terceira via

Marco Aurélio Nogueira: Oliveiros Ferreira, uma ausência sentida

Oliveiros ficou quase meio século vinculado ao Estadão, como editorialista, redator chefe e diretor

Marco Aurélio Nogueira / O Estado de S. Paulo

Nos momentos mais agudos de crise e confusão institucional, muitos o procuravam, em busca de uma opinião diferenciada, fora do mainstream, uma compreensão mais abrangente da vida.

Oliveiros S. Ferreira (1929-2017), que faleceu há exatos quatro anos, é uma voz cuja ausência nos faz falta. Heterodoxo, provocador, observador atento dos processos políticos e de seus bastidores, era um intelectual completo, que não fugia da responsabilidade de trabalhar com ideias. Não evitava as críticas, gostava de atrai-las, transformando-as em alimento para as próprias elucubrações.

Oliveiros ficou quase meio século vinculado ao Estadão, como editorialista, redator chefe e diretor. Trabalhou também como professor na USP (desde 1953), na PUC, na Unesp. Notabilizou-se como um dos pioneiros no estudo das relações internacionais. Foi meu orientador no doutoramento, período em que descobri quanto ele era um intelectual diferenciado, que reunia o erudito ao analista político minucioso, os grandes quadros interpretativos aos fatos cotidianos muitas vezes apagados pela valorização unilateral das estruturas. Era um professor cativante, sabia ensinar e instigar, atiçava os estudantes com suas elipses e metáforas.

Ainda hoje me valho da “teoria das posses essenciais” (das almas, dos corpos, do poder, do excedente), que fundamentava a ciência política de Oliveiros. Nela havia influências múltiplas: Durkheim, Weber, Marx, Ortega y Gasset, Rosa Luxemburgo, Oliveira Viana, Hobbes, Maquiavel, Clausewitz, Rousseau, Trotsky, Gramsci. Ao marxista italiano, Oliveiros dedicou estudo sistemático, convencido de que Gramsci era um vigoroso pensador do Estado. Sua tese de livre-docência, defendida na USP, foi uma leitura dos Cadernos do Cárcere de Gramsci. Oliveiros deu-lhe o título de Os 45 Cavaleiros Húngaros, numa remissão à história dos soldados húngaros que, em reduzido número, submeteram a população inteira de uma cidade.

Em seu pensamento, a teoria social, as relações internacionais, a História e a política mantinham-se sempre articuladas. Estava convencido de que não pode haver teoria política sem Sociologia, o “nacional” é sempre parte do “global” e os fatos políticos devem ser compreendidos “à luz do Espaço e do Tempo em que se

Hoje, o intelectual poderia dizer que a ascensão da extrema-direita populista ‘prostituiu’ o Estado e suas instituições

dão”, da “densidade e do volume dos grupos sociais” que se relacionam e lutam entre si.

Em momentos de crise como o que enfrentamos hoje, a teorização de Oliveiros é esclarecedora. A dominação política não se reduz a posses materiais e uso da força. Domina quem exerce uma “direção intelectual e moral” (Gramsci), ou seja, unifica pensamento e vida prática, emoções, valores e interesses, de modo a soldar “as experiências de vida num projeto votado a transformar o mundo, ou a conservá-lo aparentemente como tal”, escreveu Oliveiros.

Assim ele chegava ao Estado, o ente que organiza, define uma ordem normativa, garante a soberania. O Estado, para ele, era unidade de decisão e ação, mas também um “espaço” onde as classes sociais lutavam para se tornar dirigentes, ou seja, um lócus de disputa hegemônica, no qual venciam os que conseguissem elaborar uma concepção do mundo que alcançasse o “grande número” e neutralizasse os adversários.

Oliveiros foi um unitarista preocupado em ver o Estado como articulador da sociedade, defensor de seu território e de seu patrimônio. Pensou a política a partir desse registro, sem nunca aceitar que em nome da unidade estatal (ou do “amor pela Pátria”) se aniquilassem as diversidades regionais, a cultura e a democracia.

Para ele, no Brasil, as classes sociais não souberam unir politicamente o País e sobrecarregaram o Estado. Passamos a viver sob a sombra ameaçadora de ditaduras e guinadas autoritárias. Com isso, um pedaço da estrutura estatal – os “militares” – terminou por agir com maior desenvoltura política, como Oliveiros salientou no livro Os elos partidos (2007).

Após a democratização dos anos 1980, o capitalismo se reorganizou, a sociedade se diferenciou e o País enveredou por trilhas inquietantes. Piorou com a eleição, em 2018, de um governo que age sem responsabilidade, limites e escrúpulos. Oliveiros poderia dizer que a ascensão da extrema-direita populista “prostituiu” o Estado e suas instituições. A política deixou de fixar grandes objetivos nacionais com que alimentar os órgãos do Estado e, por meio deles, chegar à população. Oliveiros estaria atento aos fatos, mobilizando sua “dialética da Ordem” para analisar o que muda e como pode mudar a realidade.

Hoje, ainda falta ao Brasil a solução de seu enigma fundacional: a organização autônoma da sociedade e a articulação entre Estado e vida social. Continuamos sem sujeitos capazes de promover “políticas dirigidas para o futuro”.

Oliveiros ajudou-nos a compreender melhor o mundo em que vivemos. Foi uma referência para jornalistas e cientistas sociais, para os que se dedicam à ciência política e às relações internacionais sem esquemas atrofiadores. Sua ausência faz uma falta danada.

*Professor titular de teoria política da Unesp

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,oliveiros-ferreira-uma-ausencia-sentida,70003876927


Alon Feuerwerker: A força do convencimento

Eleição brasileira de 2022 ameaça ser um caso típico. O espectro político está dividido em três grandes campos

Alon Feuerwerker / Veja / Análise Política

O sistema político-eleitoral brasileiro, a exemplo das engenharias de qualidade duvidosa, tem uma falha estrutural: o processo de escolha dos governantes procura contornar o debate sobre o que farão caso eleitos. E isso é potencializado pela esperteza dos diretamente interessados: quanto menos se antecipa o plano de ação, teoricamente mais liberdade de ação haverá.

A eleição brasileira de 2022 ameaça ser um caso típico. O espectro político está dividido em três grandes campos. Uns querem evitar a volta de Luiz Inácio Lula da Silva. Outros desejam impedir a continuidade de Jair Messias Bolsonaro. Outros ainda propõem ao eleitor derrotar ambos. E, portanto, escolher algo ainda desconhecido, mas que segundo esse campo certamente será preferível às duas alternativas.

A crítica aqui não pretende ser moral, pois os políticos estão apenas escolhendo o caminho aparentemente mais fácil. Como quando o votante é convencido a votar no “novo”, em contraposição ao “velho”. Foi mais ou menos o ocorrido em 2018. E nem dá para condenar o eleitor que de tempos em tempos decide fazer uma faxina, a única atitude à mão diante do descalabro geral, real ou construído no imaginário.

Mas, infelizmente, a conta tem sido pesada. A experiência brasileira com a democracia representativa instituída em 1984-85 não vem sendo boa. Os donos da pátria declaram dia sim outro também o apreço pela Carta de 1988, mas o produto do sistema por ela formalizado é uma cena persistente de baixo crescimento econômico, resiliência da desigualdade social e desorganização política.

Qual a conexão entre as duas coisas, um método de escolha dos governantes baseado na obscuridade e as imensas dificuldades para enfrentar os desafios históricos do Brasil? Toda. Um poder político não se sustenta só no convencimento pela força, precisa da força do convencimento. O processo de escolha do líder é a oportunidade para reunir a musculatura política necessária ao enfrentamento de interesses encastelados na economia e na política.

E aqui se explica aquele “teoricamente” no primeiro parágrafo. O líder que se acha esperto, e surfa só a rejeição do outro para ascender, percebe rapidamente nos espelhos do palácio a imagem de um pato manco prematuro, ocupado somente em sobreviver, enquanto observa o poder de decisão sobre as políticas governamentais ser retalhado por concorrentes que não foram eleitos para tal, mas reinam, inclusive por antiguidade, sobre o Estado real.

E o problema multiplica-se quando o governante, por erros ou circunstâncias, tanto faz, entra num ciclo de dificuldades novas e crescentes. É a hora em que talvez olhe para trás e note a sabedoria do ditado, que dizem ser mineiro e segundo o qual esperteza quando é muita vira bicho e come o dono. E costuma ser o momento do vale-tudo. No qual única a pergunta que não apenas o líder, mas o grupo, se coloca é: “o que devemos fazer para continuar?”.

E ai de quem ousar lembrar “mas isso não é o contrário do (pouco) que dizíamos que faríamos?”.

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Publicado na revista Veja de 27 de outubro de 2021, edição nº 2.761

Fonte: Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/10/a-forca-do-convencimento.html


Bolsonaro sacrifica o Orçamento para salvar sua popularidade

Benefícios sociais para eleitorado esquecer descalabros da pandemia: será que vai funcionar?

DW Brasil

Governo passa por cima das regras orçamentárias a fim de abrir comportas para gastos sociais e presentes eleitoreiros antes de 2022. Os mercados financeiros reagem com severas turbulentas. E talvez seja tudo em vão.

O fato de o banqueiro e economista seguidor da Escola de Chicago Paulo Guedes estar no governo de Jair Bolsonaro era para a economia algo assim como a garantia de que o presidente adotaria um curso de reforma liberal. Porém as esperanças de que, apesar de ter como chefe o capitão da reserva, Guedes conseguiria impor esse curso há muito se desfizeram.

Desde o começo desta semana, ficou evidente que Guedes tampouco impedirá  altas orçamentárias acima do limite permitido por lei. Com manobras grosseiras, agora o governo quer alterar o teto de gastos, que estava claramente fixado pelo orçamento público de 2020, corrigido pela inflação.

Por um lado, Bolsonaro propõe considerar a inflação mais alta de janeiro a dezembro de 2021 (em vez da dos 12 meses até junho último), a fim de poder gastar mais. Por outro, quer possibilitar por emenda o parcelamento de precatórios, aumentando ainda mais o campo para gastos. O teto só foi introduzido em 2017 e proporcionou ao Brasil os juros mais baixos de sua história econômica. Agora isso acabou.

Pânico nos mercados financeiros

Em protesto, nesta quinta-feira (21/10), quatro secretários do Ministério da Economia – três economistas e uma economista – anunciaram inesperadamente sua renúnica. Supõe-se que estão deixando o governo agora para no futuro não serem penalizados por terem ignorado as regras orçamentárias.

Os mercados reagiram com choque aos pedidos de exoneração: desde o início da semana – quando se acumularam os boatos de que o governo desrespeitaria o teto de gastos –, o índice da bolsa de valores de São Paulo caiu 10%; o dólar subiu quase 5%; os juros nos mercados de futuro saltaram para mais de 12%.

Em resumo: os investidores reagiram com pânico, temendo a reação em cadeia que agora, após a quebra das regras orçamentárias, se materializa. Assim, o Banco Central provavelmente terá que elevar em breve a taxa Selic para mais de 10% (dos atuais 6,25%), como única forma de manter a inflação abaixo do limite de 5%, até o fim de 2022.

O encarecimento geral já passa de 10%, no momento; os preços da cesta básica chegaram a aumentar 16% nos últimos 12 meses. Além disso, a desvalorização do real aumenta a pressão inflacionária.

Como o Banco Central terá que manter por mais tempo ainda os juros altos, os bancos de investimentos reduziram a menos de 1% os prognósticos de crescimento para 2022 (depois de 5% no ano corrente). O desempenho econômico segue cerca de três pontos porcentuais abaixo do nível de 2014, o último ano de crescimento.

Aumento de popularidade improvável para Bolsonaro

O motivo para a alteração da fórmula do teto de gastos são os esforços de Bolsonaro contra sua queda de popularidade. No relatório final da CPI no Senado, o presidente acaba de ser incriminado por cometer nove delitos no decorrer da pandemia de covid-19.

Para desviar as atenções da situação deplorável, ele pretende aumentar o auxílio às classes de renda mais baixa já um ano antes das eleições, visando impulsionar sua pouca popularidade entre os pobres. No ano da pandemia 2020, ele conseguiu incrementar sua popularidade, justamente junto às classes de renda mais baixa, com generosos benefícios sociais.

Mas será que vai conseguir repetir a proeza? O desemprego está estagnado num nível alto, de cerca de 14%, a ocupação só cresce no setor informal, onde, porém, se paga menos. A massa salarial dos brasileiros caiu em 2021 6%, em relação ao ano interior. E, tradicionalmente, o consumo é o motor do crescimento.

