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Merval Pereira: Lockdown emergencial
Centenas de economistas, entre eles quatro ex-ministros da Fazenda (Marcilio Marques Moreira, Pedro Malan, Mailson da Nóbrega e Rubem Ricupero), cinco ex-presidentes do Banco Central (Afonso Celso Pastore, Arminio Fraga, Gustavo Loyola, Ilan Goldfajn e Pérsio Arida), ex-presidentes do BNDEs (Edmar Bacha, Eleazar de Carvalho) dentre outros, abrangendo diversas gerações de economistas, pessoas da academia, do mercado financeiro, ex-membros de governos diversos, e empresários lançaram uma Carta intitulada “País Exige Respeito; a Vida Necessita da Ciência e do Bom Governo”, a propósito da atual crise brasileira, com sugestões concretas do que deve ser feito para tentarmos superar a pandemia da Covid-19.
Diante de situação econômica e social “desoladora”, e de um governo que “subutiliza ou utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica no desenho das ações para lidar com a pandemia”, eles sugerem até mesmo a possibilidade de adoção de um lockdown nacional. Calculam que a redução do nível da atividade nos custou menos do que o atraso na vacinação:
“Uma perda de arrecadação tributária apenas no âmbito federal de 6,9%, aproximadamente R$ 58 bilhões, e o atraso na vacinação irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em dois trimestres”.
Segundo os economistas, “o efeito devastador da pandemia sobre a economia tornou evidente a precariedade do nosso sistema de proteção social” e, além do auxílio emergencial, “não devemos adiar mais o encaminhamento de uma reforma no sistema de proteção social, visando aprimorar a atual rede de assistência social e prover seguro aos informais”.
O documento destaca que “a experiência internacional com programas de aval público para financiamento privado voltado para pequenos empreendedores durante um choque negativo foi bem-sucedida na manutenção de emprego, gerando um benefício líquido positivo à sociedade”. A retomada de linhas avalizadas pelo Fundo Garantidor para Investimentos e Fundo de Garantia de Operações é uma medida importante de transição entre a segunda onda e o pós-crise.
As medidas imediatas seriam:
1 - Acelerar o ritmo da vacinação, usando a política externa para apoiar a obtenção de vacinas, seja nos grandes países produtores, seja nos que têm ou terão excedentes em breve.
2 - Incentivar o uso de máscaras, tanto com distribuição gratuita quanto com orientação educativa. O Brasil poderia distribuir máscaras à população de baixa renda, explicando a importância do seu uso na prevenção da transmissão da Covid. Considerando o público do auxílio emergencial, de 68 milhões de pessoas, por exemplo, e cinco reusos da máscara, tal como recomenda o Center for Disease Control do EUA, chegaríamos a um custo mensal de R$ 1 bilhão. Isto é, 2% do gasto estimado mensal com o auxílio emergencial.
3 - Implementar medidas de distanciamento social no âmbito local, com coordenação nacional. As decisões devem ser de responsabilidade das autoridades locais. É urgente que os diferentes níveis de governo estejam preparados para implementar um lockdown emergencial, definindo critérios para a sua adoção.
O fechamento de escolas no Brasil atingiu de forma mais dura as crianças mais pobres e suas mães. Portanto, as escolas devem ser as últimas a fechar e as primeiras a reabrir em um esquema de distanciamento social.
4 - Criar mecanismo de coordenação do combate à pandemia em âmbito nacional – preferencialmente pelo Ministério da Saúde e, na sua ausência, por consórcio de governadores – orientada por uma comissão de cientistas e especialistas.
“O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração, e o flerte com o movimento antivacina, caracterizou a liderança política maior no país. Essa postura reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos, aumenta custos em que o país incorre”.
Integra da carta:
O País Exige Respeito; a Vida Necessita da Ciência e do Bom Governo
Carta Aberta à Sociedade Referente a Medidas de Combate à Pandemia
O Brasil é hoje o epicentro mundial da Covid-191, com a maior média móvel de novos casos.
Enquanto caminhamos para atingir a marca tétrica de 3 mil mortes por dia e um total de mortes acumuladas de 300 mil ainda esse mês, o quadro fica ainda mais alarmante com o esgotamento dos recursos de saúde na grande maioria de estados, com insuficiente número de leitos de UTI, respiradores e profissionais de saúde. Essa situação tem levado a mortes de pacientes na espera pelo atendimento, contribuindo para uma maior letalidade da doença.
A situação econômica e social é desoladora. O PIB encolheu 4,1% em 2020 e provavelmente observaremos uma contração no nível de atividade no primeiro trimestre deste ano². A taxa de desemprego, por volta de 14%, é a mais elevada da série histórica, e subestima o aumento do desemprego, pois a pandemia fez com que muitos trabalhadores deixassem de procurar emprego, levando a uma queda da força de trabalho entre fevereiro e dezembro de 5,5 milhões de pessoas.
A contração da economia afetou desproporcionalmente trabalhadores mais pobres e vulneráveis, com uma queda de 10,5% no número de trabalhadores informais empregados, aproximadamente duas vezes a queda proporcional no número de trabalhadores formais empregados³.
Esta recessão, assim como suas consequências sociais nefastas, foi causada pela pandemia e não será superada enquanto a pandemia não for controlada por uma atuação competente do governo federal. Este subutiliza ou utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica no desenho das ações para lidar com a pandemia. Sabemos que a saída definitiva da crise requer a vacinação em massa da população. Infelizmente, estamos atrasados. Em torno de 5% da população recebeu ao menos uma dose de vacina, o que nos coloca na 45ª posição no ranking mundial de doses aplicadas por habitante.
O ritmo de vacinação no país é insuficiente para vacinar os grupos prioritários do Plano Nacional de Imunização (PNI) no 1º semestre de 2021, o que amplia o horizonte de vacinação para toda a população para meados de 2022.
As consequências são inomináveis. No momento, o Brasil passa por escassez de doses de vacina, com recorrentes atrasos no calendário de entregas e revisões para baixo na previsão de disponibilidade de doses a cada mês. Na semana iniciada em 8 de março foram aplicadas, em média, apenas 177 mil doses por dia.
No ritmo atual, levaríamos mais de 3 anos para vacinar toda a população. O surgimento de novas cepas no país (em especial a P.1) comprovadamente mais transmissíveis e potencialmente mais agressivas, torna a vacinação ainda mais urgente. A disseminação em larga escala do vírus, além de magnificar o número de doentes e mortos, aumenta a probabilidade de surgirem novas variantes com potencial de diminuir a eficácia das vacinas atuais.
Vacinas são relativamente baratas face ao custo que a pandemia impõe à sociedade. Os recursos federais para compra de vacinas somam R$ 22 bilhões, uma pequena fração dos R$ 327 bilhões desembolsados nos programas de auxílio emergencial e manutenção do emprego no ano de 2020.
Vacinas têm um benefício privado e social elevado, e um custo total comparativamente baixo. Poderíamos estar em melhor situação, o Brasil tem infraestrutura para isso. Em 1992, conseguimos vacinar 48 milhões de crianças contra o sarampo em apenas um mês.
Na campanha contra a Covid-19, se estivéssemos vacinando tão rápido quanto a Turquia, teríamos alcançado uma proporção da população duas vezes maior, e se tanto quanto o Chile, dez vezes maior. A falta de vacinas é o principal gargalo. Impressiona a negligência com as aquisições, dado que, desde o início da pandemia, foram desembolsados R$ 528,3 bilhões em medidas de combate à pandemia, incluindo os custos adicionais de saúde e gastos para mitigação da deteriorada situação econômica. A redução do nível da atividade nos custou uma perda de arrecadação tributária apenas no âmbito federal de 6,9%, aproximadamente R$ 58 bilhões, e o atraso na vacinação irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em 2 trimestres.
Nesta perspectiva, a relação benefício custo da vacina é da ordem de seis vezes para cada real gasto na sua aquisição e aplicação. A insuficiente oferta de vacinas no país não se deve ao seu elevado custo, nem à falta de recursos orçamentários, mas à falta de prioridade atribuída à vacinação.
O quadro atual ainda poderá deteriorar-se muito se não houver esforços efetivos de coordenação nacional no apoio a governadores e prefeitos para limitação de mobilidade. Enquanto se busca encurtar os tempos e aumentar o número de doses de vacina disponíveis, é urgente o reforço de medidas de distanciamento social. Da mesma forma é essencial a introdução de incentivos e políticas públicas para uso de máscaras mais eficientes, em linha com os esforços observados na União Europeia e nos Estados Unidos.
A controvérsia em torno dos impactos econômicos do distanciamento social reflete o falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável. Na realidade, dados preliminares de óbitos e desempenho econômico sugerem que os países com pior desempenho econômico tiveram mais óbitos de Covid-19. A experiência mostrou que mesmo países que optaram inicialmente por evitar o lockdown terminaram por adotá-lo, em formas variadas, diante do agravamento da pandemia – é o caso do Reino Unido, por exemplo. Estudos mostraram que diante da aceleração de novos casos, a população responde ficando mais avessa ao risco sanitário, aumentando o isolamento voluntário e levando à queda no consumo das famílias mesmo antes ou sem que medidas restritivas formais sejam adotadas.15 A recuperação econômica, por sua vez, é lenta e depende da retomada de confiança e maior previsibilidade da situação de saúde no país.
