinha. Com a declaração do ministro Luis Roberto Barroso, ministro do STF e presidente do TSE, de que os ataques cibernéticos que teriam sido repelidos pelo sistema de segurança do tribunal teriam sido praticados pelos mesmos grupos que estão sendo investigados em inquéritos no Supremo sobre distribuição de fake news e manifestações antidemocráticas ao Congresso e ao próprio Supremo, ganha uma dimensão maior a insinuação do presidente Bolsonaro.

Ele estaria dando credibilidade aos boatos que foram espalhados pelas redes de seus apoiadores, com o intuito de desacreditar o sistema de apuração digital. Tal qual um Trump dos trópicos, Bolsonaro lança dúvidas e dá margem a que políticos como a deputada Bia Kicis possa dizer que a explicação para a derrota da extrema direita bolsonarista seria uma grande fraude eleitoral.

A Polícia Federal vai investigar os ataques sofridos pelos computadores do TSE, vindos de servidores da Nova Zelândia, que parecem estar orquestrados com grupos que atuaram também a partir de servidores nacionais. As duas investigações do Supremo estão interligadas e têm o mesmo relator, o ministro Alexandre de Moraes.

O mesmo que, ontem, mandou prender o blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio, que saiu do Rio sem autorização para fazer agitação em São Paulo e terá agora de cumprir a prisão domiciliar com uma tornozeleira.

Embora não fosse possível interferir nas urnas eletrônicas, pois elas não estão em rede, o ataque ao TSE poderia provocar uma demora maior do que o que ocorreu, o que, aí sim, e esse parece ter sido a intenção dos ataques, levaria a uma onda de boatos e fake news que poderia afetar a credibilidade da apuração.

O ministro Barroso insiste em que o atraso de menos de três horas não pode ser transformado em uma crise, muito menos lançar suspeitas infundadas sobre o sistema eleitoral. No oficio que enviou ao diretor-geral da Polícia Federal Rolando Alexandre de Souza, Barroso diz que “os incidentes relatados indicam possível ocorrência de crimes em face ao TSE”.

As investigações dos inquéritos no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre ações ilegais de distribuição massiva de fake news através do WhatsApp nas eleições de 2018 até agora levam a apoiadores de Bolsonaro, e até mesmo a um “gabinete do ódio” que estaria instalado no Palácio do Planalto com o objetivo de articular ações nas redes sociais. É bom lembrar que esses inquéritos do Supremo estão investigando há mais de um ano esses grupos que usam as redes sociais para fazer militância política ilegal, e já têm identificadas diversas milícias digitais. A relação delas com a divulgação de fake news e com ações antidemocráticas contra o Congresso e o Supremo já está demonstrada, e o cruzamento dessas informações demonstra já uma atuação coordenada, assim como os primeiros ataques ao sistema de apuração do TSE também o foram.

Se o cruzamento de informações já existentes levar aos mesmos grupos, ou similares, no caso do ataque ao TSE, estará configurada uma grande conspiração contra a democracia brasileira, com o presidente Bolsonaro no centro.