suspeição

Janio de Freitas: A conspiração contra a lisura da eleição presidencial não foi de uma figura só

Aos procuradores da Lava Jato e aos juízes nada sucedeu por sua atitude, respectivamente, preparatória e consolidadora do ato de Moro

Nem concluída ainda a votação, o Supremo Tribunal Federal já confirma a parcialidade de Sergio Moro contra o ex-presidente Lula da Silva, e nisso traz dois sentidos subjacentes. Se por um lado recompõe alguma parte da questionada respeitabilidade judiciária, por outro acentua a omissão protetora aos parceiros na deformação, pelo então juiz e a Lava Jato, do processo de eleição para a Presidência.

Muitas vezes identificado com Moro, o ministro Edson Fachin foi, no entanto, o proponente da aprovada anulação das sentenças contra Lula, invocando, entre outras, uma razão obscurecida no noticiário: constatou que o inquérito não encontrou prova alguma que ligasse o caso do apartamento em Guarujá a qualquer ato de corrupção na Petrobras, mas os procuradores fizeram tal acusação a Lula e Moro o condenou por isso. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, do Sul, manteve e até aumentou a condenação, seguindo o conturbado relatório do juiz João Gebran.

Aos procuradores da Lava Jato e aos juízes nada sucedeu por sua atitude, respectivamente, preparatória e consolidadora do ato de Moro. Foi, porém, para fortalecer o truque da falsa conexão Lula-corrupção na Petrobras, que Deltan Dallagnol criou o espetáculo paranoico, na TV, em que situou Lula no centro de um círculo de atos/pessoas, às quais seu nome se ligava. Eram os apontados como criminosos da Petrobras e, no centro, aquele a quem designou como "chefe da quadrilha".

O objeto da condenação —o apê em retribuição a negócio escuso na Petrobras— integrava o colar dos atos criminosos alegados. Mas o Supremo confirma a falsidade da inclusão. Essa constatação que expõe Moro dá oportunidade a outra figura raiada, em que ele e Dallagnol ocupem o centro, com raios projetados até os procuradores. O TRF-4 tem a mesma oportunidade gráfica, com o juiz Gebran ao centro.O juiz, os procuradores, os juízes eram todos um propósito só. Abençoados ora por covardia, ora por semelhança de fins, no concílio do Supremo e pelo procurador-geral da República à época, Rodrigo Janot.Ao menos no plano interno, que do externo o francês Le Monde já cuida sobre conexões de Moro nos Estados Unidos, a conspiração contra a lisura da eleição presidencial não foi de uma figura só.Outros têm contra a Constituição, as leis e a lisura eleitoral, responsabilidades equivalentes ou assemelhadas à de Sergio Moro. Os Conselhos Nacionais da Justiça e do Ministério Público, por sua omissão, ostensiva e elitista, entram nesse rol.

Um dinheiro aí

Bolsonaro se castigando para ler um escrito de autor letrado é cena de humorismo. Empedrado, com medo de cada palavra, olhar de faminto, para mentir no varejo e a granel, desdizer-se, negar-se. É o espetáculo da vergonha sem vergonha. Contudo, rica em motivos.

A recusa estúpida das altas contribuições da Noruega e da Alemanha ao Fundo Amazônia, já nos primórdios do atual governo, pouco depois mostrou servir para afastamento de protestos contra um plano de ação. O pedido de dinheiro, agora, é o complemento do plano.

assecla Ricardo Salles providenciou o desmonte de todo o sistema defensor da Amazônia. Serviço pronto, ou quase. O dinheiro pedido proporcionaria as empreitadas para explorar a Amazônia desguarnecida. Com a facilidade adicional prevista em projeto já na Câmara para liberação dos territórios indígenas à retirada de madeira, criação de pastos e mineração.

Até aqui, nem o desmonte de ser rentável. Quem achar que a proteção a garimpeiros ilegais e desmatadores contrabandistas —como a preservação de seus equipamento determinada por Bolsonaro e a suspensão de multas por Salles— são medidas sem compensações, ainda não chegou ao governo Bolsonaro.

Os ritos

Comandos militares não cessam de repetir que as Forças Armadas são protetoras da Constituição, das liberdades democráticas, dos interesses nacionais, e por aí afora. Diz agora o novo ministro da Defesa, general Braga Netto: "É preciso respeitar o rito democrático". A frase pode ter muitos significados e nenhum. Nos dois casos, é exemplar das formas nebulosas que são, sim, um modo de fazer política.

general Villas Bôas, então comandante do Exército, "respeitou o rito democrático"? Os generais coniventes com as investidas de Bolsonaro contra o Supremo e o Congresso estão "respeitando o rito democrático"? Perguntas e exemplos assim podem ser centenas.

O impeachment, as CPIs e processos criminais têm todos os seus ritos democráticos. As Forças Armadas comandadas pelo general Braga Netto devem, pois, respeitá-los, deixando-os a cargo das respectivas instituições —que não incluem quartéis.


Cristina Serra: Sergio Moro no lixo da história

O Supremo consagrou a vitória do devido processo legal, do Estado de Direito e da justiça

Na sessão do STF que examinou a equivalência entre turmas e plenário como fóruns de decisão da corte, uma rápida discussão entre os ministros Luís Roberto Barroso e Ricardo Lewandovski resumiu o cerne do que estava em jogo: se vale tudo no Judiciário para perseguir e prender inimigos políticos ou se ainda podemos acreditar na prevalência do devido processo legal.

A Vaza Jato mostrou que o ex-juiz Sergio Moro sugeriu pistas, informantes e estratégias aos procuradores da Lava Jato, ou seja, tramou fora dos autos como chefe da investigação. Violou o direito básico do réu a um juiz imparcial e desprezou o código de ética da magistratura.

O ministro Barroso considerou que a Vaza Jato revelou apenas "pecadilhos", "fragilidades humanas", "maledicências". A complacência não passou em branco para Lewandovski, que lembrou outros excessos de Moro muito antes da entrada em cena do hacker e do site The Intercept, como conduções coercitivas e prisões preventivas excessivas.

Acrescento aqui a interceptação telefônica de advogados de defesa e o vazamento do grampo ilegal de conversa entre Lula e a presidente Dilma Rousseff. À época, a ilicitude mereceu apenas leve reprimenda do então relator da Lava Jato, Teori Zavascki, morto em 2017, e o assunto foi encerrado com pedido de "escusas" de Moro. Lewandovski assinalou também que as críticas ao modus operandi do ex-juiz não podem ser confundidas com defesa da corrupção. É uma distorção costumeira e que desqualifica esse debate.

Como o ministro Marco Aurélio Mello se aposentará em breve, espera-se que seja rápido na devolução do caso ao plenário. O Brasil precisa virar essa página. O que importa, porém, já está decidido. O Supremo consagrou a vitória do devido processo legal, do Estado democrático de Direito e da justiça. O ex-presidente Lula, impedido por Moro de concorrer em 2018, está livre para disputar em 2022. E Moro irá para o lugar reservado aos canalhas: a lata de lixo da história.


Ascânio Seleme: Lula parte para o terceiro mandato

Ao confirmar suspeição de Moro, STF reabilitou política e moralmente o ex-presidente autorizando-o a se candidatar e muito provavelmente se eleger outra vez em 2022

Ao confirmar a suspeição do ex-juiz Sergio Moro depois de tê-lo considerado incompetente para julgar Lula, o Supremo Tribunal Federal reabilitou política e moralmente o ex-presidente autorizando-o a se candidatar e muito provavelmente se eleger outra vez em 2022. Não, não haverá tempo para que uma candidatura de centro ou centro-direita surja e cresça a ponto de superar Lula e conseguir vaga no segundo turno. Apenas João Doria pode surpreender. Luciano Huck ficou no espaço. Luiz Mandetta não se consolidou. Moro se dissolveu. E os demais pré-candidatos que apareceram neste espectro eram apenas balões que nem sequer ensaiaram uma alternativa.

A centro-esquerda e esquerda tinham Fernando Haddad e Ciro Gomes. Haddad é Lula. Ciro não deve ser páreo para um Lula que volta revigorado pelo STF. À direita o candidato será mesmo Bolsonaro? Talvez sim. Talvez não. A direita liberal pode encontrar em Lula argumentos para fugir do capitão que muito prometeu em 2018 e pouco entregou. As reformas neste governo não avançaram. Mesmo a reforma da Previdência, aprovada em 2019, foi muito mais mérito de Rodrigo Maia e da Câmara do que de Bolsonaro e do Palácio. Além disso, as constantes ameaças às instituições atrapalham o capitão muito mais do que o ajudam.

O presidente ficará com a extrema-direita, isso com certeza. Neste espaço, só resta ele. Trata-se de uma área tão árida do campo que somente olavistas convictos e puxa-sacos rematados conseguem por ela transitar à vontade. Com eles seguirá parte do eleitorado que se enrola em bandeiras do Brasil e pede o fechamento do Congresso, do Supremo. São minoria, mais velhos e saudosistas ou mais ignorantes e menos informados. Serão acompanhados também pelos que ainda olham para Lula e para o PT e só enxergam corrupção. São muitos, mas as pesquisas revelam que a maioria já percebeu que a alternativa é pior.

O cenário não deixa muita dúvida. O desgaste de Bolsonaro, que deve seguir e ser ainda ampliado pela CPI da Covid, o debilitará política e eleitoralmente, mas dificilmente a ponto de tirá-lo do segundo turno. Esta talvez seja a única forma de Lula não conquistar um terceiro mandato. Se houver um segundo turno entre ele e qualquer outro candidato que não seja o capitão, suas chances de vencer diminuem muito. Como é pouco provável que isso ocorra, Lula e Bolsonaro deverão ir para o segundo turno. E aí, antes de dizer com quem vai o eleitor, é importante observar como se guiarão as forças políticas, os partidos e seus líderes.

Mesmo os partidos que hoje apoiam o governo no Congresso terão de fazer cálculos para decidir com que seguir num segundo turno entre os dois. Se Bolsonaro não estiver muito isolado em 2022, talvez tenha uma meia dúzia de partidos coligados em sua campanha. Mas nesta contabilidade, não se pode dar por certo nem mesmo o apoio do PSL, que só existe por obra do presidente. O Centrão, de DEM, PP, MDB e outros, sabe muito bem para qual canoa deve pular se a sua estiver fazendo água. E a canoa de Lula já abrigou o Centrão antes. Os partidos que formam esta amálgama podem se dividir até o limite do primeiro turno, depois seguem com quem for vencer.

À esquerda, nenhuma dúvida. Talvez Ciro Gomes viaje outra vez a Paris, como já disse que fará na hipótese de ter como opção o PT. Ciro vai, mas o seu partido, o PDT, fica. Seus eleitores também, ou alguém imagina que na ausência de Ciro pedetistas votarão por descuido em Bolsonaro? Os demais partidos que contam, PSOL, PSB, Rede, PCdoB, devem ir com Lula já no primeiro turno. Os demais desaguarão no PT em seguida. Mesmo que Doria anteveja um provável fracasso e prefira disputar um segundo mandato em São Paulo, o PSDB deve ter candidato próprio. Mas no segundo turno não piscará ao emprestar seu apoio à Lula contra Bolsonaro.

Ninguém, a não ser as forças mais retrógradas do país, quer dar mais um mandato ao capitão baderneiro. A experiência foi desastrosa politicamente e trágica do ponto de vista sanitário. O Brasil precisa recuperar sua saúde, sua economia, sua autoestima, o prestígio que um dia teve no mundo. Estes objetivos certamente seriam alcançados, em escalas diferentes, por Doria, Ciro ou Haddad. Os três são melhores, muito melhores do que Bolsonaro, sob qualquer ângulo que se olhe, e o derrotariam num segundo turno. Mas pelo que se desenhou com a decisão do STF, caberá a Lula a tarefa.

A BELEZA DA CPI

Há muitos céticos quanto ao resultado da CPI da Covid. Tantas deram em nada e a coisa agora pode ir pelo mesmo caminho, dizem. Acho que esta não, sobretudo porque o objeto da investigação são os inequívocos malfeitos do presidente e de ministros. As que ficaram no caminho, até sem relatório final, não tinham a gravidade desta. Mesmo que fique menor do que o esperado, a beleza desta CPI é a abundância de luz que ela jogarásobre a tragédia patrocinada pelo governo Bolsonaro. De terça-feira em diante este será o assunto número 1 do país. Os olhos da Nação estarão virados para o Senado. A exposição sobre os membros da comissão será de uma grandeza solar. Qualquer bobagem será anotada. Todos os acertos serão contabilizados. A CPI é política. Seus membros também.

O QUERIDINHO

Engana bem o general Braga Netto.

No período em que comandou as forças de intervenção no Rio, em 2018, foi tratado como o queridinho da cidade por empresários, políticos e mesmo alguns jornalistas. Braga já tinha feito amigos civisem 2016, quando chefiou a segurança da Olimpíada. Aos olhos de muitos parecia um general arejado, moderno, gente dos novos tempos. Bagagem, aquilo era apenas uma fantasia que o general usou temporariamente no lugar da farda.

RESPEITO É BOM

O ex-queridinho disse no nefasto discurso feito na posse do novo comandante do Exército que “o projeto escolhido pelos brasileiros merece respeito”. Boa general, correto. O problema é que o projeto escolhido foi abandonado pelo governo que radicalizou para atender apenas aquela parcela de malucos embandeirados que vão para a rua pedir a intervenção militar. Para que serviriam os ditados se não houvessem verborragias como esta do general? Por isso, caro Braga Netto, “não merece respeito quem não se dá ao respeito”.

LIBERDADE

Além da ameaça dissimulada à CPI da Covid, o general Braga Netto voltou a falar em liberdade. Disse estarem enganados os que acreditam que podem “colocar em risco a liberdade conquistada por nossa Nação”. Se não tivesse outro destino, diria que a mensagem de Braga foi acertada,

já que o Brasil não está disposto a devolver a liberdade que conquistou quando se livrou de outros generais que tomaram o poder pela força.

DOUTOR ZERINHO

Flávio Bolsonaro botou banca. Vai advogar no Distrito Federal. Uma maravilha, gente. Seu primeiro cliente poderia ser a rede LavLev, que em Brasília tem filiais na Asa Norte, no Sudoeste, na Octogonal e no Cruzeiro.

MARINA E A PERERECA

Lula tem razão. Ele e Gleisi assinaram artigo na “Folha” mostrando sua preocupação com o meio ambiente e batendo na política criminosa de Bolsonaro para o setor. Mas é bom não esquecer que o maior ícone ambientalista nacional, a ex-senadora Marina Silva, pediu demissão do Ministério do Meio Ambiente no governo Lula por falta de “sustentação política” para tocar sua pauta. Também não custa lembrar que Lula sempre se queixou da “poderosa máquina de fiscalização” ambiental. Por isso disse, no longínquo 2010, que o Brasil não podia “ficar a serviço de uma perereca”. Criticava a paralisação das obras do Arco Metropolitano do Rio em favor da preservação de um anfíbio que habitava um charco por onde passaria a estrada.

BLABLABLÁ

De qualquer modo, não dá para comparar os pecados ambientais de Lula com os crimes que os vilões mentirosos Jair Bolsonaro e Ricardo Salles cometem diariamente contra o meio ambiente brasileiro. Por isso, aliás, pouca gente levou a sério o discurso hipócrita do presidente na Cúpula do Clima. Na prática, o governo faz exatamente o contrário do blablablá pronunciado. Anitta tem razão, difícil explicar no exterior esse que ela chamou de “desgoverno de bosta”.

CHAUVIN

Se o assassinato de um homem negro por sufocamento tivesse sido cometido no Brasil há um ano, o policial Derek Chauvin a esta altura já estaria de volta à ativa ou, no máximo, cumprindo alguma função burocrática numa delegacia ou num quartel. Logo após o crime, sobretudo se ele tivesse sido filmado, Chauvin seria afastado das ruas e mantido em casa ou detido no quartel, mas com remuneração garantida. Mesmo que a nossa bondosa Justiça visse dolo na ação do policial, se o assassino tivesse bons advogados, usaria os inúmeros recursos disponíveis e permaneceria na boa até o crime prescrever.

QUESTÃO DE AGENDA

Ernesto Araújo alegou ter um “compromisso inadiável” para não participar de uma live organizada na quarta-feira por olavistas notáveis, se é que isso existe. Talvez tivesse que buscar um filho no colégio ou restaurar uma obturação. Fora isso, agenda vazia.

NÃO MANDA NADA

Em razão de nota publicada aqui na semana passada, o presidente executivo da Fetranspor, Armando Guerra, ligou para explicar que a entidade não manda patavina nenhuma na desordem do setor no Rio. Se mandasse, 20 empresas não teriam fechado as portas entre março e dezembro do ano passado, não teria havido R$ 2,8 bi em perda de receitase R$ 1,5 bi de prejuízos no mesmo período.


Malu Gaspar: Anular processos não apaga a história

É dos anos 90 uma das mais bem-sucedidas operações-abafa de um escândalo de corrupção na história brasileira. Numa quinta-feira de 1993, agentes da Polícia Federal descobriram no banheiro da casa de um diretor da Odebrecht em Brasília pilhas de documentos incriminadores. Havia de tudo nas 18 caixas e centenas de disquetes levadas pelos policiais: relatórios sobre negociações subterrâneas, contabilidade de doações não declaradas para campanhas eleitorais, listas de obras com os nomes de políticos, acompanhados de porcentagens e valores, até pedidos de liberação de verbas com assinaturas de prefeitos e governadores, já prontos para ser apresentados pelas próprias empresas à Caixa Econômica Federal.

Vivia-se o auge da CPI do Orçamento. A papelada deu origem a um relatório bombástico, lido em plenário pelo senador José Paulo Bisol, do PSB do Rio Grande do Sul. Bisol, porém, cometeu um erro primário ao propagar que um documento com o organograma formal da empreiteira era, na verdade, um mapa de organização criminosa. 

Em sua reação, Emílio Odebrecht explorou o deslize ao máximo. Numa entrevista coletiva tão performática quanto a leitura de Bisol, acusou o senador de perseguição, ignorância e má-fé. O argumento colou na imprensa da época e mobilizou mais de 300 deputados e senadores para enterrar a CPI. Conseguiram. A única consequência prática do escândalo foi a popularização da expressão “trezentos picaretas”, cunhada pelo então oposicionista Luiz Inácio Lula da Silva para designar os parlamentares.

Dezesseis anos e um mensalão depois, em 2009, os alvos da Polícia Federal foram executivos e dirigentes de outra empreiteira, a Camargo Corrêa. A operação, batizada Castelo de Areia, pilhou um esquema de pagamento de propinas e desvios de recursos de obras como a Refinaria Abreu e Lima, da Petrobras. Segundo a investigação, o dinheiro desviado era remetido ao exterior por doleiros, usando empresas de fachada e contas offshore em paraísos fiscais. Mas a investigação acabou anulada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A corte considerou que as provas coletadas não eram válidas porque a apuração começara a partir de uma denúncia anônima.

Em 2014, o esquema voltou à tona. Descobriu-se, de novo, que as empreiteiras patrocinavam campanhas eleitorais e interesses particulares de políticos de todos os calibres e partidos com o dinheiro desviado de estatais como Petrobras, Eletrobras e Transpetro. Batizado petrolão, o escândalo deu impulso à Operação Lava-Jato.

Dessa vez, as investigações foram mais longe. Renderam 295 prisões, 140 delações premiadas, a devolução de R$ 4,3 bilhões aos cofres públicos e impulsionaram um processo de impeachment. Mas, como nos outros casos, o dia da desforra chegou. A revelação dos desvios indicados nas mensagens de celular trocadas por procuradores — e captadas ilegalmente por um hacker — criou um clima favorável à anulação de condenações e denúncias.

Sob o argumento de que o foro em que tramitavam não era o correto, foram anuladas as condenações dos ex-presidentes Lula e Michel Temer e do ex-ministro Moreira Franco. O mesmo argumento levou à suspensão de ações contra o atual presidente da Câmara, Arthur Lira. Questões processuais já tinham enviado para a gaveta o processo contra o senador José Serra.

Todas essas decisões, comemoradas efusivamente por uns, discretamente por outros, têm enorme serventia político-eleitoral, ajudam a construir narrativas. Mas, embora a morte dos processos por inanição seja bastante provável, ainda é cedo para dizer que a Justiça tenha decretado a inocência de quem quer que seja. Fernando Collor de Mello, afastado da Presidência da República em 1992, só foi declarado inocente pelo Supremo — por falta de provas —em 2014.

Por ora, tais desfechos só provam mesmo duas coisas. 

A primeira é que, no Brasil, quando o assunto é corrupção, a história se repete. Escândalos abalam a política, as investigações apontam culpados e, mais cedo ou mais tarde, os processos são sepultados por decisões judiciais que raramente entram no mérito das acusações. 

A segunda, e mais importante, é que a história não se anula, muito menos a canetadas. Por mais que se queira esquecê-la ou distorcê-la, de tempos em tempos ela volta a nos assombrar. Quando isso acontece, acumulam-se os prejuízos, aumenta a insegurança jurídica e se reforçam narrativas políticas cada vez mais simplistas e muitas vezes irresponsáveis.

A história cobra um preço alto quando se ignoram suas lições. Quem paga somos todos nós. E não só com dinheiro, mas com um pedaço do nosso futuro.


Merval Pereira: Cabeça de juiz

A novela do julgamento de Lula pode chegar a um fim hoje, se o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entender que a Segunda Turma, que decidiu pela suspeição do então juiz Sergio Moro, poderia fazê-lo mesmo antes de ser definida a questão da competência da Vara de Curitiba nos julgamentos da Lava-Jato.

Mas, como em cabeça de juiz ninguém sabe o que se passa, a dizer que julgam com independência — a evolução da tecnologia médica não permite mais dizer que não se sabe o que tem em barriga de grávida nem em fralda de bebê —, existem algumas situações peculiares neste julgamento de hoje.

O decano do STF, ministro Marco Aurélio, não concordou com a afetação do processo ao plenário, mas, vencido pela “douta maioria” — nesse caso não tão douta assim, na sua opinião —, já votou a favor da manutenção dos processos em Curitiba, e pode votar outra vez, já que disse que a suspeição de Moro é bem mais importante. O ministro é sempre elogioso ao trabalho de Moro na Operação Lava-Jato e, com seu voto, pode ajudar a impedir que seja confirmada a suspeição dele.

O ministro Alexandre de Moraes disse na sessão anterior que não é possível afirmar que o julgamento pelo plenário significa desrespeito ao princípio do juiz natural: “A estrutura da Corte privilegia o plenário, e as turmas só foram criadas devido ao excesso de trabalho do tribunal”. Com essa posição, é provável que defenda que o plenário tem preferência às turmas. Mas não significa que concorde ou não com a suspeição de Moro.

A ministra Rosa Weber convocou para assessorá-la durante o julgamento do mensalão o juiz Sérgio Moro, que era famoso apenas no círculo jurídico como especialista em combate à corrupção, não a celebridade de hoje. Ela tem melhores condições que qualquer outro para julgar se Moro é um juiz suspeito.

O ministro Nunes Marques é contabilizado como um dos quatro votos certos a favor de que a Segunda Turma tinha condições de julgar a suspeição naquela sessão, pois votou na ocasião, embora contra, para surpresa do ministro Gilmar Mendes. Mas pode alegar que, hoje, com a decisão tomada pelo plenário sobre a incompetência da Vara de Curitiba, considera que aquela questão se sobrepõe à suspeição.

Como ressaltou a ministra Cármen Lúcia, o plenário não é órgão revisor das turmas. Mas, nesse caso, seria uma análise técnica, não uma revisão. *

Nesse caso, o resultado é imprevisível. Já temos três votos pela suspeição dados na Segunda Turma —Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski — e um a favor de Moro, por Nunes Marques. Alguns ministros já se pronunciaram favoravelmente em várias oportunidades sobre a Operação Lava-Jato, como o presidente Luiz Fux e os ministros Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio Mello. Assim como fizeram, contra, os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.

Na visão de Fux, a discussão envolvida no caso é relevante, pois pode afetar outros processos da Lava- Jato e “atingir um grande trabalho feito pelo Supremo Tribunal Federal no combate à corrupção”. A sombra que paira sobre o julgamento, os diálogos entre os procuradores de Curitiba e o juiz Sergio Moro divulgados depois de ter sido roubados por um hacker, sofreu um golpe com o laudo da Polícia Federal afirmando que não há possibilidade técnica de atestar sua veracidade ou origem. O laudo não apagou da mente dos ministros a impressão causada, mesmo que digam que não o usaram nas decisões, mas colocou concretamente a possibilidade de que tenham sido alterados.

A suspeição de Moro no caso do triplex do Guarujá criará uma situação esdrúxula: o ex-presidente da empreiteira OAS Léo Pinheiro, que confessou ter dado o apartamento a Lula em troca de benefícios recebidos durante seu governo, será também absolvido, assim como o ex-executivo Agenor Franklin Medeiros, ambos condenados no mesmo processo. O mesmo acontecerá nos demais processos contra Lula, caso o benefício seja estendido a eles pelo ministro Gilmar Mendes, novo relator da Lava-Jato na Segunda Turma do STF.


Celso Rocha de Barros: Como Bolsonaro reagirá a Lula?

Presidente dirá que causou a recuperação gerada pela vacinação que sabotou

Como disse em meu artigo publicado na Ilustríssima, a entrada de um Lula moderado na disputa eleitoral de 2022 mudou completamente o quadro político brasileiro. Lula moderado é um polo de oposição muito mais forte do que os que havia até agora. O choque, inclusive, levou o “centro” a acelerar suas articulações por uma candidatura competitiva. Como a extrema direita que governa o Brasil desde 2019 vai reagir?

No dia do discurso de Lula, a reação de Bolsonaro foi de evidente terror. Pela primeira vez em muito tempo, apareceu de máscara em uma solenidade pública. Não tenho nenhuma dúvida de que seu pessoal nas redes sociais notou que as declarações ponderadas de Lula sobre vacinas e máscaras foram bem-recebidas pelo público.

Seria maravilhoso se a ameaça Lula forçasse Bolsonaro a finalmente começar a se comportar como presidente da República, mas talvez seja tarde demais. Se Jair acordou na quinta-feira decidido a se comportar como um estadista responsável para derrotar Lula, imediatamente deve ter percebido que o Jair de 2020 não comprou as vacinas que um Jair responsável de 2021 teria que aplicar. Como a única outra alternativa de combate à Covid-19, o lockdown, prejudicaria o Jair candidato de 2022, não sobrou nada de responsável para qualquer Jair fazer no Brasil da pandemia.

Sempre trabalhando com a premissa testada e provada de que Bolsonaro não fará a coisa certa, o que lhe restará? No momento, seu plano parece simples: incapaz de achar um cenário de combate à pandemia que lhe beneficie eleitoralmente, Bolsonaro vai deixar os brasileiros morrerem na fila da UTI e falar de outra coisa.

Jair sabe que sua popularidade vai cair, mas aposta que não chegará a níveis de rejeição que o tornem eleitoralmente inviável. E conta que a vacinação, eventualmente, permitirá a recuperação econômica antes da eleição.

Se você quer fazer uma aposta sem qualquer chance de perder, aposte que Paulo Guedes e Bolsonaro vão dizer que causaram a recuperação econômica gerada pela vacinação que sabotaram desde o início.

O que é muito menos seguro é cravar se Guedes dirá isso como ministro ou como ex-ministro. Bolsonaro certamente gostaria de substitui-lo por um ministro gastador, mas o resultado eleitoral seria incerto. Certamente haveria turbulência no mercado, ela bateria no dólar, o dólar bateria nos preços, os preços bateriam nos juros, e os juros bateriam no desempenho econômico. Talvez isso melhorasse com o tempo, mas Bolsonaro tem cada vez menos tempo até a eleição.

A única certeza sobre isso tudo é que Jair Bolsonaro não perderá eleição para agradar a turma de Guedes.

Mas a maior certeza sobre o que Bolsonaro fará agora que a competição eleitoral ficou mais acirrada é que jogará muito, muito sujo.

Causará estrago enorme ao Brasil. Voltará a ameaçar golpe de Estado —já o fez na live de quinta-feira— aparelhará as Forças Armadas, destruirá a credibilidade de órgãos públicos, atacará a imprensa livre, disseminará notícias falsas, incentivará o conflito e a instabilidade social, enfim, fará o Brasil pagar o preço de não tê-lo impichado.

Mesmo para gente que já se comportou com dignidade em outros momentos da vida, é difícil fazê-lo na hora da derrota. Imaginem para Jair Bolsonaro.


Alon Feuerwerker: Mar das dúvidas

A decisão do ministro Edson Fachin de anular as sentenças contra Luiz Inácio Lula da Silva, por considerar que as acusações não tinham conexão com a Petrobras, deu uma antecipada no calendário eleitoral e acendeu incógnitas na cabeça dos concorrentes do PT em 2022.

O petismo é o único que parece não ter dúvida: se Lula puder concorrer, e quiser, o candidato será ele. E, aparentemente, o PT ainda não deu sinais de estar matutando sobre os detalhes da escolha. Primeiro, vai ser preciso ter certeza de que a decisão de Fachin continua como está.

Pois o jogo ainda corre aberto, como evidenciou a parada no julgamento da suspeição de Sergio Moro pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal. E do atual STF nada que venha será surpresa.

Lula parece beneficiar-se momentaneamente de um certo “equilíbrio do terror”. Mesmo se o plenário do Supremo reverter a decisão de Fachin, continuará o risco de a Segunda Turma declarar Moro suspeito, e aí desencadear um terremoto sob os pés da Lava-Jato.

Desta vez um grande.

E com Moro declarado suspeito cairiam também as condenações de Lula.

Se a decisão de Fachin é mantida, e impede-se a Segunda Turma de prosseguir no julgamento da suspeição de Moro, salva-se (momentaneamente?) a Lava-Jato. Mas Lula fica com caminho aberto para 2022. A não ser que volte a receber condenação pelo menos em duas instâncias até lá. Difícil.

E se o STF não reverte o que Fachin decidiu, mas tampouco impede a Segunda Turma de concluir o julgamento da suspeição? Aí juntar-se-iam a fome e a vontade de comer. Qual será a probabilidade de vingar este cenário maximalista?

Tem também a hipótese minimalista. O plenário reverte a decisão de Fachin e a Segunda Turma ou não declara Moro suspeito ou simplesmente não decide nada sobre isso até que passe a eleição de 2022. Será um jeito de tirar Lula de novo da corrida.

Aguardemos. Entrementes, algumas forças políticas quebram a cabeça sobre o que fazer. O movimento mais visível é a tentativa de agrupar o “nem-nem”, os políticos que não querem nem o petista nem Jair Bolsonaro. A dificuldade aí não é saber o que não querem, mas o que querem.

Além do poder, claro.

Se bem que em outros momentos da história agitar uma rejeição foi suficiente para fazer valer alternativas políticas programaticamente nebulosas. Aliás, o Brasil está cheio de casos. O antimalufismo, por exemplo, foi vaca leiteira para muita gente boa por pelo menos duas décadas.

A dificuldade do dito centro parece residir no enigma não decifrado de 2018, e que o levou à catástrofe eleitoral: quando o gato quer caçar dois ratos, como fazer para não escaparem os dois? Desta vez, o discurso “contra os extremos” vai sensibilizar as massas?

Ou seria preferível escolher um adversário principal e apresentar-se como a melhor opção disponível para derrotá-lo? Bem, esse é um problema para os especialistas destrincharem. Enquanto isso, Lula vai agregando simpatias, ou pelo menos reduzindo antipatias, por gravidade.

E tem Jair Bolsonaro. Ele não está num momento confortável em popularidade, mas a agenda econômica parece ganhar tração no Congresso e a vacinação promete entrar em certo ritmo entre este mês e o próximo. E o Brasil inteiro quer que a vacinação funcione.

E tem Sergio Moro, que também está elegível.

E a eleição não é agora. É só em outubro de 2022.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Cristiano Romero: O espetáculo da corrupção

 Lava-Jato sofrerá novas perdas de reputação

Um famoso juiz federal perguntou certa vez a um jornalista sua opinião sobre vazamento de informações. Como todo repórter que vive da apuração de notícias, a resposta foi: “O vazamento me apraz”. Mas, para espanto e visível frustração do magistrado, o jornalista acrescentou: “Mas, como qualquer cidadão, não posso me coadunar com informações vazadas ilegalmente”.

A ética do jornalista, como ensinou o saudoso Claudio Abramo, não é nem deve ser diferente da ética do cidadão. “Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras, e minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista - não tenho duas. Não existe uma ética específica do jornalista: sua ética é a mesma do cidadão”, escreveu Abramo no livro “A Regra do Jogo: O Jornalismo e a Ética do Marceneiro” (Companhia das Letras, 1988).

 “Suponho que não se vá esperar que, pelo fato de ser jornalista, o sujeito possa bater a carteira e não ir para a cadeia”, acrescentou Abramo, um dos responsáveis pela modernização nas décadas de 1970 e 1989 da “Folha de S.Paulo”.

A pergunta do juiz perturbou o repórter porque ele percebeu que o magistrado ficou desapontado com sua resposta. A lembrança imediata, como sempre lhe ocorre quando colegas de profissão defendem a ideia de que os fins justificam os meios, foi das palavras de Claudio Abramo sobre a ética no jornalismo. Ele pensou com seus botões: “Para o juiz, sua ética não é a mesma do cidadão”.

A confusão na cabeça do profissional de imprensa estava instalada porque juiz é funcionário do Estado, pago para julgar se um crime foi cometido ou não e, com base nisso, manifestar se o acusado pela promotoria é culpado ou não, e então, no caso de condenação, estabelecer a pena, tudo com base nos parâmetros estabelecidos em leis.

Naquele momento, ficou claro para o jornalista que este país estava diante do seguinte quadro:

1. Sim, foi desbaratado, em 2014, um enorme esquema de corrupção envolvendo a maior estatal do país (a Petrobras) e centenas de pessoas, nesta ordem de "entrada em cena”: funcionários daquela empresa pública (os responsáveis pela montagem do bilionário mecanismo de corrupção), políticos e seus partidos, doleiros, executivos de grandes empresas (especialmente, empreiteiras) e empresários donos das empresas; não há dúvida alguma de que os desvios de recursos da maior companhia da economia brasileira, estimados em R$ 20 bilhões, ocorreram, afinal, descobriram-se contas milionárias de empregados da estatal no exterior, executivos e empresários confessaram a realização de pagamentos de propina a funcionários públicos e políticos etc.

2. As investigações, conduzidas por uma força-tarefa integrada por representantes da Polícia Federal (PF), do Ministério Público Federal (MPF) e da Justiça Federal e amparadas por um sem-número de delações premiadas, expediente relativamente novo na realização de inquéritos na Ilha de Vera Cruz, logo revelaram um objetivo maior, de caráter político -_ provar que o ex-presidente Lula era o chefe daquele grande esquema de corrupção - ; não dá para afirmar taxativamente que a força-tarefa estivesse a cargo de um propósito político-eleitoral, com vistas ao pleito de 2018, mas, convenhamos, o resultado foi o que se viu;

3. Para a força-tarefa, não bastava investigar, recolher provas, indiciar e/ou prender, interrogar, processar e condenar; mais importante era promover o “espetáculo da corrupção”, uma forma de massificar o apoio da opinião pública à operação e, assim, tornar sumárias investigações e condenações de alguns acusados, principalmente de Lula;

4. Com o apoio incontestável da sociedade, “entusiasmada” com o fato de ver empresários (antes, em sua maioria, inimputáveis devido a seus laços com o poder) e políticos pela primeira vez na cadeia, a Lava-Jato cometeu abusos de todo tipo, como permitir delações inconsistentes para validar presunções com viés político; vazar informações ao arrepio da lei para criar fatos consumados, isto é, evitar que instâncias superiores da Justiça questionassem o trabalho que vinha sendo feito; indiciar dezenas de pessoas que, depois, comprovou-se não terem envolvimento algum com o esquema de corrupção; grampear conversa da então presidente da República, Dilma Rousseff, com o ex-presidente Lula, sem autorização do STF, com o objetivo de criminalizar ambos; vazar a íntegra do grampo poucas horas depois da gravação da conversa e, assim, jogar a opinião pública contra a chefe do governo e contra Lula, um ato político, desprovido, portanto, de caráter jurídico;

5. Como se viu, as instâncias superiores do Poder Judiciário foram constrangidas pela primeira instância da Justiça; a prova disso é que a segunda instância (TRFs) rejeitou quase sempre por unanimidade os recursos da defesa; a Lava-Jato tornou-se um grande BBB, em que o importante não é o comportamento real dos participantes da “casa”, seu caráter e suas atitudes, mas o julgamento que os expectadores fazem a partir de narrativas induzidas pelo próprio “reality show” e de pré-concepções esmagadoramente conservadoras dos concorrentes ao prêmio, o que torna o BBB perpetuador de nossas doenças seculares, como o racismo e o machismo.

Ora, se a Justiça usa de expedientes abusivos e ilegais para cumprir sua missão institucional, esta fica maculada, independentemente de quem seja o réu. Não pode haver dúvidas num processo que leva à prisão de um ex-presidente da República, no ano em que este, e de acordo com as leis vigentes, seria um dos candidatos do pleito.

Com seu método de atuação, a Lava-Jato, mesmo levando em conta os resultados alcançados no combate à corrupção, resultou claramente na criminalização da classe política. Foi nesse vácuo que emergiu o inesperado Jair Bolsonaro, com discurso anti-política, anti-Brasília, impulsionado por uma campanha de instituições do Estado (PF, Justiça e MPF) que deveria ter se limitado à legalidade. O diagrama que mostrava Lula no centro do esquema de corrupção já deveria ter sido suficiente para mostrar a impropriedade com que a operação se movimentava.


Fernando Exman: Fachin catalisa a eleição presidencial

Decisão do ministro coloca Lula no jogo e antecipa campanha

Edson Fachin, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) que recolocou Luiz Inácio Lula da Silva na lista de presidenciáveis com uma canetada, agiu olhando para o legado da Lava-Jato, mas as consequências de seu ato já se percebem no presente. Em relação ao futuro, será necessário aguardar para ver o quão determinante terá sido para o resultado das eleições a sua decisão de cancelar as condenações do ex-presidente.

Fachin provocou uma catálise no processo de rearranjo político-partidário previsto para o início do segundo semestre. A campanha presidencial de 2022, que já vinha sendo caracterizada como uma das mais precoces da história contemporânea, tende a antecipar-se ainda mais.

O episódio dá dinamismo à pré-campanha. Mesmo sem um pré-candidato em campo, o PT já formulava um programa antagônico à agenda liberal da equipe econômica e ensaiava palavra de ordem capaz de contrapor o slogan do governo Jair Bolsonaro: “A vacina acima de tudo.” Lula deixará a função de titereiro para dominar o palco.

Bolsonaro, o maior interessado em reeditar o clima da disputa de 2018, ainda observa os eventuais desdobramentos da decisão do magistrado. Precisará equilibrar-se na tênue linha que divide o que seus apoiadores esperam ouvir e o que pode dizer o chefe do Executivo sem criar atritos com outro Poder.

O episódio também coloca sob pressão aqueles que esperam personificar uma terceira via. Entre eles, Ciro Gomes (PDT), que tem se mantido aquecido neste período de pré-campanha.

Meses atrás, esse espaço até poderia ser disputado pelo ex-ministro Sergio Moro, mas o ex-juiz da Lava-Jato é justamente o principal derrotado, do ponto de vista eleitoral, da decisão de Fachin. Sobra, portanto, cada vez menos tempo para que o apresentador Luciano Huck, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), ou o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM) se posicionem no jogo. Os tucanos, para não ficarem a reboque, marcaram prévias para outubro.

Sob a condição de não ter seu nome revelado, um especialista que sabe das coisas assegurou: a decisão de Fachin não muda o pano de fundo que vinha sendo construído e a eleição de 2022 será um embate de “imaginários negativos”, ou seja, o antibolsonaro contra o antipetismo. Nesse contexto, ponderou o experiente consultor, Bolsonaro sai perdendo, pois quem vem agora para o embate é um Lula que o atual presidente da República não gostaria de enfrentar.

“Lula está renovado e cheio de gás”, explicou. “É outro Lula perante o Bolsonaro, mas não é outro Lula perante o Brasil”, acrescentou, referindo-se à grande popularidade do petista e à aprovação de suas administrações por parcela considerável da população.

Deve-se lembrar, também, que ele poderá dizer aos quatro cantos que, mesmo perseguido, não é mais um condenado. Seus adversários rebaterão afirmando que erros procedimentais do processo ou a conduta das partes não anulam o fato de que os governos do PT abrigaram diversos esquemas de corrupção. Com razão. O problema de Bolsonaro, porém, é que sua campanha terá dificuldades de sustentar o discurso anticorrupção de 2018.

“A mansão adquirida pelo seu filho é uma casa de horror, um bolo de chocolate para quem faz campanha política”, comentou essa fonte. “A questão ética não vai ser decisiva como foi na última eleição. Misturou tudo.”

Então, quem pode se beneficiar nessa conjuntura? Aquele que conseguir extrair o pior dos dois oponentes e surfar na onda antibolsonaro e antipetista. O momento do país também exige que os candidatos apresentem soluções para a crise. “Quem oferecer uma saída pode se deslocar. Isso quer dizer uma campanha positiva, um plano de governo e propostas para o país”, destacou. “É uma eleição de forças negativas, como foi a de 2018. Normalmente, quando isso acontece o natural é que se demonize a política. Agora, no entanto, é o contrário.”

Segundo essa visão, o momento exige uma liderança capaz de aglutinar forças, combater a pandemia e os efeitos da crise. Um cenário que pode ser desafiador para alguém de fora da política tradicional.

Precipitada a entrada de Lula na disputa, um dos principais desafios de Bolsonaro será acelerar a consolidação de sua imagem no Nordeste. Um fator que poderá dificultar essa entrada é a relação conflituosa que vem mantendo com governadores. Por outro lado, o presidente tenta capturar bandeiras da oposição, com a reformulação do Bolsa Família, inaugurações de obras da transposição do rio São Francisco ou a ampliação do acesso à água.

Na opinião desse especialista, sem novas ideias, dinheiro e boa gestão, resta ao presidente aproximar-se das marcas de outros governos. “Ele provoca danos cognitivos fortes não só no seu eleitorado, mas no público médio” com o vai e vem de seu discurso e essa confusão narrativa, apontou a fonte. “Ele faz uma subversão da linguagem e dos significados”, completou, citando como exemplo o fato de se cogitar a entrada do presidente no Partido da Mulher Brasileira (PMB). Em 2018, ele foi alvo de ampla campanha negativa do público feminino, que levantou a "hashtag" #elenão. Sua filiação à sigla poderia lhe garantir uma espécie de vacina contra estratégia semelhante.

Outra notícia negativa para Bolsonaro é a capacidade de mobilização de Lula, num momento em que o presidente corre o risco de ver crescer os panelaços ou até mesmo movimentos de rua.

Ele pode insistir no discurso de que existe o risco de o Brasil virar uma Argentina ou uma Venezuela, se a esquerda voltar ao poder. No entanto, o exemplo de outro vizinho deveria gerar maiores preocupações, neste momento, no Palácio do Planalto: o presidente do Paraguai, aliado de Bolsonaro, tenta conter protestos e escapar de um processo de impeachment por suposta negligência no combate à covid-19. “O que existe não é um sentimento de letargia. É um acúmulo depressivo que vai ser vomitado uma hora”, concluiu o especialista. O acirramento do ambiente não ajudará o país a solucionar os seus problemas.


Hélio Schwartsman: Qual Lula será candidato em 2022?

Ele já deu repetidas mostras de que é um camaleão político

Ao que tudo indica, Luiz Inácio Lula da Silva poderá concorrer à Presidência no ano que vem. Isso altera significativamente os planos de candidatos e partidos que já começavam a desenhar cenários para o próximo pleito.

Na leitura mais superficial, mas não necessariamente errada, o retorno do petista ao jogo reforça a polarização. Os beneficiados seriam o próprio Lula e seu antípoda, o presidente Jair Bolsonaro, que, mobilizando seus núcleos de apoiadores fiéis e demonizando os adversários, carimbariam seus passaportes para o segundo turno, fechando as portas para candidaturas mais ao centro.

O problema com essa interpretação é que ela parte do pressuposto de que o Lula de 2022 será um Lula radical, parecido com o que se candidatou em 1989 ou com o que discursou às vésperas de ser preso pela Lava Jato em 2018. Mas não há nenhuma garantia de que tal premissa se manterá.

Lula já deu repetidas mostras de que é um camaleão político, capaz de vestir a roupagem que mais lhe convém. Se ele sentir que tem mais chances de chegar ao Planalto com o figurino de candidato moderado, ele o adotará. Nada o impede de repetir a trajetória de 2002, quem sabe até reeditando uma versão da "Carta ao povo brasileiro" e forçando o PT a fazer uma tardia autocrítica do governo Dilma. Isso seria crível? Bem, se as pessoas acreditaram que Bolsonaro era liberal, então acreditam em qualquer coisa.

Meu ponto é que não estamos condenados à polarização. Dependendo da dinâmica que a campanha assumir, poderemos assistir à reintrodução do teorema do eleitor mediano, pelo qual os principais candidatos buscam desde o início apresentar-se como moderados para conquistar os cidadãos que rejeitam extremos, que são normalmente a maioria.

Se o vencedor vai governar de acordo com as promessas ou cometer mais um estelionato eleitoral é uma outra questão. Mas tratemos de um problema de cada vez.


Vinicius Torres Freire: As mentiras da elite sobre polarização de Bolsonaro e Lula

Bolsonaro não pode ser um polo porque não tem substância alguma além do terror

Jair Bolsonaro tentou sabotar todas as providências de contenção de gastos da mudança “Emergencial” da Constituição, aquela que vai autorizar também o novo auxílio emergencial. De efeitos práticos maiores nas contas do governo, a PEC Emergencial vai impedir o aumento de gastos com servidores públicos por alguns anos e aumentar alguns impostos. Na verdade, a emenda vai exigir que se cancelem algumas reduções especiais de tributos para indivíduos e empresas, por meio de lei. Se a lei pegar, haverá um aumento de impostos de cerca de 0,2% do PIB por ano.

Bolsonaro queria cancelar tudo isso, mas até a noite desta terça-feira (9), os deputados haviam decidido deixar a PEC como foi aprovada no Senado (onde já havia sido amputada e lipoaspirada).

Esse é o presidente e futuro candidato à reeleição comprometido com as “reformas” e o “ajuste fiscal”? Esse que não fez abertura comercial. Nenhuma privatização. Quase nenhuma concessão de empreendimento à iniciativa privada que não tivesse sido já preparada no governo Michel Temer. No seu governo, fez-se uma reforma da Previdência (em parte sabotada por Bolsonaro) que era consenso do establishment e que não contou com oposição popular quase nenhuma, nem da esquerda semimorta.

Esse é o candidato de um dos extremos da “polarização” que haverá caso Lula da Silva seja candidato em 2022, diz o clichê de burrice sórdida que escorre da boca dos povos dos mercados desde a segunda-feira.

Bolsonaro não é coisa alguma além de um projeto de tirano. Não é um contraponto ao “esquerdismo” do PT porque, afora o horror, é um vazio. Quem o sustenta no poder, a elite econômica quase inteira, por colaboracionismo, outras ações e omissão, não tem mais desculpa alguma de desilusão quanto ao liberalismo do capitão da extrema direita, ideia que sempre foi grotesca. A elite colaboracionista ou omissa ora está na posição de ter contratado um capanga que saiu do controle, um dos capatazes que chamou para manter o PT longe do poder. 

O lulismo-petismo, de resto, foi um projeto suave de incorporação de pobres ao universo do consumo, de chegada minoritária de algumas minorias ao poder, de imobilismo na reforma econômica e social de fundo, combinados a uma vasta distribuição de subsídios e outras proteções ao capital, fundos que financiaram a formação de conglomerados e oligopólios, fora a roubança, parte muito menor do jogo.

Ainda assim, boa parte da elite pagou e talvez ainda pague qualquer preço para manter o PT (ou equivalente) ao largo, mesmo que o custo seja Bolsonaro. Na melhor das hipóteses, gostaria de enfrentar o bolsonarismo com um vazio à esquerda, como se a vaga no segundo turno fosse conquistada por WO (ou por essas decisões escabrosas da Justiça). Mas mesmo quando Lula estava expulso de campo, mesmo a parte melhorzinha dessas elites foi incapaz de articular ou apoiar qualquer candidatura ou movimento político alternativo, o nome fantasia que tivesse, “centro”, “centro direita”. Agora mesmo dá corda para o interesse provisório do centrão, o que por ora dá corda para Bolsonaro.

A direita menos incivilizada do Brasil é incapaz de ganhar eleições nacionais desde 1998 —aliás, foi por isso que começou a apoiar o tumulto odiento em 2013 e, principalmente, depois da derrota de 2014. Desde então e até hoje, criou a situação que, de modo mendaz, chama de intolerável: alimenta o terror de Bolsonaro e faz o que pode para implodir qualquer esquerda. ​


Elio Gaspari: Lula candidato

O caroço migrou para a elegibilidade do ex-presidente

O ministro Edson Fachin sacudiu o coreto das autoridades anulando as sentenças de Curitiba contra o ex-presidente Lula, devolvendo-lhe os direitos políticos. Hoje, Lula pode ser candidato a presidente no ano que vem.

O voto de Gilmar Mendes na Segunda Turma ilustrou a suspeição de Sergio Moro. Com a decisão de Fachin, o caroço migrou para a elegibilidade de Lula e para o previsível desconforto que isso provoca em quem o detesta. Numa frase: “Esse não pode”.

Lula poderá vir a ser condenado por um novo juiz, mas a sentença ficará com cheiro de gol feito durante o replay.

O “esse não pode” já custou caro ao Brasil. Em 1950, o jornalista Carlos Lacerda escreveu:

—O sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar.

Getúlio foi eleito, tomou posse, governou até agosto de 1954, matou-se e entrou na História. A revolução que Lacerda queria só veio dez anos depois.

Lacerda tinha credenciais para vencer a eleição de 1965. Fazia um governo estelar no falecido Estado da Guanabara, mas deveria disputar com o ex-presidente Juscelino Kubitschek, que dera ao Brasil “50 anos em cinco”. Até os primeiros meses de 1964, circulavam dois tipos de “esse não pode”. A esquerda não queria uma vitória de Lacerda, e uma parte da direita não queria a volta de Kubitschek.

Depois da deposição de João Goulart, a base militar da nova ordem não admitia entregar o poder a JK. Lacerda gostou da ideia, e o ex-presidente foi cassado. Por quê? Corrupção. (A sinopse diária que a Central Intelligence Agency deu ao presidente Lyndon Johnson no dia 13 de junho de 1964 contou que o presidente Castello Branco via na proscrição de JK o caminho para um governo “democrático e honesto”. Ele já havia dito que mostrar as provas “seria embaraçoso para a Nação”.) Não era bem assim.

Dias antes, fritando JK, o general Golbery do Couto e Silva, conselheiro de Castello, dividiu uma folha de papel em colunas e listou as “vantagens” e “desvantagens” da cassação de Juscelino Kubitschek. Intitulou-a com a sinceridade que se dá aos papéis pessoais: “Motivação real — Impedir que JK, fortalecido pela campanha contrária, enfrente a Revolução”. E, assim, Juscelino foi banido da vida pública por dez anos. Quando ele morreu, num acidente de estrada, seu funeral se transformou na maior manifestação popular ocorrida no país desde 1968, quando as ruas foram esvaziadas pelo AI-5.

Sem o “esse não pode”, em 1965 os eleitores brasileiros teriam votado em Lacerda ou JK. Nunca na História republicana o Brasil teve dois candidatos tão qualificados. Nem antes, nem depois. Passados os anos, nas duas turmas do “esse não pode”, muita gente qualificada reconhecia que qualquer um dos dois teria feito melhor do que se fez. (Lacerda, que defendeu a cassação de JK, dormiu preso num jirau de quartel em dezembro de 1968 e tornou-se uma alma penada na política nacional.)

O “PT não” colocou Jair Bolsonaro na Presidência. Os eleitores podiam ter colocado Geraldo Alckmin, Ciro Gomes ou João Amôedo, mas quem teve mais votos foi o capitão.

Falta mais de um ano para a eleição do ano que vem. Bolsonaro quer um novo mandato, e as inscrições estão abertas.