Logo, não é razoável esperar a recuperação da atividade econômica em uma epidemia descontrolada.
O efeito devastador da pandemia sobre a economia tornou evidente a precariedade do nosso sistema de proteção social. Em particular, os trabalhadores informais, que constituem mais de 40% da força de trabalho, não têm proteção contra o desemprego. No ano passado, o auxílio emergencial foi fundamental para assistir esses trabalhadores mais vulneráveis que perderam seus empregos, e levou a uma redução da pobreza, evidenciando a necessidade de melhoria do nosso sistema de proteção social. Enquanto a pandemia perdurar, medidas que apoiem os mais vulneráveis, como o auxílio emergencial, se fazem necessárias. Em paralelo, não devemos adiar mais o encaminhamento de uma reforma no sistema de proteção social, visando aprimorar a atual rede de assistência social e prover seguro aos informais. Uma proposta nesses moldes é o programa de Responsabilidade Social, patrocinado pelo Centro de Debate de Políticas Públicas, encaminhado para o Congresso no final do ano passado.
Outras medidas de apoio às pequenas e médias empresas também se fazem necessárias. A experiência internacional com programas de aval público para financiamento privado voltado para pequenos empreendedores durante um choque negativo foi bem-sucedida na manutenção de emprego, gerando um benefício líquido positivo à sociedade.
O aumento em 34,7% do endividamento dos pequenos negócios durante a pandemia amplifica essa necessidade. A retomada de linhas avalizadas pelo Fundo Garantidor para Investimentos e Fundo de Garantia de Operações é uma medida importante de transição entre a segunda onda e o pós-crise.
Estamos no limiar de uma fase explosiva da pandemia e é fundamental que a partir de agora as políticas públicas sejam alicerçadas em dados, informações confiáveis e evidência científica. Não há mais tempo para perder em debates estéreis e notícias falsas. Precisamos nos guiar pelas experiências bem-sucedidas, por ações de baixo custo e alto impacto, por iniciativas que possam reverter de fato a situação sem precedentes que o país vive.
Medidas indispensáveis de combate à pandemia: a vacinação em massa é condição sine qua non para a recuperação econômica e redução dos óbitos.
1 - Acelerar o ritmo da vacinação. O maior gargalo para aumentar o ritmo da vacinação é a escassez de vacinas disponíveis. Deve-se, portanto, aumentar a oferta de vacinas de forma urgente. A estratégia de depender da capacidade de produção local limitou a disponibilidade de doses ante a alternativa de pré-contratar doses prontas, como fez o Chile e outros países. Perdeu-se um tempo precioso e a assinatura de novos contratos agora não garante oferta de vacinas em prazo curto. É imperativo negociar com todos os laboratórios que dispõem de vacinas já aprovadas por agências de vigilância internacionais relevantes e buscar antecipação de entrega do maior número possível de doses. Tendo em vista a escassez de oferta no mercado internacional, é fundamental usar a política externa – desidratada de ideologia ou alinhamentos automáticos – para apoiar a obtenção de vacinas, seja nos grandes países produtores seja nos países que têm ou terão excedentes em breve.
A vacinação é uma corrida contra o surgimento de novas variantes que podem escapar da imunidade de infecções passadas e de vacinas antigas. As novas variantes surgidas no Brasil tornam o controle da pandemia mais desafiador, dada a maior transmissibilidade.
Com o descontrole da pandemia é questão de tempo até emergirem novas variantes. O Brasil precisa ampliar suas capacidades de sequenciamento genômico em tempo real, de compartilhar dados com a comunidade internacional e de testar a eficácia das vacinas contra outras variantes com máxima agilidade. Falhas e atrasos nesse processo podem colocar em risco toda a população brasileira, e também de outros países.
2 - Incentivar o uso de máscaras tanto com distribuição gratuita quanto com orientação educativa. Economistas estimaram que se os Estados Unidos tivessem adotado regras de uso de máscaras no início da pandemia poderiam ter reduzido de forma expressiva o número de óbitos. Mesmo se um usuário de máscara for infectado pelo vírus, a máscara pode reduzir a gravidade dos sintomas, pois reduz a carga viral inicial que o usuário é exposto. Países da União Europeia e os Estados Unidos passaram a recomendar o uso de máscaras mais eficientes – máscaras cirúrgicas e padrão PFF2/N95 – como resposta às novas variantes. O Brasil poderia fazer o mesmo, distribuindo máscaras melhores à população de baixa renda, xplicando a importância do seu uso na prevenção da transmissão da Covid.
Máscaras com filtragem adequada têm preços a partir de R$ 3 a unidade. A distribuição gratuita direcionada para pessoas sem condições de comprá-las, acompanhada de instrução correta de reuso, teria um baixo custo frente aos benefícios de contenção da Covid-1923. Considerando o público do auxílio emergencial, de 68 milhões de pessoas, por exemplo, e cinco reusos da máscara, tal como recomenda o Center for Disease Control do EUA, chegaríamos a um custo mensal de R$ 1 bilhão. Isto é, 2% do gasto estimado mensal com o auxílio emergencial. Embora leis de uso de máscara ajudem, informar corretamente a população e as lideranças darem o exemplo também é importante, e tem impacto na trajetória da epidemia. Inversamente, estudos mostram que mensagens contrárias às medidas de prevenção afetam a sua adoção pela população, levando ao aumento do contágio.
3 - Implementar medidas de distanciamento social no âmbito local com coordenação nacional. O termo “distanciamento social” abriga uma série de medidas distintas, que incluem a proibição de aglomeração em locais públicos, o estímulo ao trabalho a distância, o fechamento de estabelecimentos comerciais, esportivos, entre outros, e – no limite – escolas e creches. Cada uma dessas medidas tem impactos sociais e setoriais distintos. A melhor combinação é aquela que maximize os benefícios em termos de redução da transmissão do vírus e minimize seus efeitos econômicos, e depende das características da geografia e da economia de cada região ou cidade. Isso sugere que as decisões quanto a essas medidas devem ser de responsabilidade das autoridades locais.
Com o agravamento da pandemia e esgotamento dos recursos de saúde, muitos estados não tiveram alternativa senão adotar medidas mais drásticas, como fechamento de todas as atividades não-essenciais e o toque de recolher à noite. Os gestores estaduais e municipais têm enfrentado campanhas contrárias por parte do governo federal e dos seus apoiadores. Para maximizar a efetividade das medidas tomadas, é indispensável que elas sejam apoiadas, em especial pelos órgãos federais. Em particular, é imprescindível uma coordenação em âmbito nacional que permita a adoção de medidas de caráter nacional, regional ou estadual, caso se avalie que é necessário cercear a mobilidade entre as cidades e/ou estados ou mesmo a entrada de estrangeiros no país. A necessidade de adotar um lockdown nacional ou regional deveria ser avaliado. É urgente que os diferentes níveis de governo estejam preparados para implementar um lockdown emergencial, definindo critérios para a sua adoção em termos de escopo, abrangência das atividades cobertas, cronograma de implementação e duração.
Ademais, é necessário levar em consideração que o acréscimo de adesão ao distanciamento social entre os mais vulneráveis depende crucialmente do auxílio emergencial. Há sólida evidência de que programas de amparo socioeconômico durante a pandemia aumentaram o respeito às regras de isolamento social dos beneficiários. É, portanto, não só mais justo como mais eficiente focalizar a assistência nas populações de baixa renda, que são mais expostas nas suas atividades de trabalho e mais vulneráveis financeiramente.
Dentre a combinação de medidas possíveis, a questão do funcionamento das escolas merece atenção especial. Há estudos mostrando que não há correlação entre aumento de casos de infecção e reabertura de escolas no mundo26. Há também informações sobre o nível relativamente reduzido de contágio nas escolas de São Paulo após sua abertura.
As funções da escola, principalmente nos anos do ensino fundamental, vão além da transmissão do conhecimento, incluindo cuidados e acesso à alimentação de crianças, liberando os pais – principalmente as mães – para o trabalho. O fechamento de escolas no Brasil atingiu de forma mais dura as crianças mais pobres e suas mães. A evidência mostra que alunos de baixa renda, com menor acesso às ferramentas digitais, enfrentam maiores dificuldade de completar as atividades educativas, ampliando a desigualdade da formação de capital humano entre os estudantes.
Portanto, as escolas devem ser as últimas a fechar e as primeiras a reabrir em um esquema de distanciamento social. Há aqui um papel fundamental para o Ministério da Educação em cooperação com o Ministério da Saúde na definição e comunicação de procedimentos que contribuam para a minimização dos riscos de contágio nas escolas, além do uso de ferramentas comportamentais para retenção da evasão escolar, como o uso de mensagens de celular como estímulo para motivar os estudantes, conforme adotado em São Paulo e Goiás.
4 - Criar mecanismo de coordenação do combate à pandemia em âmbito nacional – preferencialmente pelo Ministério da Saúde e, na sua ausência, por consórcio de governadores – orientada por uma comissão de cientistas e especialistas, se tornou urgente. Diretrizes nacionais são ainda mais necessárias com a escassez de vacinas e logo a necessidade de definição de grupos prioritários; com as tentativas e erros no distanciamento social; a limitada compreensão por muitos dos pilares da prevenção, particularmente da importância do uso de máscara, e outras medidas no âmbito do relacionamento social. Na ausência de coordenação federal, é essencial a concertaçãoentre os entes subnacionais, consórcio para a compra de vacinas e para a adoção de medidas de supressão.
O papel de liderança: Apesar do negacionismo de alguns poucos, praticamente todos os líderes da comunidade internacional tomaram a frente no combate ao Covid-19 desde março de 2020, quando a OMS declarou o caráter pandêmico da crise sanitária. Informando, notando a gravidade de uma crise sem precedentes em 100 anos, guiando a ação dos indivíduos e influenciado o comportamento social.
Líderes políticos, com acesso à mídia e às redes, recursos de Estado, e comandando atenção, fazem a diferença: para o bem e para o mal. O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração, e o flerte com o movimento antivacina, caracterizou a liderança política maior no país. Essa postura reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos, aumenta custos que o país incorre.
O país pode se sair melhor se perseguimos uma agenda responsável. O país tem pressa; o país quer seriedade com a coisa pública; o país está cansado de ideias fora do lugar, palavras inconsequentes, ações erradas ou tardias. O Brasil exige respeito.
Assinam esta carta (até às 15.30hs de sábado (20/03):
1 - Affonso Celso Pastore
2 - Alexandre Lowenkron
3 - Alexandre Rands
4 - Alexandre Schwartsman
5 - Álvaro de Souza
6 - Amanda de Albuquerque
7 - Ana Carla Abrão
8 - André de Castro Silva
9 - André Luis Squarize Chagas
10 - André Magalhães
11 - André Portela
12 - Andrea Lucchesi
13 - Angélica Maria de Queiroz
14 - Aod Cunha
15 - Armínio Fraga
16 - Beny Parnes
17 - Bernard Appy
18 - Bráulio Borges
19 - Braz Camargo
20 - Carlos Alberto Manso
21 - Carlos Ari
22 - Carlos Brunet Martins Filho
23 - Carlos Góes
24 - Carolina Grottera
25 - Cassiana Fernandez
26 - Christiano Penna
27 - Claudia Sussekind Bird
28 - Claudio Considera
29 - Cláudio Frischtak
30 - Claudio Ribeiro de Lucinda
31 - Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt
32 - Daniel Cerqueira
33 - Daniel Gleizer
34 - Danielle Carusi Machado
35 - Danilo Camargo Igliori
36 - Demósthenes Madureira de Pinho Neto
37 - Dimitri Szerman
38 - Edmar Bacha
39 - Eduardo Amaral Haddad
40 - Eduardo Augusto Guimarães
41 - Eduardo Mazzilli de Vassimon
42 - Eduardo Pontual
43 - Eduardo Souza-Rodrigues
44 - Eduardo Zilberman
45 - Eduardo Zylberstajn
46 - Eleazar de Carvalho
47 - Elena Landau
48 - Fabiana Rocha
49 - Fábio Barbosa
50 - Fabio Giambiagi
51 - Felipe Salto
52 - Fernando Genta
53 - Fernando Postali
54 - Fernando Veloso
55 - Flávio Ataliba
56 - Francisco Ramos
57 - Francisco Soares de Lima
58 - Gabriella Seiler
59 - Genaro Lins
60 - Giovanna Ribeiro
61 - Guilherme Irffi
62 - Guilherme Tinoco
63 - Guilherme Valle Moura
64 - Gustavo Gonzaga
65 - Gustavo Loyola
66 - Helcio Tokeshi
67 - Helena Arruda Freire
68 - Henrique Félix
69 - Horácio Lafer Piva
70 - Humberto Moreira
71 - Ilan Goldfajn
72 - Isacson Casiuch
73 - Joana C.M. Monteiro
74 - Joana Naritomi
75 - João Mário de França
76 - José Augusto Fernandes
77 - José Monforte
78 - José Olympio Pereira
79 - José Roberto Mendonça de Barros
80 - José Tavares de Araujo
81 - Josué Alfredo Pellegrini
82 - Juliana Camargo
83 - Juliano Assunção
84 - Laísa Rachter
85 - Laura de Carvalho Schiavon
86 - Laura Karpuska
87 - Leandro Piquet Carneiro
88 - Leane Naidin
89 - Leany Barreiro Lemos
90 - Leonardo Monteiro Monasterio
91 - Leonardo Rezende
92 - Lucas M. Novaes
93 - Lucia Hauptmann
94 - Luciano Losekann
95 - Luciene Pereira
96 - Luís Meloni
97 - Luis Terepins
98 - Maílson da Nóbrega
99 - Manoel Pires
100 - Manuel Thedim
101 - Marcela Carvalho Ferreira de Mello
102 - Marcelo André Steuer
103 - Marcelo Barbará
104 - Marcelo Cunha Medeiros
105 - Marcelo de Paiva Abreu
106 - Marcelo F. L. Castro
107 - Marcelo Fernandes
108 - Marcelo Justus
109 - Marcelo Kfoury
110 - Marcelo Leite de Moura e Silva
111 - Marcelo Pereira Lopes de Medeiros
112 - Marcelo Trindade
113 - Marcílio Marques Moreira
114 - Márcio Garcia
115 - Márcio Holland
116 - Márcio Issao Nakane
117 - Marco Bonomo
118 - Marcos Lederman
119 - Marcos Ross Fernandes
120 - Maria Alice Moz-Christofoletti
121 - Maria Cristina Pinotti
122 - Maria Dolores Montoya Diaz
123 - Mário Ramos Ribeiro
124 - Marisa Moreira Salles
125 - Maurício Canêdo Pinheiro
126 - Mauro Rodrigues
127 - Miguel Nathan Foguel
128 - Mônica Viegas Andrade
129 - Naercio Menezes Filho
130 - Natália Nunes Ferreira-Batista
131 - Nilson Teixeira
132 - Octavio de Barros
133 - Otaviano Canuto
134 - Patrícia Franco Ravaioli
135 - Paula Carvalho Pereda
136 - Paula Magalhães
137 - Paulo Hartung
138 - Paulo Hermanny
139 - Paulo Ribeiro
140 - Paulo Tafner
141 - Pedro Bodin de Moraes
142 - Pedro Cavalcanti Ferreira
143 - Pedro Henrique Thibes Forquesato
144 - Pedro Malan
145 - Pedro Moreira Salles
146 - Persio Arida
147 - Priscilla Albuquerque Tavares
148 - Rafael B. Barbosa
149 - Rafael Dix-Carneiro
150 - Regina Madalozzo
151 - Renato Fragelli
152 - Renê Garcia Jr.
153 - Ricardo de Abreu Madeira
154 - Ricardo Markwald
155 - Roberto Bielawski
156 - Roberto Iglesias
157 - Roberto Olinto
158 - Rodrigo Menon S. Moita
159 - Rogério Furquim Werneck
160 - Ruben Ricupero
161 - Ruy Ribeiro
162 - Sabino da Silva Porto Júnior
163 - Samira Schatzmann
164 - Samuel Pessoa
165 - Sandra Rios
166 - Sérgio Besserman Vianna
167 - Sergio Margulis
168 - Silvia Matos
169 - Solange Srour
170 - Stephanie Kestelman
171 - Synthia Santana
172 - Thomas Conti
173 - Tiago Cavalcanti
174 - Tomás Urani
175 - Vagner Ardeo
176 - Vilma da Conceição Pinto
177 - Vinicius Carrasco
178 - Vinícius de Oliveira Botelho
179 - Vitor Pereira
180 - Walter Novaes
181 - Wilfredo Leiva Maldonado
Alon Feuerwerker: Os desafios políticos no curto prazo. E o inglório boxe da ideologia contra os fatos
As forças políticas estão diante de desafios imediatos. Na oposição, o trágico agravamento da epidemia de Covid-19 é uma oportunidade, talvez a melhor, para tentar enfraquecer decisivamente o governo Jair Bolsonaro. Para removê-lo já, ou ao menos fazê-lo chegar a outubro de 2022 tão emagrecido que se torne incapaz de reunir a maioria do eleitorado no segundo turno presidencial, ou até impossibilitado de ir à rodada final.
A remoção imediata tornou-se mais difícil após a eleição de aliados do presidente para comandar a Câmara dos Deputados e o Senado. Mas a política não é estática, então a pressão também recai sobre os comandantes do Legislativo. Que, entretanto, podem escorar-se nas maiorias ali dispostas a respaldar o núcleo econômico da agenda governamental em troca de espaços de poder, lato sensu.
Daí certa tendência ao “morde e assopra”: uma hora agradam aos críticos, mas nunca faltam ao Planalto.
A janela de oportunidade para enfraquecer o presidente e o governo, ao menos com vistas a 2022, acabou unindo o que estava difícil de juntar: a esquerda com a direita não bolsonarista. Ainda que uma parte desta continue aferrada ao discurso de “luta contra os extremos” e prefira ser chamada de “centro”, ou pelo menos “centro-direita”. Mas tanto faz: uma parte do bloco bolsonarista de 2018 está se deslocando.
O “caminhar juntos” da esquerda com a centro-direita (vamos então caracterizar assim) na luta de momento contra Jair Bolsonaro também se alimenta da grande esperança maximalista desta última: tirar o presidente até do segundo turno. No qual, a esse grupo se apresentaria finalmente uma possibilidade material de aparecer como a tal alternativa viável aos “extremos”. Aliás, o desafio do “centro” é só esse, ir ao segundo turno.
Pois ali estaria em posição excelente para eleger-se com base apenas na rejeição ao oponente. Qualquer um.
Já para a esquerda, a ampla convergência antibolsonarista de agora é chance de ouro para o “reset”, para sair do isolamento. A elegibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva ajuda, na medida em que desenha alguma expectativa de poder, sempre fator de atração. Mas chegará a hora em que esse mesmo “centro” voltará a brandir a “ameaça da volta do lulopetismo”. Pode ser no primeiro ou no segundo turno. É uma narrativa já contratada.
Já no lado do governo, a missão é atravessar o desfiladeiro, à espera de que a curva de vacinação neutralize, ao menos amorteça, a de mortes registradas diariamente pela Covid-19. As informações do Butantã do governador João Doria e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) são moderadamente animadoras. A política é mesmo cheia de contradições misteriosas: bate-boca à parte, o governo de São Paulo está objetivamente ajudando o federal no momento mais difícil deste.
Pois o único trunfo, ou boia, do Planalto nesta hora é a vacinação.
Mais ironias? O governo Bolsonaro faz há dois anos um esforço descomunal para desacoplar o Brasil da lógica Sul-Sul e engatar nosso vagão no que chama de Ocidente, ou “mundo livre”. Mas, no pior aperto sanitário da nossa história, só podemos contar mesmo é com chineses, indianos e, se a Anvisa deixar, russos. Ideologia é agradável, mas quando ela sobe ao ringue para bater de frente com os fatos nunca tem muita chance.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Luiz Carlos Azedo: É autoritarismo mesmo
Não se trata de uma guinada populista à vista, mas de um comportamento típico de governantes em apuros, que começam a recorrer à força do Estado contra a opinião pública
O professor e historiador Alberto Aggio é um estudioso da política latino-americana, seu livro Um lugar no mundo (Fundação Astrojildo Pereira/ Fondazione Instituto Gramsci) dedica especial atenção à discussão do conceito de populismo. É um crítico tanto de sua “banalização”, como um termo que expressa estilos políticos de caráter depreciável, quanto do seu uso como “teoria explicativa” do desastrado percurso histórico latino- americano rumo à modernidade, “na qual a presença do Estado na vida social e econômica se fixa como seu elemento mais negativo e que necessita ser superado ou destruído”. Na sua avaliação, o populismo emergiu num cenário de crise do liberalismo, buscava a construção de uma sociedade industrial e moderna, politicamente orientada pelo Estado, incorporando as massas à cidadania pela via dos direitos sociais. Foi “uma fuga para frente”.
Tratava-se de promover transformações sem rupturas violentas, revolucionárias, como em outros processos de industrialização. Interditou a via clássica de passagem à modernidade, caracterizada pela incorporação dos trabalhadores à democracia liberal. No caso brasileiro, o populismo emergiu após a Revolução de 1930, com Getúlio Vargas, e ganhou feições democráticas em seu segundo governo, na década de 1950. Caracterizou-se como um Estado de bem-estar social incompleto, com programa nacionalista que estatizava alguns setores da economia e legislação trabalhista e corporativista, que organizou e concedeu direitos sociais aos trabalhadores, mas também lhes retirou a autonomia.
O que isso tem a ver com o governo Bolsonaro? Nada! Por isso mesmo, não tem sentido as preocupações com uma possível “guinada populista” do atual governo. O risco é outro: a transformação de um governo bonapartista, com clara hegemonia de um determinado grupo de militares, num governo autoritário que confronta os demais Poderes e, de certa forma, o regime democrático no qual se instalou e funciona. O presidente Jair Bolsonaro não esconde de ninguém que seu espelho é o regime militar instalado após o golpe de 1964, que fará aniversário no último dia deste mês, cujas comemorações estão sendo preparadas por seus aliados, dentro e fora dos quartéis.
Desastre sanitário
No momento mais dramático da pandemia de covid-19, Bolsonaro insiste em suas teses negacionista, apesar de forçado a substituir o general Eduardo Pazuello no comando do Ministério da Saúde, em razão do seu fracasso. Colocou no cargo o médico cardiologista Marcelo Queiroga, que ainda não substituiu os militares neófitos em saúde pública corresponsáveis pelo desastre sanitário que estamos vivendo. Sua mais recente decisão sobre a pandemia foi entrar com uma ação contra governadores e prefeitos que adotaram o “toque de recolher”, que são medidas de restrição de circulação noturna dos habitantes das cidades nas quais a pandemia está fora de controle, preconizadas por sanitaristas, não se compara a um “estado de sítio”. Bolsonaro sabe que está afrontando o pacto federativo, a autonomia de estados e municípios. Sua intenção é responsabilizar o Supremo pela crise econômica provocada pela pandemia. Prefeitos e governadores também não são responsáveis pelo colapso sanitário e a crise econômica, a grande responsabilidade é do presidente da República, pessoal e indivisível.
Há outros fatos ainda mais graves em relação aos impulsos autoritários de Bolsonaro, como as ações da Advocacia-Geral da União (AGU), do Ministério da Justiça e da Polícia Federal com intuito de processar, investigar e prender oposicionistas. O uso político e abusivo desses aparatos de coerção do Estado para intimidar àqueles que criticam seu governo e sua atuação, com base numa anacrônica Lei de Segurança Nacional herdada da ditadura, é muito preocupante. Não, não se trata de uma guinada populista à vista, mas de um comportamento típico de governantes autoritários em apuros, que começam a recorrer à força do Estado para exercer o poder contra a opinião pública, sem considerar os direitos das minorias e a legitimidade do dissenso numa ordem democrática.
Dorrit Harazim: Medos cruzados
Curioso como, em meio ao horror nosso de cada dia, um mero tuíte — quase banal de tão singelo — foi capaz de acionar meus sensores semianestesiados por um ano de pandemia. “Confesso que estou exausta. Já escrevendo errado e com muita angústia do que está por vir. É a primeira vez que tenho medo do que está acontecendo”, dizia a postagem de Ethel Maciel, que eu nem sequer conhecia. Ela é, entre outras qualificações, epidemiologista e professora da Federal do Espírito Santo e dizia sentir tristeza pela falta de empatia geral no país.“O pior está por vir. Se cuidem! Estamos à deriva”, concluiu sem se alongar.
O medo, como se sabe, é desde sempre a mais primal e potente emoção a mover todas as espécies, inclusive a humana. Estudiosos ensinam que os gregos da Antiguidade tinham tantas variantes para a palavra “medo” quanto são múltiplas as designações dos povos inuit para “neve”. Felizmente, Freud simplificou as coisas. Com ele aprendemos a distinguir o medo real (nossa resposta racional e compreensível à percepção de um perigo concreto), do medo neurótico (nossa expectativa movida a ansiedade, desencadeada por coisas tão inofensivas como uma sombra na calçada). O medo real, como o da professora Maciel, exige algum tipo de ação, seja fugir para se proteger, seja combater o perigo com as armas que tiver. O medo imaginário — aquele que interpreta coincidências como sinais letais e constrói cenários catastróficos — costuma resultar em paralisia.
Pois Jair Bolsonaro, em sua cavalgada de presidente em precipício, se dedica a inverter os sinais. Declara imaginária e neurótica a mortandade por Covid-19 que, de Norte a Sul, esvazia de vida o Brasil, enquanto acredita em suas próprias insânias com medo real de perder o poder. Nada pior para um país do que ser governado por um celerado em tempos de pandemia. Em todas as unidades da Federação, o estoque de 11 medicamentos recomendados para a entubação de pacientes (derradeiro recurso, antes do óbito) está minguando. Na Região Metropolitana de Porto Alegre, uma falha na distribuição de oxigênio causou a morte de 6 doentes num só dia. No cemitério de uma cidade pernambucana de 140 mil habitantes (Vitória de Santo Antão), corpos em decomposição amontoados a céu aberto prenunciam o amanhã coletivo. Em São Paulo, a prefeitura inaugura três “hospitais de catástrofe” para estancar a hemorragia de vidas — mais de 20 mil na capital. De Teresina, chega a foto de um idoso esquálido que morreu no chão de uma UPA não mais por falta de leito de UTI, ou de leito de enfermaria, mas por falta de simples maca ou cadeira de plástico para “morrer na contramão”, como diz a canção de Chico Buarque. São as entranhas do país expostas por um presidente perverso e vigarista, que necessita de caos e fúria para existir. Quanto maior o descontrole, mais cresce seu flerte obsessivo com a exumação do “estado de sítio”.
Chefes de Estado negacionistas houve vários no planeta infectado, com gradações múltiplas de conveniência política, porém só Bolsonaro arrosta até hoje, passado um ano de horror pandêmico, seu descrédito presidencial quanto ao número de óbitos por Covid-19 no país. Segundo o colunista Lauro Jardim, a insânia já contaminou o futuro ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, antes mesmo de sua posse. Em conversa privada com pelo menos um colega médico, Queiroga teria manifestado a intenção de fazer blitzes em hospitais para aferir se as UTIs estão realmente lotadas, se tem essa gente toda morrendo de Covid-19.
Então cabem algumas perguntas: como não condenar um presidente que prega “desobediência civil” a seus fiéis, para que resistam a medidas de isolamento capazes de salvar suas vidas? Como não condenar um chefe do Executivo que finge ameaçar o Judiciário com “ação dura” caso não consiga impedir governadores de decretar lockdown? Como não condenar o presidente de um regime ainda democrático que chama o Exército de seu? “O MEU exército não vai para a rua para cumprir decreto de governador. Não vai”, garantiu Bolsonaro em tom exaltado na sexta-feira. “Se o povo começar a sair de casa, entrar na desobediência civil, não adianta chamar o Exército, porque MEU exército não vai.”
Uma última pergunta, talvez ainda mais pertinente, fica no ar: e se Bolsonaro não estiver completamente celerado ao chamar o Exército brasileiro de seu?
Daí a conveniência de a sociedade manter seu justificado medo no âmbito do perigo real — aquele que demanda de cada um uma reação. No caso, seja para se proteger, seja para combater o sombrio conluio do presidente da República com o óbito do Brasil.
Alexandre Sampaio Ferraz: A escalada dos impostos e o 1% mais rico do Brasil
Não resta dúvida que os mais ricos são taxados proporcionalmente menos, e não mais, como receita a teoria. E até aqui foram eficientes em imprimir sua agenda pelo fim da tributação.
Ao contrário do que diz o senso comum, o Brasil é um país pobre. A décima economia do mundo é apenas o centésimo país em renda per capita, segundo ranking de 2019 do Banco Mundial. Faturamos em média um pouco menos do que US$ 15 mil ao ano, o que mal chega a um terço da renda per capita da média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). O brasileiro médio, no entanto, não passa perto dessa grana. De acordo com a Rais (Relação Anual de Informações Sociais), só 10% dos brasileiros trabalhando no mercado formal (CLT) recebem salário mais alto que este, o equivalente a R$ 5.000 por mês. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) aponta ainda que cerca de 70% dos brasileiros dispostos a trabalhar mal ganham dois salários mínimos mensalmente no trabalho principal, o que equivale a R$ 2.200 em 2021.
Os baixos salários não livram o brasileiro de pagar um dos mais altos impostos sobre o consumo do mundo, mas os livra de pagar o IRPF (Imposto de Renda de Pessoa Física) — o Brasil é o 8° país que proporcionalmente mais taxa o consumo no mundo, dos 61 países analisados pela OCDE. Não existe cidadão que não queira ganhar mais do que R$ 1.900 por mês, ou ter mais de R$ 300 mil em bens e direitos e, assim, poder pagar o IRPF. Mas nada menos do que 70% dos brasileiros estão fora do seleto grupo dos declarantes; são os isentos da Receita.
Os declarantes no Brasil se dividem em cinco faixas de renda, correspondentes às cinco alíquotas existentes. São poucas quando comparamos com os países desenvolvidos, que tendem a ter mais faixas/alíquotas de forma a maximizar a progressividade. Também temos uma das menores alíquotas máximas do mundo civilizado, 27,5%, contra uma média de 41% entre os países da OCDE. A discussão sobre a proporcionalidade das alíquotas é antiga e remonta a Adam Smith, que, no livro “A riqueza das nações”, argumentava que os cidadãos (súditos, para a época) deveriam “contribuir o máximo possível para a manutenção do Governo (...) em proporção ao rendimento de que cada um desfruta, sob a proteção do Estado”.
Taxar os cidadãos segundo sua capacidade e não com uma alíquota única tem sido uma máxima da teoria da tributação desde então. O Brasil passou a adotar o imposto de renda em 1922, e logo estabeleceu a progressividade. No ano base de 1988, ainda tínhamos nove faixas com alíquotas que variavam de 10% a 45%. Mas a minoria organizada exerceu eficientemente sua voz no novo período democrático. No ano seguinte passaram a ser apenas duas alíquotas, a maior de 25%. Em 1994, introduziu-se uma nova alíquota e a máxima subiu para 35%
Mas a grita levou a uma nova redução para duas faixas/alíquotas, com a máxima de 25%, que em 1998 passaria aos 27,5% atuais. Sem conseguir implantar a “progressividade para cima”, implantaram a “progressividade para baixo”. Em 1999, criaram as alíquotas de 7,5% e 22,5% ao lado da antiga mínima de 15%, que vigorava desde 1992. Não é simples implementar a progressividade e sobretudo taxar os mais ricos. E este não é um problema só do Brasil, como mostram Gabriel Zucman e Emmanuel Saez no livro “The Triumph of Injustice: How the Rich Dodge Taxes and How to Make Them Pay” (em tradução livre, “O triunfo da injustiça: como os ricos evitam impostos e como fazê-los pagar”), publicado nos Estados Unidos, em 2019.
A alíquota padrão ou de referência não é, na verdade, a alíquota efetiva paga pelos declarantes. A tributação do IRPF varia também por tipo de rendimento auferido no ano, e ainda tem as isenções legais. Ocorre que justamente os mais ricos têm mais rendimentos provenientes de fontes com tributação exclusiva e isentas de imposto.
A REFORMA TRIBUTÁRIA E A ATUAL CRISE ECONÔMICA PODEM TER ABERTO UMA JANELA DE OPORTUNIDADE PARA MUDARMOS ESSE JOGO, EM DIREÇÃO A UM PAÍS MAIS JUSTO
A “alíquota efetiva”, ou o total de tributos pagos em proporção da renda total declarada, tributável ou não, deveria aumentar conforme a renda. Mas isso só ocorre até os contribuintes que declaram em média cerca de R$ 35 mil por mês em rendimentos. A progressividade pode ser vista no gráfico abaixo. O ordenamento e a alíquota efetiva foram calculados sobre a renda RB2, ou a renda tributável bruta + renda de sócio/titular + lucros e dividendos + rendimento sujeito à tributação exclusiva.
O recurso de imaginarmos uma escada com 100 degraus ordenando os contribuintes segundo sua renda anual declarada é sempre conveniente neste momento. Até o 15º degrau a alíquota efetiva é próxima a zero. A receita até recolheu cerca de R$ 5 milhões em impostos com os 7,5 milhões de contribuintes no primeiro quarto da escada — ou seja, com os que estão nos 25 primeiros degraus —, mas é um valor insignificante perto dos R$ 153,8 bilhões arrecadados em 2018.
A partir do 15º degrau a alíquota se eleva de forma progressiva até o 98º, o antepenúltimo. Neste patamar, os declarantes pagam entre 13,4% e 11,8% de imposto, e a alíquota é menor quando incluímos na RB2 as receitas declaradas como “outros rendimentos isentos”. Daí em diante a alíquota efetiva despenca. Os 29,8 mil declarantes no penúltimo degrau pagam em média 10,7% da renda em IRPF. Já o pessoal no clube dos 1% paga apenas 4,7% em média.
Mesmo os 1% mais ricos podem se achar injustiçados, pois enquanto os 10% mais “pobres” deste grupo pagam alíquota de 8,8% sobre a renda, os 10% mais ricos pagam uma alíquota efetiva de apenas 2,5%. A pontinha da cauda é ainda mais cruel: os 2.984 declarantes com maior renda pagaram efetivamente em 2018 apenas 1,6% em imposto sobre a renda total declarada. Não resta dúvida que os mais ricos pagam proporcionalmente menos, e não mais, como receita a teoria. E até aqui foram eficientes em imprimir sua agenda: chega de impostos! Mas a reforma tributária e a atual crise econômica podem ter aberto uma janela de oportunidade para mudarmos esse jogo, em direção a um país mais justo e com menos desigualdade.
Alexandre Sampaio Ferraz é economista, doutor em ciência política e assessor técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).
José Roberto Mendonça de Barros: Existe futuro para a indústria?
Estamos longe da trajetória de crescimento sustentável, se comparado com o PIB global nas últimas décadas
O Brasil deixou de acompanhar o crescimento global desde 1980. Esse distanciamento se acentuou depois do novo milênio e, em particular, após 2010: nesse período, o PIB global cresceu 31%, enquanto o nosso mal se moveu, expandindo-se até o ano passado pífios 2% na última década.
A pandemia aumentará essa diferença, pois, na estimativa do FMI, o crescimento mundial deste ano será robusto, de 5,5%, e, para o Brasil, de 3,6%. A expectativa da MB é de um crescimento mais fraco, de apenas 2,6%. O cenário está desolador, com recrudescimento da covid, falta de vacinas, recorrentes restrições à mobilidade, piora generalizada nas expectativas, enfraquecimento do mercado de trabalho, fortes pressões inflacionárias e consequente elevação de juros e forte incerteza fiscal. Todos esses elementos dominam completamente a situação, ao contrário do mundo de fantasia que se vive em Brasília.
Mesmo o mais otimista observador do cenário brasileiro há de concordar que estamos muito longe de uma trajetória de crescimento sustentável.
Nos anos mais recentes, observamos uma desaceleração forte e sistemática do crescimento industrial. Isso explica boa parte da perda de dinamismo da economia como um todo. Sugere também que, sem algo novo na indústria, será difícil retomar uma trajetória construtiva.
Ao lado da queda da indústria, observamos uma expansão sistemática da agropecuária, baseada em investimentos e crescimento de produtividade. Esse processo se tornou endógeno e está levando a uma crescente utilização de produtos industriais e serviços no processo de produção (o modelo da agricultura de precisão). Expandem-se cada vez mais a produção de novos energéticos, alimentos e materiais, a partir das matérias-primas agrícolas, gerando uma produção industrial sustentável e biodegradável.
Será possível voltar a crescer sem a participação intensa da indústria? Não creio. Boa parte do progresso tecnológico ainda ocorre no setor. O Brasil ainda não tem maturidade nem massa crítica em ciência e inovação para ser um gerador de tecnologias, de forma a viabilizar a criação de valor sem indústria.
Como, então, explicar sua queda sistemática? Por que o setor agroindustrial tem sustentabilidade em seu crescimento? Existe alguma lição que se possa extrair para a indústria?
Boa parte das análises produzidas pelas lideranças industriais coloca exclusivamente no ambiente externo (o “custo Brasil”) a razão fundamental da perda de dinamismo. Estará aí toda a verdade?
Estamos no momento em que é imperioso debater valores e elementos das estratégias das indústrias para refletirmos a respeito de ações e políticas que possam alavancar seu desenvolvimento.
Junto com João Fernando Gomes de Oliveira, elaboramos um pequeno texto no qual, sob o título desta coluna, buscamos resumir nossa visão sobre como chegamos até aqui e o que deveria ser incorporado na formulação de bases para uma nova fase do setor.
Tendo isso como ponto de partida, combinamos com Marcos Lisboa e o Insper a realização de um webinar no dia 6 de abril, quando analisaremos também casos bem-sucedidos, que podem iluminar caminhos futuros. Participarão adicionalmente do evento João Paulo Gualberto da Silva, diretor superintendente da WEG Energia, Eduardo Augusto Ayrosa Galvão Ribeiro, presidente da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), e Paulo Hartung, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores. (www.insper.edu.br/agenda-de-eventos/existe-futuro-para-industria)
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Consolidou-se a percepção de que a escassez de vacinas e a piora na situação da pandemia irão reduzir o crescimento esperado para o ano, levando muitos analistas a diminuir as projeções feitas em janeiro.
Embora não tenhamos alterado nossa previsão de crescimento (2,6%), elevamos a do IPCA para 5%.
Em consequência, agiu bem o Banco Central ao iniciar a normalização da política monetária nesta semana, embora tenha demorado para perceber que a pressão inflacionária é mesmo forte e tem de ser enfrentada.
*ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE
Luiz Sérgio Henriques: Os bárbaros entre nós
Há setores da esquerda dispostos a sacrificar os direitos humanos se as ditaduras são ‘amigas’
Nem mesmo quando a pandemia grassava nos Estados Unidos sem perspectiva de controle, e o então presidente Donald Trump perdia o trunfo de alguns ganhos econômicos que podia alardear, era totalmente certa sua derrota nas urnas. Não importava muito que os democratas houvessem encontrado em Joe Biden uma saída equilibrada e confiável, de resto quase sempre à frente na maioria das pesquisas pré-eleitorais. Na verdade, tão espalhado é o mal-estar difuso nas democracias, tão grande a crise do político, mais além das crises convencionais da política, que o campo aberto à disposição dos demagogos parece inesgotável, possibilitando-lhes passes de mágica e ilusionismos vários até há pouco próprios só do realismo fantástico.
Convém ter isso claro ao analisar o momento atual do presidente Bolsonaro no penúltimo ano de mandato, já se podendo prever, sem margem a dúvida razoável, o quadro catastrófico que se abriria em caso de reeleição. Os números negativos sobre seu desempenho no (não) enfrentamento da pandemia – um evento excepcional – ou na administração regular dos problemas do País podem até subir consistentemente, como parece ser a tendência, mas sempre sobrará para esse tipo de líder a tentação do desatino fatal: o ataque frontal às instituições, iconicamente representado no assalto ao Capitólio.
Além disso, a derrota de Trump ao fim do primeiro mandato – como assinalou Yasha Mounk, que de populismo autoritário entende – não seguiu o padrão habitual. É que, em média, tais líderes tendem a ficar mais tempo no poder do que primeiros-ministros e presidentes comprometidos com as regras da alternância, e os eleitores só os defenestram depois de já seriamente comprometidas as instituições.
Nada simples desvendar o segredo de tal resiliência, mas o fato é que esses dirigentes autoritários expressam e estimulam um contexto em que há imensas falhas tectônicas entre os territórios da política e da economia. A primeira, ainda basicamente vivida e pensada em termos nacionais; a segunda, crescentemente globalizada, sem instituições que a regulem e garantam a correção dos desequilíbrios provocados por seu movimento “cego”. Retomar o controle nacional sobre o movimento da “máquina do mundo”, fechar fronteiras, destruir os fóruns de cooperação mundial e, por certo, acirrar conflitos externos e a guerra interna de classes, eis a substância da distopia que incendiou a imaginação de políticos e ideólogos do novo populismo.
Por isso o léxico de que se valem os nacionalistas autoritários é impressionantemente monótono: a “América primeiro”, de Trump, é o lema que tentaram, ou tentam, retraduzir em suas nações Salvini, Erdogan, Orban, Le Pen. Entre nós, o “Brasil acima de tudo” trouxe em si o aspecto irônico de ser um nacionalismo contraditoriamente dependente de outro, e ademais, com a vitória de Joe Biden, agora órfão na parte ocidental do mundo. E o “Deus acima de todos”, independentemente do que pensarmos sobre a profundidade da vida espiritual de quem nos governa, sintetiza no plano retórico a disposição de usar, sem moderação e a despeito dos processos de secularização que supúnhamos consagrados, a arma do fundamentalismo religioso.
O cardápio envenenado implica a volta aos valores de um passado muitas vezes pré-iluminista, a proposição de uma modernidade reacionária e amputada da dimensão do individualismo democrático, para nada falar do marxismo, seja lá a extensão ou o sentido a ser atribuído a esse termo. O recuo às fronteiras nacionais, por óbvio, tem como consequência abdicar da capacidade de pôr de pé uma ordem mundial minimamente cooperativa e pacificada: até o comércio entre as nações se torna a continuação da guerra por outros meios. Em cada país individualmente considerado, as marcas evidentes são a democracia sem liberalismo, o Führerprinzip como a realidade por trás do slogan do “povo no poder”, bem como o recurso permanente às rançosas lutas culturais, na falta de projeto hegemônico consistente. E naturalmente, com o isolacionismo, a intensificação do racismo e da xenofobia.
Tudo seria simples demais, os campos estariam bem demarcados e só restaria partir para o bom combate do voto e das ideias, não fosse o fato perturbador de que também há setores da esquerda de orientação “soberanista” e antiliberal, dispostos a sacrificar o legado iluminista e até os direitos humanos, quando os ditadores são “nossos” e as ditaduras, amigas. Não se trata só de crasso erro prático, capaz de minar a prática das alianças e das amplas frentes em prol dos valores democráticos. Trata-se, também, de insuficiência teórica que impede ver em toda a sua amplitude os processos de democratização política e social, bem como o papel que neles tiveram os “subalternos”, em geral representados por socialistas em conflito – mas também em colaboração – com liberais e mesmo conservadores.
É essa dinâmica aberta e generosa, historicamente decisiva, que convém restaurar o quanto antes, mesmo porque os bárbaros estão às portas e, ai de nós, em alguns casos já as derrubaram.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Paulo Fábio Dantas Neto:Democracia como vacina política e as cloroquinas de ocasião
Dedico a coluna de hoje ao Dr. Severino Elias, médico com profundo sentido de missão, que nos deixou ontem, depois de semanas de luta pessoal contra a Covid. Essa foi, porém, apenas a sua batalha final. Antes desse desfecho, chorado por quem perdeu o amigo e a referência profissional, houve um ano de dedicação e bravura cotidianas para não abandonar seus pacientes, apesar dos mais de 70 anos de idade e quase 50 de serviços prestados. Dele é possível dizer, sem exagero, que doou sua vida a uma vocação. Eis a razão desta homenagem, que me vale, também, de estímulo para escrever o que segue.
Peço perdão a Cabral (o João) por passar agora da evocação de uma morte e vida severina, alegórico exemplar do seu poema imortal da humanidade brasileira, para uma alusão à mais abjeta negação de qualquer humanidade. Incluo, a contragosto, entre as reflexões de hoje, as mais recentes agressões psicopáticas do presidente da República à dor infinita do povo que ele deveria defender. Evocar seus ares debochados com as vítimas da falta de ar e o seu incentivo perverso a saques e outras violências incalculáveis é um introito necessário ao argumento que aqui procurarei desenvolver.
O desespero de incontáveis pessoas está fazendo com que se disponham a pagar qualquer preço para que Bolsonaro seja tirado, o quanto antes, do lugar de poder que ele desonra. Compreensível desejo que não pode, contudo, nos distrair da hipótese de que um Putin militar esteja nos aguardando na esquina. O que o Dr. Marcelo Queiroga está prometendo fazer caso assuma mesmo o Ministério da Saúde pode dar ideia do que seria o resultado da substituição do presidente por seu vice, se feita de modo imprudente, sob pressão desse desespero, ou por sua manipulação. Seria cloroquina, nada mais.
Confirmam-se, no MS, sombrias conjecturas. O que era péssimo com o general Pazuello, ensaia piorar. Sua queda banal - que para muitos parecia ser cirurgia providencial, a ponto de se apostar fichas numa CPI de tempestividade e eficácia duvidosas - não diminuiu a premência da vigilância constante da fera, pela comunidade da saúde, imprensa e sociedade, assim como não provou ser medida mais eficaz do que o tratamento paliativo, tópico, atenuante, conservador, com que a atitude prudencial do Congresso e do sistema político de um modo geral, contém efeitos dos impulsos de morte emanados do palácio.
O médico que se quer impor ao ministério é mais perigoso do que o general destrambelhado. Ele pode destilar o veneno da dúvida na opinião técnica, dividi-la, isso resultar em maior desorientação ainda da população e essa desorientação, por sua vez, alimentar ainda mais aglomerações e outras atitudes de risco, às quais terão que corresponder atitudes mais duras de polícias estaduais. Tudo isso gera um altíssimo potencial de conflito político entre poderes e de confrontos de rua, inclusive físicos, entre pessoas. Em síntese, o caos social expresso em desordem. Essa é, ao fim e ao cabo, a meta que Bolsonaro persegue, enquanto finge preocupar-se apenas com as urnas. Resistamos ao autoengano: se urnas prometem, cada dia mais, ser um pesadelo para ele, não se deve esperar que marchará para elas como se fosse um líder democrático, porque ele é a antítese disso. É claro que precisamos estar cientes de que o subversivo fará tudo que estiver ao seu alcance para virar a mesa antes disso. E que quem comanda nossas instituições não pode vacilar um só dia na vigília para impedi-lo de tornar seus planos realidade.
Impedir não é, contudo, virar a mesa antes dele, permitindo que o impulso autocrático que ele encarna retorne ao jogo com força. O tratamento conservador, da democracia sem atalhos, continua sendo crucial para a saúde política e social desse paciente em estado crítico que é o nosso país, por mais enervante e angustiante que essa linha de conduta seja. Democracia é a vacina, tudo o mais, cloroquina.
Embora a queda de Pazuello sequer tenha sido consumada na prática, as primeiras pistas oferecidas pelo agente Queiroga, um projeto de Dr. No (personagem de romance de Ian Fleming, popularizado pelo cinema, ao fazê-lo antagonista de James Bond, o agente 007), permite também imaginar o que seria um pós-bolsonaro antecipado sob a batuta salvacionista do ex-general Mourão. Ou mesmo a investidura desse último, como quer a procuradoria do MPF junto ao TCU, na gestão do combate à pandemia. Nenhuma morte já marcada para ocorrer, por falta de remédios, oxigênio, ou leitos, deixaria de ocorrer. Mesmo se um anti-bolsonarista autêntico (que nem de longe é o perfil do ex-general em causa) chegasse ao MS, levaria semanas, talvez meses, para conseguir o que hoje falta para salvar vidas de novas dezenas, talvez centenas, de milhares de brasileiras e brasileiros marcados para morrer anonimamente.
É preciso ver que se torna cada dia mais difícil conter a revolta e a suposição de alívio que a ideia de Bolsonaro ser logo afastado produz. Nessas condições, a solução proposta ao TCU, se considerada, poderá produzir mesmo algum alívio, se for uma tentativa de, ao menos, impedir o prolongamento da atual tragédia seguindo semestre afora, que é a missão dada, pelo visto, ao ministro que consta estar prestes a assumir. Ficam, mesmo assim, dúvidas, que nada têm de laterais, sobre o que ou quem levaria Mourão - caso assumisse a gestão da pandemia e até cancelasse a virtual nomeação de Queiroga - a tirar os militares do Ministério da Saúde e sobre até onde iria o seu poder para tirar, de agências governamentais externas ao MS, outros agentes que poderiam ajudar Bolsonaro a minar uma suposta nova política sanitária para perpetrar a próxima etapa do seu plano macabro. Questões em aberto.
A partir dessas dúvidas, alguém poderá argumentar, com alguma razão, que esse paliativo não resolve, sendo preciso afastar Bolsonaro, não apenas da gestão da pandemia, como do próprio cargo que ocupa. Mas ainda que sigamos esse raciocínio aparentemente pragmático, respaldado pela intensidade da atual tragédia sanitária, é preciso indagar, de saída, em que bases poderia surgir, de fato, um novo governo e não apenas a troca do ex-capitão por um ex-general no comando do mesmo governo. Quem, nessa situação ditada pelo desespero, poderia exigir de Mourão o desmonte do atual governo e do dispositivo paramilitar que foi nele introduzido e, com isso, constituir um governo de transição? Mais provável seria que tomássemos o caminho da Rússia, mudando expectativas e regras, para manter a situação.
Com isso não quero dizer que alternativas intermediárias arriscadas devam ser preliminarmente afastadas, em qualquer hipótese. Algo que se considera provável não é sempre uma fatalidade, claro. A política democrática pode criar caminhos onde parece haver apenas muros e precipícios. Essa é a sua missão legítima, desde que se respeite a Constituição, a premissa que a legitima. Mas o que não se pode é ser afoito, ou ingênuo, diante dos perigos. Para evitar risco de Rússia, o melhor é aguentar as pontas até 2022, no limite máximo do possível. E correr o risco de que tentem invadir, antes, o nosso capitólio. Será custoso defendê-lo, mas igualmente preciso.
O desafio à resiliência democrática já era grande, antes da reentrada de Lula no primeiro plano da cena política. Agora, a situação torna-se ainda mais complexa e precisa ser analisada por ângulos diversos. De um lado, é óbvio que mais gente do topo, do establishment, seja civil ou militar, tende a ser tomada, como se fossem ultra-esquerdistas voluntariosos, por uma súbita e suspeitíssima pressa de livrar logo o país de Bolsonaro e entregá-lo a um guardião que atalhe o caminho até as urnas, não para calar a voz do demos soberano, mas para modular a sua fala. De outro lado, a visibilidade que ganhou, há dez dias, uma primeira alternativa pré-eleitoral concreta a Bolsonaro pode fortalecer e animar democratas de várias orientações políticas a persistirem na aposta na democracia, apesar das tentativas de bloqueio a essa reta visão que, por vezes, tornam sinuoso esse caminho.
No horizonte está, como é óbvio, uma eleição daqui a um ano e meio. Ainda bem que assim é. Ligada a esse horizonte, sem se prender exclusivamente a ele, é que pode prosperar uma política de unidade democrática. Com o cuidado de não se fazer dela um evangelho oco, desligado da realidade cotidiana das pessoas comuns. Tão importante quanto pregar unidade é deixar claro o que se quer dizer com ela.
Proclama-se a torto e a direito a necessidade de uma “frente única” contra Bolsonaro. Essa frente única não é e nunca foi provável, do ponto de vista eleitoral. O que se pode ter, ou melhor, o que temos tido é uma frente amplíssima em defesa da democracia contra as investidas golpistas e autocráticas do palácio e de suas cercanias espúrias, visíveis e invisíveis. E mais recentemente nota-se também a formação de uma frente política e social igualmente ampla, em prol de vacinas, de vacinação e do provimento, na contramão da desorientação deliberada que Bolsonaro dá ao governo federal, de mínimas condições de governabilidade e de amparo médico, hospitalar e social nesse instante crítico da pandemia.
Mas isso é uma coisa e a questão pré-eleitoral é outra. Não há como juntar as forças políticas democráticas, de direita, centro e esquerda em torno de uma única candidatura já no primeiro turno das eleições presidenciais. Se pensarmos bem, isso nem seria desejável, pois anteciparia o segundo turno para o primeiro sem que os eleitores pudessem captar o posicionamento atual de cada força política. Essa visão turva tenderia a reeditar o script de 2018 e o resultado dele, como sabemos, é o desastre que vivemos hoje. Lula e o PT podem até ser protagonistas no novo cenário, sem que isso signifique flertar com a tragédia. Flertar com a tragédia será, sim, repetir, não tanto os atores, mas aquele script. Entre a proliferação de candidaturas ao centro e à esquerda (como houve em 2018) e a antecipação de um segundo turno ainda durante o primeiro, um meio termo é desejável e possível.
Dois processos de agregação oposicionistas podem ocorrer, um na centro-direita, outro na centro-esquerda e ambos tenderem ao centro, com seus candidatos evitando, ao máximo, trocar farpas e assim prepararem terreno a uma aliança no segundo turno. A agregação da esquerda ao centro dificilmente se fará em torno de outro nome que não Lula e de outro partido que não o PT. Já a que pode ir da centro-direita ao centro é só incerteza se o critério for a intenção de voto, cuja medição, hoje, só pode refletir o recall de 2018. Se o critério for o capital político estimado como potencial de voto, a incerteza diminui e sobressai, como já comentei aqui na semana passada, o nome ex-ministro Luiz Mandetta.
A possibilidade de uma saída desse tormento por uma via democrática torna legitimo que se fale, sim, abertamente, de política, em plena pandemia. Sei que o preço em vidas para manter a democracia está sendo muito alto. Mas os países que conhecem o seu valor, pagam, porque sabem que ela, a democracia, é a única vacina disponível e que, fora dela, não há solução melhor e mais sustentável do que as lentas e penosas soluções que, através dela, a política pode construir. Essa convicção - sem a qual uma sociedade se torna escrava – é que impede elites políticas e sociedade civil de alienarem a condução do país a autocratas, cloroquinas que estão sempre de plantão. Saber recusar, no meio de uma tragédia social, esse barato que afinal sairá mais caro, é teste definitivo de maturidade democrática. A sociedade que passa por esse teste não só se livra do inimigo - ainda que tarde e chore muitas perdas severinas - como submete à justa punição, na devida hora, quem a ele se aliou na hora de batalhas decisivas.
*Cientista político e professor da UFBA
Cristovam Buarque: Turno único
Democracia em risco
Diversos candidatos se propõem a impedir a reeleição do atual presidente. Na medida que a eleição se aproxime, disputarão mais entre eles do que contra o opositor deles. Porque vão concentrar a disputa na busca de chegar ao segundo turno. Seus adversários serão seus aliados. Ao concentrarem a disputa entre eles, os candidatos criarão antagonismos que serão levados até o segundo turno, por eles próprios e por seus eleitores.
Vimos isto em 2018, quando os candidatos que perderam no primeiro turno não se empenharam na campanha de Haddad, quando este chegou ao segundo turno. Muitos dos eleitores preferiram votar nulo ou branco ou simplesmente se ausentarem. Isto ocorre em qualquer tempo, muito mais em momentos de confrontos e acusações radicalizadas, como atualmente. Apesar de que Bolsonaro hoje assusta e indigna mais do que em 2018, depois de tantas acusações, será o envolvimento pleno dos perdedores, apoiando quem chegar no segundo turno.
Os candidatos democratas que percebem este risco têm a obrigação de evitar um segundo turno e consequentemente o risco de um novo mandato para o presidente atual. Devem perceber também que o papel desempenhado pelas Forças Armadas nestes dois anos e a farta disseminação de armas entre bolsonarista podem levar a um “terceiro turno” nas ruas, caso ele perca por uma margem estreita no segundo turno. As afirmações de que não acredita nas urnas eletrônicas e de que prevê fraudes indica uma possibilidade de se manter no poder, usando milícias para invadir Congresso e Tribunal Eleitoral, prender ou eliminar adversários.
As forças democráticas devem evitar este risco: construir uma aliança que una os partidos e os candidatos para vencerem logo no primeiro turno, por uma diferença indiscutível, e em função disto estruturarem um governo de concertação nacional, sem o qual será difícil levar adiante o novo governo diante das sequelas das epidemias e malditos que afligem o país.
É preciso colocar o país na frente dos interesses e posições de cada partido e de seus líderes, seus programas e ambições. Construírem uma unidade vencedora e capaz de conduzir o país. Para tanto, é preciso reconhecer os erros cometidos no passado, aceitar que não foi dada a devida prioridade para reformas estruturais que servissem às necessidades das camadas pobres, nem aquelas necessárias para ajustar o Brasil ao futuro, além de que foram mantidas indecentes mordomias e privilégios. Sobretudo, houve aparelhamento partidário da máquina do Estado que permitiram a corrupção avassaladora sobre as estatais.
Nada disto pode ser ignorado, e a Justiça deve ser feita. Cumprida a Justiça em relação aos crimes do passado, a Política precisa olhar o futuro. Os juízes devem prender quem for preciso prender, os políticos devem dialogar com quem for preciso para salvar o País. Em busca de vencer Bolsonaro no primeiro turno, por uma margem que acalme seus fanáticos desarmados e constranja suas milícias armadas.
Se não for possível o impeachment antes, ainda é tempo de construir-se um turno único contra Bolsonaro em 2022.
*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro
Saiba o que a tecnologia de vacinas contra Covid pode fazer por outros pacientes graves
Revista mensal da FAP mostra que técnicas científicas para produção de imunizantes lançam luz sobre tratamento de pacientes com câncer e esclerose múltipla
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
Reportagem especial da revista Política Democrática Online de março mostra que a pressão da pandemia da Covid-19 impõe um iminente risco de colapso hospitalar em boa parte dos hospitais pelo mundo, mas também mostra o avanço da ciência para abrir um leque de esperança até para pacientes com outras moléstias.
Com periodicidade mensal, a revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.
De acordo com a reportagem da revista da FAP, estudos sinalizam que a tecnologia genética exclusiva de vacinas contra o coronavírus pode ser aplicada no tratamento de pessoas com doenças graves, como câncer e esclerose múltipla.
Material genético
O texto conta que novas tecnologias para produção de vacinas, notadamente aquelas que usam o material genético do vírus Sars-Cov-2, podem rapidamente ser adaptadas para novos agentes causadores de doenças, de acordo com o médico Alexander Precioso, diretor da Centro Farmacologia, Segurança Clínica e Gestão de Risco do Instituto Butantan.
“A tecnologia genética exclusiva das vacinas Moderna e Pfizer/BioNTech contra a Covid-19 é uma das que podem ser aplicadas no tratamento de outras doenças, incluindo câncer”, diz um trecho. “O método mRNA, usado na imunização, tem o potencial de fornecer grandes avanços médicos em outras áreas, de acordo com a Innovations Origins”, continua
Os pesquisadores da vacina contra a Covid-19 descobriram uma maneira de entregar o RNA mensageiro às células sem ser destruído prontamente pelo sistema imunológico. Eles embrulharam o mRNA em uma armadura protetora de moléculas de gordura para disfarçar o material.
Como é
Funciona da seguinte forma: com é entregue com segurança às células, o mRNA programa o corpo para produzir proteínas do vírus contra o inimigo. Neste caso, é a proteína spike do SARS-CoV-2, o vírus que causa o Covid-19.
Ao receber mensagem genética escrita em uma molécula de RNA, o organismo faz suas próprias células produzirem proteínas de que necessita para imunizar-se, explica o texto jornalístico.
A reportagem especial da revista Política Democrática Online também mostra que o início da vacinação no Brasil levantou muitas dúvidas na população. Todas as vacinas, no entanto, seguem protocolos rígidos até começarem a ser aplicadas nas pessoas.
No caso do Brasil, devem ser aprovadas antes pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No país, por enquanto, apenas a Coronavac e da AstraZeneca/Oxford estão permitidas.
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O Globo: Troca no Ministério da Saúde irrita Arthur Lira e provoca insatisfação no Centrão
Escolha de Marcelo Queiroga incomodou o presidente da Câmara, que preferia médica Ludhmila Hajjar ; senador Ciro Nogueira, presidente do PP, atua para conter os ânimos
Bruno Góes, Paulo Cappelli e Natália Portinari, O Globo
BRASÍLIA – A escolha do novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, provocou insatisfação no presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e em seus aliados. Eles demonstram desconfiança com o médico, escolhido por sua ligação com Jair Bolsonaro. A preferência pelo seu nome, porém, contou com o aval do presidente do PP, o senador Ciro Nogueira (PI), que tenta acalmar os ânimos.
Ao concretizar a substituição de Eduardo Pazuello, