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Bruno Boghossian: Bolsonaro, Ustra e a 'direita burra'

Qual seria a tal direita iluminada com que Bolsonaro se identifica?

Depois de apanhar nas redes por uma semana, Jair Bolsonaro se irritou com as milícias digitais que costumavam agir a seu favor. Numa transmissão ao vivo, ele disse que os ataques à sua primeira indicação ao STF partiam de "uma direita burra". "Não é infiltrado de esquerda! Não é petista, não!", reclamou.

Em 2018, o candidato extremista que explorou uma agenda ultraconservadora conseguiu se vender como o verdadeiro representante da direita naquela campanha. Hoje, o presidente se sente confortável para questionar a inteligência dos ex-apoiadores que criticam os acordos políticos que ele fechou em busca de proteção para sua família.

Qual seria a tal direita iluminada com que Bolsonaro se identifica? O presidente pode estar pensando na turba que perseguiu uma menina de 10 anos que buscava um aborto legal depois de ser estuprada pelo tio. Ou na ministra de Estado que defendeu que ela levasse a gravidez adiante.

Ainda é possível que a referência destra do chefe de governo sejam os torturadores da ditadura militar. O próprio Bolsonaro, afinal, já usou o cargo para enaltecer o coronel Brilhante Ustra, condenado por sua atuação no regime. Na última semana, o vice Hamilton Mourão disse que aquele era “um homem de honra”.

O presidente também deve atirar na vala da "direita burra" os liberais que veem nele uma desconexão com os princípios econômicos que distinguem governos desse lado do espectro político. O líder ilustrado, por outro lado, já propôs taxar desempregados e reduzir benefícios pagos a idosos miseráveis.

Bolsonaro é um direitista esperto. Embora muitos eleitores desse campo possam estar decepcionados com algumas de suas atitudes, ele sabe que pode contar sempre com o velho apelo ao medo da esquerda para conquistá-los de volta.

"O que o pessoal fez com o Macri?", perguntou, naquela transmissão ao vivo, em referência ao ex-presidente argentino. "Porrada nele o dia todo. E o que aconteceu? Voltou a esquerdalha da Cristina Kirchner!"


Merval Pereira: Crise à vista

A insistência com que o vice-presidente Mourão e o presidente Bolsonaro elogiam o coronel Brilhante Ustra pode provocar uma crise diplomática

À medida que fica cada vez mais claro que Joe Biden provavelmente será eleito o próximo presidente dos Estados Unidos, mais problemática fica a prospecção do relacionamento com o Brasil. No momento, a questão ambiental é o principal obstáculo a uma relação equilibrada com os americanos, e o comentário de Biden sobre as queimadas da Amazônia é exemplar dessa dificuldade.

Mas outro ponto de divergência pode ser a questão das torturas durante a ditadura militar no Brasil. Ontem, o vice-presidente Hamilton Mourão insistiu em elogiar o Coronel Brilhante Ustra, único militar condenado por tortura.

Biden, quando era vice-presidente de Obama, revelou a BBC News, esteve no Brasil para entregar pessoalmente à presidente Dilma documentos sobre torturas e ilegalidades cometidas durante a ditadura militar no Brasil, entre os quais alguns que identificam Ustra como torturador contumaz.

Segundo a reportagem da BBC News Brasil, um HD com 43 documentos produzidos por autoridades americanas entre os anos de 1967 e 1977, a partir de informações passadas não só por vítimas, mas por informantes dentro das Forças Armadas e dos serviços de repressão. Para Bolsonaro, no entanto, Ustra é “um herói brasileiro” e para Mourão “um homem de honra”.

O presidente Bolsonaro reagiu à insinuação de Biden de que sérias sanções econômicas serão definidas caso a situação do desmatamento da Amazônia não melhore no Brasil. Nem mesmo a eventual captação, comandada pelos Estados Unidos, de uma verba bilionária para ajudar o combate aos incêndios e ao desmatamento foi considerada boa perspectiva pelo governo brasileiro, que se apressou a dizer que não está à venda, vendo na proposta de Biden a intenção de subjugar, não ajudar.

O vice-presidente Hamilton Mourão também comanda o Conselho Nacional da Amazônia Legal, e estará no centro de qualquer desavença que surja nessa área ou em outros setores, como o incômodo da nova gestão democrata com ditaduras militares que Bolsonaro e Mourão não se cansam de elogiar.

Em uma entrevista à Deutsche Welle, o vice-presidente Mourão foi duramente questionado sobre o fracasso do combate às queimadas na Amazônia, sobre a pandemia da Covid-19, que já fez cinco milhões de infectados e quase 150 mil mortes no Brasil e, por fim, sobre os elogios dele e de Bolsonaro ao Coronel Ustra, condenado como torturador.

Mourão tentou driblar todas as perguntas passando uma visão tranqüilizadora da situação do país, mas não quis escapar da questão sobre as torturas, embora fizesse questão de colocar-se, e ao governo brasileiro, contra a prática: “O que eu posso dizer sobre o homem Carlos Alberto Brilhante Ustra é que ele foi meu oficial comandante durante o final dos anos 70 e ele foi um homem de honra que respeitava os direitos humanos de seus subordinados. Então, muitas das coisas que as pessoas falam dele – posso dizer porque tive amizade muito próxima com ele — não são verdade.”

Os documentos entregues por Biden foram utilizados na Comissão da Verdade: "Espero que olhando documentos do nosso passado possamos focar na imensa promessa do futuro", disse o então vice-presidente dos Estados Unidos. A Comissão da Verdade é outro ponto de irritação por parte de Bolsonaro, que nega a validade de suas revelações.

"Esse é um dos relatórios mais detalhados sobre técnicas de tortura já desclassificados pelo governo dos Estados Unidos", afirmou à BBC News Brasil Peter Kornbluh, diretor do Projeto de Documentação Brasileiro do Arquivo de Segurança Nacional Americano, em Washington D.C.

Ainda de acordo com Kornbluh, "os documentos americanos ajudam a lançar luz sobre várias atrocidades e técnicas (de tortura do regime). Eles são evidências contemporâneas dos abusos dos direitos humanos cometidos pelos militares brasileiros”.

A insistência com que o vice-presidente Mourão e o presidente Bolsonaro elogiam o coronel Brilhante Ustra pode provocar uma crise diplomática semelhante à ocorrida no governo Geisel, quando o democrata Jimmy Carter deu uma guinada na política de Direitos Humanos nos Estados Unidos.