Acima de tudo, entretanto, a inflação alta deverá prejudicar de forma duradoura a popularidade de Bolsonaro: os pobres são, de longe, os mais afetados pela desvalorização. Os R$ 400 do novo Auxílio Brasil não vão adiantar muito.

Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/an%C3%A1lise-bolsonaro-sacrifica-o-or%C3%A7amento-para-salvar-sua-popularidade/a-59600777


William Waack: Falta um sonho para o posto de candidato da terceira via

O problema da terceira via não é a quantidade de eleitores, mas o que dizer a eles

William Waack / O Estado de S. Paulo

Não se sabe se a questão está suficientemente clara para os postulantes ao posto de candidato da terceira via, mas o problema é muito mais de conteúdo do que de espaço eleitoral. As pesquisas indicam claramente a existência de um grande “buraco” entre os blocos consolidados a favor, respectivamente, de Bolsonaro e de Lula. Contudo, esses números enganam.

Na conta simples o “centro” abarca no mínimo um terço do eleitorado. Bastaria então ampliar esse “meio entre os extremos” para tirar Bolsonaro do segundo turno e formar uma “união nacional” para derrotar o hoje favorito Lula. Que o “centro” esteja fortemente dividido entre vários postulantes é normal neste momento da corrida eleitoral. A popularidade ou rejeição de cada um deles parece oscilar em função do “recall” de eleições recentes ou do fato de alguns serem relativamente desconhecidos.

Mas bastante preocupante do ponto de vista de um país preso no momento à escolha entre Bolsonaro e Lula é o fato de as pesquisas qualitativas estarem detectando um inusitado grau de resignação, desinteresse e desilusão (reforçada pela atual polarização) em boa fatia de eleitores de “centro”. A mensagem “nem nem” até aqui não está chegando, o que ajuda a entender o nível de conforto manifestado por articuladores das campanhas de Bolsonaro e de Lula.

A desilusão com os “rumos” do País é marcante nesses levantamentos. Porém, até aqui os postulantes à candidatura de terceira via demonstram incapacidade de formular uma postura política mais próxima ao “sonho” de futuro do que à negação dos pesadelos lulista e bolsonarista. Os especialistas já dizem aos marqueteiros que o “sonho” será essencial para uma candidatura competitiva frente a Bolsonaro e a Lula que, goste-se ou não deles, sabem falar para os respectivos públicos (ou até mais).

Nessas conversas tem sido feito uso recorrente de dois exemplos de campanhas presidenciais brasileiras pós-redemocratização, um bem-sucedido e outro que bateu na trave: Fernando Collor (1989) e Marina Silva (2014). Ambos saíram de patamares baixos e se tornaram competitivos dentro da postulação genérica do “não sou como eles” – uma noção até bastante emotiva do “novo” e “promissor” contra o velho e estabelecido. Em certa medida, Bolsonaro de 2018 também cabia nessa categoria, mas as circunstâncias dessa última eleição são consideradas excepcionais e não há perspectivas de que se repitam no ano que vem.

A desilusão de boa parte do eleitorado é consequência direta de um sistema político e de governo que garantiu a desproporção no voto proporcional e a crise de representatividade – o mesmo conjunto de distorções que, mantidas como estão, impedirá de governar efetivamente qualquer vencedor em 2022. Lula, aliás, já promete reverter a “tomada do poder” pelo Legislativo feita através das emendas do relator, que Bolsonaro entregou bisonhamente ao Centrão.

A natureza da crise brasileira é política, se arrasta há muitas décadas e está desaguando num país capaz de nem sequer corrigir – quanto mais eliminar – as sequelas de sempre: miséria, injustiça social e desigualdade. Não há dúvidas de que a tão falada agenda de produtividade, que implica urgentes e gigantescos investimentos em educação, saúde e qualificação, é a chave para romper a armadilha da renda média na qual o Brasil vegeta há tantas décadas.

Por sua vez, a “chave” da conquista dessa “chave” está no terreno da política, da capacidade de aglutinação através de efetiva formulação do “sonho”. Não é algo que marqueteiros consigam criar: eles são encarregados de executar, com as ferramentas de campanha política, a “visão” que um candidato seja capaz de elaborar. Até aqui o uso mais ou menos eficaz dos lemas “sou o melhor anti-bolsonaro ou anti-lula que existe” não está funcionando. Nem levará à agenda da produtividade sem uma ampla reforma política.

Olhando para o calendário eleitoral formal, que só começa no ano que vem, talvez tudo isso pareça cedo demais para os planos dos candidatos à terceira via. Mas é bom lembrar que não há plano que resista ao primeiro contato com a realidade, e os fatos da política indicam que a terceira via capaz de derrotar Bolsonaro e Lula precisa do “sonho” já.

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,falta-um-sonho,70003867571


Eliane Cantanhêde: João Dória de olho em Moro

Doria contra Leite: ‘A população não quer fazer teste, quer segurança, confiança’

Eliane Catanhede / O Estado de S. Paulo

O mais novo investimento do governador e presidenciável João Doria, de São Paulo, é para tentar atrair o ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sérgio Moro para seu projeto de disputar as prévias do PSDB em novembro e a Presidência da República em 2022. Os dois andam conversando, mas Moro, um poço de indefinição, não diz nada e não descarta nem confirma sua própria candidatura. Além disso, é também disputado pelo União Brasil (resultado da fusão DEM-PSL).

Além do temperamento e da inexperiência política, o tempo corre contra Moro, que tem até o fim deste mês para acertar sua vida com a consultoria em que trabalha depois de deixar o Ministério da Justiça atirando. Ele tem até o dia 31 para dizer se abandona o sonho de ser candidato (à Presidência ou ao Senado), ou se abandona o emprego.

Moro conversa muito, mas não define nada, enquanto João Doria é inabalável na sua decisão – ou obsessão – de disputar a Presidência e tenta arrastar Moro e, junto com ele, toda a sua simbologia no combate à corrupção, para sua campanha. A Lava Jato morreu, mas a aura da Lava Jato ainda paira sobre o eleitorado.

Doria levou para seu governo seis ex-ministros do governo Michel Temer, a começar por Henrique Meirelles, da Fazenda. Também levou o seu vice, Rodrigo Garcia, do DEM para o PSDB e acolheu o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, ex-DEM, hoje sem partido, numa secretaria com dupla personalidade, econômica e política. E convidou para a Saúde Luiz Henrique Mandetta, do DEM, que indicou seu ex-braço direito, João Gabbardo.

Enquanto o governador Eduardo Leite (RS), seu adversário nas prévias do PSDB, esbanja simpatia, princípios e pautas de costumes, Doria dispara uma torrente de números: PIB de 7,5% em São Paulo neste ano, segundo a Fundação Seade, e recuperação de 713 mil empregos de janeiro a agosto, segundo o Caged. Tudo sempre acompanhado de “eu fiz”, ou “São Paulo fez”. O Estado, aliás, aplica R$ 30 milhões em absorventes femininos nas escolas. Ontem, Bolsonaro vetou um programa semelhante para o Brasil...

Ao dizer que o social e a Educação “não são prerrogativas do (ex-presidente) Lula”, novos números: mais R$ 21 bilhões para investir em 2021 e R$ 28 bilhões em 2022, 4,3 milhões de pessoas no “Alimento Solidário”, 2 milhões no “Vale Gás”, de 363 para 1.878 escolas de tempo integral... E uma bandeira de campanha: “Aqui não tem roubo. Não se mete a mão no dinheiro público”.

E a rejeição? Para o mundo político, um grande problema de Doria é exatamente sua rejeição, que é forte em São Paulo e migra para o resto do País. Mas o próprio rejeitado diz que o índice vem caindo há quatro meses e emenda: “Quanto melhor a economia, a renda, o emprego e a vacina, melhor a avaliação (dele) em São Paulo e no Brasil”. A estratégia de Eduardo Leite é transformar suas desvantagens em vantagens – ser muito jovem (36 anos), novato e inusitado. Mas Doria aposta: “A população não quer fazer teste, quer segurança, confiança”.

Se as prévias já não são um passeio, como Doria aparentemente imaginava, a maior pedreira vem depois, seja para ele, Leite ou qualquer opção de “centro” ou “terceira via”. Ao admitir a força eleitoral de Lula, com quem já trocou ácidos desaforos, disse que não menospreza Bolsonaro: “Ele está ferido, machucado, mas tem a caneta e a queda nas pesquisas não é acentuada, é gradual. Logo, será um importante player, vai dar muito trabalho”.

É uma corrida de obstáculos: prévia tucana, polarização Lula-Bolsonaro e uma multidão de candidatos a terceira via, que fica ainda mais congestionada com o União Brasil. Logo, Eduardo Leite é apenas um dos muitos problemas de Doria para sobreviver até o segundo turno de 2022.


Bruno Carazza: Muita água a passar por debaixo da ponte

Pesquisas a um ano das eleições dizem muito pouco

Bruno Carazza / Valor Econômico

Em 4/12/1988, Fernando Collor sequer aparecia nas pesquisas para as eleições presidenciais que iriam se realizar no ano seguinte. Nesse dia o Datafolha apontava Brizola na liderança, seguido de perto por Lula ou Silvio Santos, a depender do cenário.

A um ano da disputa de 1994, Lula ocupava confortavelmente a primeira colocação (31%), com quase o dobro das intenções de voto de José Sarney (16%). Fernando Henrique àquela altura amargava o quinto lugar, com 7%, atrás ainda de Maluf (12%) e Brizola (8%).

Com a emenda da reeleição aprovada, FHC surfava na onda do Plano Real e apareceu, em setembro de 1997, com ampla folga em relação a Lula: 37% a 22%. Maluf tinha 13%, Sarney 11% e o estreante Ciro Gomes apenas 5%.

Quatro anos depois Lula já surgia com chances de finalmente vencer uma eleição presidencial: com 30%, o petista estava bem à frente de Ciro (14%), Roseana (12%), Itamar (11%) e Garotinho (9%). Serra, que seria derrotado por Lula no segundo turno um ano depois, tinha apenas 7% da preferência dos entrevistados.

Como todos sabem, Lula chegou ao Planalto em 2003, mas em 23/10/2005 ele vivia seu inferno astral. No auge do escândalo do mensalão, sua popularidade despencou a ponto de ficar tecnicamente empatado com Serra (30% a 27%), causando a impressão de que sua reeleição estaria ameaçada. No fim das contas, Serra não disputou o pleito de 2006, e Lula acabou derrotando Geraldo Alckmin (que àquela altura tinha 16% nos levantamentos do Datafolha).

Sem Lula no páreo, em dezembro de 2009 as pesquisas indicavam a liderança de Serra (37%), bem à frente de Dilma (23%), Ciro (13%) e Marina (8%). Deu Dilma.

E quando a petista foi buscar um novo mandato, sua liderança a um ano da campanha de 2014 era bastante sólida. Com 40% em média nas pesquisas, tudo indicava que ela bateria com facilidade Marina (que tinha em torno de 30%), Serra (20 a 25%) ou Aécio (20%), e Eduardo Campos (15%). Ninguém imaginava que a disputa do ano seguinte seria tão equilibrada nos dois turnos - sem falar no trágico acidente que vitimou o então governador pernambucano.

Para completar o quadro, faltando um ano para as eleições de 2018, o Brasil vivia a indefinição jurídica se Lula poderia ou não se candidatar, pois estava preso em Curitiba. Traçando oito cenários diferentes (!), o Datafolha indicava que a vitória ficaria entre o petista (se ele pudesse concorrer) ou, em caso alternativo, com Marina Silva. Naquele momento, 1/10/2017, em todos os prognósticos Bolsonaro já despontava como presença provável no segundo turno, com quase 20% de apoio.

Bolsonaro surpreendeu ao chegar ao poder com um partido nanico e poucos segundos de propaganda eleitoral, sem alianças nos Estados e com uma arrecadação baixíssima para os padrões brasileiros.

A principal conclusão dos números acima é que as pesquisas de intenção de votos, realizadas com um ano de antecedência, não servem como guia confiável para o resultado definitivo das urnas.

Parafraseando os panfletos de aplicações financeiras, desempenho passado não é certeza de ganho futuro. Pesquisa eleitoral é fotografia de momento. Além da estratégia, carisma, propostas e alianças de cada candidato, uma série de outros fatores podem afetar a dinâmica das campanhas, do desempenho da economia à eclosão de escândalos de corrupção, sem falar na contribuição do imponderável.

Nos últimos tempos, vários balões de ensaio foram testados buscando replicar aquilo que seria “o novo normal” da política brasileira pós-Bolsonaro 2018. Sergio Moro, Luciano Huck, Luiza Trajano e agora Datena - todos foram cogitados como alternativa de fora da política, se valendo de popularidade nas redes sociais para alavancar intenção de voto; e aparentemente nenhum deles se viabilizou.

Há um ano das eleições, o quadro vai se consolidando no sentido de que não teremos nenhuma surpresa na urna eletrônica em 2022. Todos já sabemos quem é Bolsonaro, suas ideias e seu modo de governar. Como alternativa, o eleitor deverá contar com Lula, Ciro e um tucano (Doria ou Eduardo Leite). Os demais nomes colocados, todos também advindos da política tradicional, aparecem mais como opções para compor as chapas dos anteriores; parece ser o caso de Simone Tebet, Mandetta, Pacheco, Alessandro Vieira, entre outros.

Mas se engana quem acredita que as pesquisas citadas acima não enviam mensagens para o futuro.

Bolsonaro inicia o ano final de seu mandato com a mais baixa intenção de voto entre todos os presidentes que se reelegeram - FHC tinha 37% em 2001, Lula em torno de 30% em 2009 e Dilma possuía uma média de 40% em 2013, frente aos 25% do atual presidente. A depender de como seu governo vai lidar com a grave crise econômica e a ameaça de apagão, suas chances de chegar competitivo em 2022 podem estar ameaçadas.

Lula, por sua vez, posiciona-se como candidato pela sétima vez (se contarmos com 2018, quando ele foi impedido de disputar) e nunca teve um percentual tão alto de preferência do eleitor nesta altura do campeonato. Seus mais de 40% de agora, portanto, estão mais para teto do que para piso, ainda mais porque Lula ainda não foi confrontado pela imprensa a explicar os escândalos de corrupção e a crise econômica deixados pelas administrações petistas.

Da parte de Ciro, seu desafio é o mesmo desde quando ele se colocou como aspirante a um lugar no Palácio do Planalto pela primeira vez, em 1998: superar a barreira dos 10% das intenções de voto e se mostrar realmente competitivo.

Por fim, resta a opção tucana. A ideia de marcar prévias inéditas constitui a última chance de fazer algum de seus postulantes à Presidência ganhar projeção e se mostrar viável no ano que vem. Ao se mostrarem nacionalmente nos próximos dois meses, digladiando em debates transmitidos pela TV e pela internet, Doria ou Eduardo Leite tentarão repetir a façanha de FHC em 1993 ou Serra em 2001 - sair de um dígito a um ano do pleito e alcançar pelo menos o segundo turno na hora do vamos ver. Mas sem Plano Real.

A se fiar pelas pesquisas das últimas oito eleições, tudo ainda pode acontecer - inclusive nada.

*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”

Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/muita-agua-a-passar-por-debaixo-da-ponte.ghtml


Mathias Alencastro: Três lições da Alemanha

Sucessão de Merkel mostra caminhos para democracias liberais acometidas pela ascensão da extrema direita

Mathias Alencastro / Folha de S. Paulo

Terminou a campanha eleitoral na Alemanha e, pela primeira vez, o partido que sair na frente terá de encontrar pelo menos dois outros aliados para formar o governo. O processo de formação de um novo governo deve se prolongar por alguns meses, mas um cenário de impasse a longo prazo, como nas vizinhas Holanda e Bélgica, parece descartado.

popularidade de Olaf Scholz, apontado em todas as sondagens como o mais preparado para assumir o cargo, assim como o desejo de alternância depois de 16 anos de governo CDU, confere um ascendente à SPD nas negociações com potenciais aliados. O resultado do pleito também traz ensinamentos para todas as democracias liberais acometidas pela ascensão da extrema direita.

A primeira é a resiliência da centro-esquerda. A SPD defendeu o programa mais progressista das últimas décadas, mas apresentou um candidato sóbrio e pragmático, que foi vice-primeiro-ministro e ministro das Finanças nos últimos anos.

pandemia, que muitos esperavam ser um prato cheio para os populistas, acabou reforçando as credenciais dos candidatos versados na administração do Estado. Dada como morta depois da debacle do Partido Socialista francês em 2017, a centro-esquerda está voltando a contar na Europa, com governos da Península Ibérica à Escandinávia, passando agora, provavelmente, pela Alemanha.

A segunda é a dificuldade da direita tradicional diante da emergência da extrema direita. A toda-poderosa CDU não conseguiu recuperar o eleitorado perdido para a AfD, que se manteve acima dos 10% e consolidou sua presença em nível regional. Exceção feita ao Reino Unido, onde Boris Johnson conseguiu federar as direitas em torno do brexit, o campo conservador parece irremediavelmente dividido nas democracias liberais.

Muito se fala do drama da renovação da esquerda, mas a origem da crise de governabilidade europeia tem sua origem no outro lado do espectro ideológico.

A terceira dinâmica é a emergência da crise climática como tema de campanha. De acordo com todos os cenários, os Verdes devem se afirmar como a terceira maior força política e regressar ao governo, depois da experiência bem-sucedida dos anos 1998-2005 liderada pelo lendário Joschka Fischer, àquela altura ministro das Relações Exteriores.

Vencedor destacado na população abaixo de 50 anos, o partido está bem posicionado para encabeçar o governo nos próximos dez anos.

Para o Brasil especificamente, o surgimento da SPD e dos Verdes deve reforçar o ativismo internacional nas questões democráticas e ambientais da Alemanha, sempre muito contida nos tempos de Merkel.

Martin Schultz, um dos principais quadros da SPD e forte candidato a assumir uma pasta ministerial em uma eventual coalizão liderada pelo partido, foi até Curitiba para encontrar o ex-presidente Lula na cadeia. Quanto aos delinquentes neonazistas que Bolsonaro recebeu no Alvorada, eles continuarão sendo irrelevantes no futuro Parlamento.

Esses pequenos sinais também devem ser levados em conta na hora de especular sobre a reação da comunidade internacional em caso de contestação do resultado das presidenciais brasileiras em 2022.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mathias-alencastro/2021/09/tres-licoes-tiradas-da-eleicao-da-alemanha.shtml


A CPI encontrou os documentos, fez a conta e descobriu o CPF dos culpados

As provas que a comissão da pandemia recolheu não vão embora

Celso Rocha de Barros / Folha de S. Paulo

A CPI da Pandemia, que se aproxima de seu fim, provou a ocorrência do maior crime da história republicana brasileira. Encontrou os documentos certos, fez as contas certas e descobriu o CPF dos culpados.

A CPI provou, com documentos, que Jair Bolsonaro se recusou a comprar as vacinas oferecidas pela Pfizer e pelo Instituto Butantan, e que só comprou metade da oferta do consórcio Covax Facility.

Tudo documentado.

Com esse número de vacinas não compradas e os documentos que provam as datas em que elas poderiam estar disponíveis, os cientistas foram trabalhar. Eles sabem o quanto o número de mortes costuma cair conforme a vacinação progride.

Na conta do epidemiologista Pedro Hallal, feita a pedido da Folha, só as vacinas da Pfizer e do Butantan teriam salvado cerca de 90 mil pessoas. Bolsonaro matou essa gente só com duas decisões.

Por sua vez, o jornal O Estado de S. Paulo calculou que, só com as vacinas recusadas do Butantan, todos os idosos brasileiros teriam sido imunizados com duas doses até o fim de fevereiro, estando, portanto, todos imunizados a partir do meio de março. Entre o meio de março e o momento em que a reportagem foi publicada (27 de maio), 89 mil idosos morreram de Covid. Supondo que a mortalidade pós-vacinação de idosos fosse igual à do Chile (20% dos doentes), Bolsonaro matou, com uma única decisão, cerca de 70 mil idosos só entre o meio de março e maio deste ano.

Todas essas contas, que ainda não usam os números de vacinas que Bolsonaro se recusou a comprar do consórcio Covax Facility, foram apresentadas à CPI. O Ministério da Saúde tem gente que saberia refutá-las, se elas estivessem erradas. Ninguém se pronunciou.

A CPI também descobriu o que Bolsonaro estava fazendo em vez de comprar vacina: mandando os trabalhadores brasileiros para a rua para adoecer, mentindo que haveria remédio caso eles ficassem doentes.

A CPI documentou a existência de um gabinete paralelo de médicos estelionatários que, por dizerem o que Bolsonaro queria ouvir, tornaram-se mais influentes do que os técnicos do Ministério da Saúde. Foram eles que promoveram os tratamentos com remédios como a cloroquina, muito depois da ciência ter demonstrado que eles eram ineficazes.

Mais recentemente, veio à luz o caso da Prevent Senior, que executou experimentos em pacientes inocentes com o protocolo bolsonarista de cloroquina e similares. O tratamento fracassou, os pacientes morreram, mas os dados foram falsificados para que não se soubesse que os pacientes haviam morrido de Covid.

Finalmente, a CPI descobriu que o governo Bolsonaro se esforçou para que uma, e só uma, vacina específica fosse aprovada: a Covaxin, que ofereceu suborno à turma do deputado Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo Bolsonaro na Câmara. O negócio foi denunciado antes de ser efetivado, mas não por iniciativa de Bolsonaro.

Em resumo, a CPI provou que Bolsonaro matou mais de cem mil brasileiros, mentiu para eles que haveria remédio caso adoecessem, e acobertou gente de seu governo que tentava roubar dinheiro de vacina.

As revelações da CPI terão algum efeito político? Tem gente poderosa trabalhando para que não. Mas as provas que a CPI recolheu não vão embora. Ficarão lá, à espera de um Brasil que volte a ter instituições que não se vendam nem tenham medo do próprio Exército.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/celso-rocha-de-barros/2021/09/a-cpi-encontrou-os-documentos-fez-a-conta-e-descobriu-o-cpf-dos-culpados.shtml


Fernando Gabeira: Brasil de bolsonaro mostra o dedo para o mundo

O jornal alemão Frankfurter Allgemeine disse que o Brasil mostrou o dedo para o mundo

Fernando Gabeira / O Globo

Era uma alusão à posição negacionista de Bolsonaro, que não apenas recusa a vacina, como quebrou o código de honra da ONU, que esperava um encontro de imunizados. Na verdade, a manchete era uma síntese da atitude de Bolsonaro com a do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que mostrou o dedo para manifestantes contrários ao governo.

A primeira coisa que me ocorreu é que durante muito tempo falamos do brasileiro como um homem cordial. É uma visão idealizada. No entanto jamais poderíamos suspeitar que uma delegação brasileira “mostrasse o dedo para o mundo na ONU”e que isso se transformasse na manchete de um dos principais jornais alemães.

Quando Bolsonaro defendeu a hidroxicloroquina, dizendo que a História e a ciência fariam justiça ao tratamento precoce da Covid-19, lembrei-me de seu esforço no Congresso para aprovar uma pílula contra o câncer, desenvolvida por um pesquisador de São Paulo. Bolsonaro tinha pela fosfoetanolamina a mesma empolgação e é incapaz de se perguntar hoje para quem a ciência e a História deram razão.

Tenho a impressão de que sua confiança na cura mágica cresce com a complexidade do nome do remédio. Certamente se interessou pela proxalutamida.

Dois dias depois do espetáculo de realidade paralela que ofereceu na ONU, Bolsonaro aparece com seis dedos na mão, numa imagem em suas redes sociais. Realmente, falam com os dedos, e essa linguagem foi bem captada dentro da van que levava Marcelo Queiroga. Ele mostrou o dedo médio, numa escolha claramente pornográfica. O chanceler Carlos Alberto França, diplomaticamente, optou pelos dois dedos que simulam uma arma, símbolo permanente do bolsonarismo.

Os seis dedos de Bolsonaro afirmam apenas como ele é mentiroso. Os dedos de Queiroga e do chanceler apontam para a essência da proposta bolsonarista: vulgaridade e violência.

Mas há algo que talvez os jornais estrangeiros não tenham captado. Embora Bolsonaro tenha sido eleito com a maioria dos votos, hoje seu governo é rejeitado por quase 70% da população.

Bolsonaro se orgulha de não ser vacinado. No entanto o Brasil, segundo algumas pesquisas, é o país com mais adesão popular à vacina.

Não vou cair na tentação de reafirmar pura e simplesmente a tese do homem cordial, mas o Brasil, na realidade, não pode ser confundido com o governo. A maioria dos brasileiros, longe de mostrar o dedo para o mundo, estende a mão para a humanidade. Sempre fomos um país solar, e alguns estrangeiros, cativados pela alegria de nossas festas populares, achavam até que a felicidade era um fator associado ao Brasil.

Certamente esgotaria meu espaço discorrer sobre as causas dessa transformação ou mesmo descrever como se gestou o ovo dessa serpente.

O impacto da passagem de Bolsonaro pela ONU me fez lembrar Peter Sellers no filme “Dr. Strangelove”. Bolsonaro falava de vacina, mas uma espécie de força estranha o levava a defender tratamento precoce e a combater passaportes sanitários. Havia um discurso feito para ele, e o braço rebelde que se levantava contra o consenso mundial, o pária que precisa comer pizza no passeio porque não pode entrar no restaurante.

Peter Sellers intepretava um personagem no filme de Stanley Kubrick com essa força contraditória em suas atitudes. De vez em quando, perdia o controle do braço e fazia uma saudação nazista. Se me lembro bem, em determinado momento, ele se levanta da cadeira de rodas e diz: “Mein Führer, posso andar”.

Não quero dizer com isso que Bolsonaro seja nazista. Seria banalizar uma grande tragédia da humanidade.

Seu novo espasmo numa entrevista a extremistas de direita da Alemanha:

—Algumas pessoas com Covid tinham comorbidade. Morreriam de qualquer jeito, dias ou semanas depois.

Mein Führer, consigo andar.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/mostrando-o-dedo-para-o-mundo.html


Gaudêncio Torquato: Brasil vegeta sob o reino da mentira

Hoje, o Bra­sil vive sob o Estado de Direito, mas vegeta sob o Estado da ética e da moral, com um mandatário-mor que nega a ciência

Gaudêncio Torquato / Blog do Noblat / Metrópoles

Há 44 anos, o jurista Goffredo da Silva Telles Jr., falecido no dia 27 de junho de 2009, dando vazão ao sentimento da sociedade brasileira, foi convidado para ler a Carta aos Brasileiros69. O País abria as portas da redemocratização. Hoje, o Bra­sil vive sob o Estado de Direito, mas vegeta sob o Estado da ética e da moral, com um mandatário-mor que nega a ciência, é responsável pela pior gestão da pandemia de coronavírus 19 do planeta, e faz um vergonhoso discurso na abertura da ONU, privilégio que, historicamente, cabe ao Brasil desde 1947.

Em quatro décadas, o País eliminou o chumbo que cobria os muros de suas instituições sociais e políticas, resgatou o ideário liber­tário que inspira as democracias, instalou as bases de um moderno sistema produtivo e, apesar de esforços de idealistas que lutam para pôr um pouco de ordem na casa, não alcançou o estágio de Nação próspera, justa e solidária. O país faz vergonha ao mundo. O baú do retrocesso continua lotado. Te­mos uma estrutura política caótica, incapaz de promover as reformas fundamentais para acender a chama ética, e um governo que prometeu acabar com a corrupção, amarrado às mais intricadas cordas da velha política, usando a extraordinária força de verbas e cargos para cooptar legisladores e partidos, principalmente do Centrão, transformando-se, ele próprio em muralha que barra os caminhos da mudança.

Não por acaso, anos depois o professor Goffredo confessava ter vontade de ler uma segunda carta, desta feita para conclamar pela reforma política e por uma democracia participativa, em que os cida­dãos votem em ideários, não em fulanos, beltranos e sicranos. O velho mestre das Arcadas, que formou uma geração de advogados, tentava resistir à Lei de Gresham, pela qual o dinheiro falso expulsa a moeda boa – princípio que, na política, aponta a vitória da mediocridade so­bre a virtude.

No Brasil, especialmente, os freios do atraso impedem os avanços. Vivemos com a sensação de que há imensa distância entre as locomotivas econômica e política, a primeira abrindo fronteiras, a segunda fechando porteiras. Olhe-se para os Poderes Executivo e Legislativo. Parecem carcaças do passado, fincadas sobre as estacas do patrimonialismo, da competitividade e do fisiologismo. Em seus cor­redores, o poder da barganha suplanta o poder das ideias.

Em setembro de 1993, na segunda Carta aos Brasileiros, o mestre Goffredo escolheria como núcleo a reforma política, eixo da democracia participativa com que sonha. Mas falta disposição aos congressistas para fazê-la. Em 2002, Lula da Silva também leu sua Carta aos Brasileiros, onde pregava uma nova prática política e a instalação de uma base moral. Nada disso foi cumprido. O país continuou a ser um deserto de ideias.

Sem uma base eleitoral forte, os entes partidários caíram na indigência, po­luindo o ambiente de miasmas. Até hoje, os eleitores esperam que as grandes questões nacionais recebam diagnósticos apropriados e propostas de solução para nosso pedaço de chão. Infelizmente, o voto continua a ser dado a oportunistas, operadores de promessas, poucos com ideários claros e correspondentes aos anseios sociais.

A utopia nacional resvala pelo terreno da desilusão. Nesses tempos da CPI da Covid, o Reino da Mentira, descrito pelo senador Rui Barbosa, nos idos de 1919, volta à ordem do dia: “Mentira por tudo, em tudo e por tudo. Mentira na terra, no ar, até no céu. Nos inquéritos. Nas pro­messas. Nos projetos. Nas reformas. Nos progressos. Nas convicções. Nas transmutações. Nas soluções. Nos homens, nos atos, nas coisas. No rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Nas res­ponsabilidades. Nos desmentidos”.

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/o-reino-da-mentira-por-gaudencio-torquato


Alon Feuerwerker: Um Bolsonaro para Bolsonaro? E Moro

Alguém que tire do incumbente a liderança do bloco que vai do centro para a direita, exatamente como o atual presidente fez com o PSDB

Alon Feuerwerker / Blog do Noblat / Metrópoles

Toda previsão no Brasil deveria trazer junto um seguro-imprevisibilidade, mas é razoável supor que entramos num período algo estável, no qual a guerra de movimento vem sendo substituída por uma guerra de posição, e de baixa ou média intensidade. Por uma razão: nem o presidente da República reuniu até o momento força para suplantar os demais poderes nem os opositores acumularam por enquanto massa crítica para depô-lo.

Daí que as atenções comecem a se voltar cada vez mais para a próxima janela de oportunidade na disputa do poder: a eleição. Com uma competição particular entre os candidatos a ser o “Bolsonaro do Bolsonaro”. Alguém que tire do incumbente a liderança do bloco que vai do centro para a direita, exatamente como o atual presidente fez com o PSDB na corrida de 2018. Um PSDB que nas seis disputas anteriores ou ganhara ou pelo menos fora ao segundo turno…

Os dois pré-candidatos tucanos afiaram as lanças esta semana, exibindo suas impecáveis credenciais antipetistas, pouquíssimo tempo após a vaga de opiniões e emocionados apelos pela “frente ampla”. Faz sentido. Para a legenda, a vaga em disputa no segundo turno não é a de Luiz Inácio Lula das Silva, mas a do adversário dele. E os governadores paulista e gaúcho estão num momento de “ciscar para dentro”.

Enquanto isso, o presidente busca um certo reposicionamento, mostrando que a carta redigida em conjunto com o ex Michel Temer não foi raio em céu azul. Tem lógica, pois Jair Bolsonaro não enfrenta concorrência séria no campo da direita. Se mantiver os traços estruturais do discurso, pode tranquilamente fazer movimentos táticos ao “centro”, inclusive por não ter maiores antagonismos com o centrismo. Corre pouco risco de perder substância.

Quanto vai durar a (quase) calmaria? Um palpite é que dure enquanto os dois blocos que hoje travam a disputa mais acalorada, o bolsonarismo e o centrismo, acreditarem reunir potencial de voto para prevalecer em outubro de 2022. Por isso mesmo, seria imprudente apostar todas as fichas num processo eleitoral no padrão dos anteriores, absolutamente estável. Pois alguma hora um desses dois blocos notará que a vaca está indo para o brejo.

A não ser que Lula derreta no caminho. O que por enquanto não está no horizonte.

E os imprevistos? Como dito amiúde, é imprudente desprezá-los. Especialmente diante de um Judiciário fortemente inclinado ao ativismo. Mas eventuais decisões que removam algum contendor manu militari não garantem vida fácil a quem sobrar na corrida. Pois pode perfeitamente acontecer como em 2018: o removido apoiar alguém e manter ocupado o espaço político que se pretendeu deixar vago.

E há outra variável, que ensaia alguns passos, costeando o alambrado: Sergio Moro. As ofertas para ele estão feitas. Com o pulverizado cenário da “terceira via”, a possibilidade de ocupar esse espaço não deixa de ser atraente para o ex-juiz e ex-ministro.

Sobre isso, escrevi em janeiro do ano passado (E se Moro virar o “candidato do centro”?).

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/um-bolsonaro-para-bolsonaro-e-moro-por-alon-feuerwerker


Cristovam Buarque: Centralismo e Desigualdade

O risco de a Federalização provocar a ineficiência do centralismo se 200.000 escolas forem administradas desde Brasília

Blog do Noblat / Metrópoles

Na parede de meu gabinete no Senado coloquei fotos com pessoas a quem admiro. Uma delas, com o economista Ricardo Paes de Barros, porque representa uma nova geração de economistas que se dedicam a entender como reduzir a pobreza, no lugar da orientação tradicional de que a riqueza se espalha automaticamente e elimina a pobreza. Minha admiração vem também do fato que ele faz parte do reduzido grupo de economistas que veem a educação, não a produção, como o vetor do progresso econômico e da distribuição de renda. Ainda mais porque ele é um economista que constrói soluções. Por tudo isto, levo à sério sua crítica ao risco da centralização, se a ideia do Sistema Único de Educação de Base, uma Federalização, for adotada no Brasil.

Pela admiração ao Ricardo Paes de Barros, nosso PB, não poderia deixar de responder aos seus argumentos, com o propósito de aperfeiçoar a ideia.

Seu primeiro argumento é a lista de 10 a 15 municípios que nos últimos anos melhoraram a educação local sem necessidade do Sistema Federal. Sobre isto, é preciso dizer que: 1) isto representa apenas 0,3% dos municípios, muito menos ainda se calcularmos a porcentagem de seus alunos sobre o total dos 50 milhões de alunos na educação de base; 2) os bons prefeitos destes municípios só conseguiram melhorar a educação de suas cidades com o apoio do governo federal, usando Fundeb, merenda, livros didáticos, e com o apoio nacional de entidades como Fundação Lemann, Todos Pela Educação, Fundação Roberto Marinho, Fundação Ayrton Senna, e com a assessoria de pessoas nacionais como o próprio Paes de Barros, Ricardo Enriques, Priscila Crus, Mozart Neves Ramos; 3) mais preocupante é que apesar do avanço destes municípios, quando comparados com os demais, e deles no presente com o próprio passado, nenhum deu o necessário salto para se aproximarem da qualidade dos melhores países do mundo; 4) mesmo melhorando suas escolas públicas, a brecha entre estas e as boas particulares continuam abismais.

Paes de Barros tem razão quando levanta o risco de a Federalização provocar a ineficiência do centralismo, se 200.000 escolas forem administradas desde Brasília. Mas no lugar de negar a ideia sua crítica deve provocar o debate sobre como criar um Sistema Único que promova a equidade em rede nacional, garantindo a necessária descentralização gerencial por escola e a liberdade pedagógica em cada sala de aula. Nada impede que a rede permita gestão descentralizada: a) adotar-se uma carreira nacional federal para o professor, mas deixando a cada escola a escolha do professor que deseja, entre aqueles da carreira nacional, e podendo substituí-los por avaliação local; b) definir padrões nacionais para as edificações escolares, mas cada cidade definindo os padrões arquitetônicos que melhor se adaptem à sua realidade e sua cultura; c) dispor de um currículo nacional, aceitando os necessários ajustes para incluir temas regionais.

Da mesma maneira que devemos considerar o alerta do PB para encontrar um Sistema Único Nacional sem centralismo, devemos analisar sem preconceito, se um Sistema Único Nacional é o melhor caminho para o Brasil ter sua escola com a qualidade das melhores do mundo, e todas elas com a mesma qualidade, independente da renda e do endereço de cada aluno. Precisamos analisar sem preconceito qual é a melhor estratégia, mas todos com o mesmo propósito nacional de qualidade máxima pelos padrões internacionais, e equidade plena entre as escolas independente da renda e do endereço dos 50 milhões de alunos.

*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/centralismo-e-desigualdade-por-cristovam-buarque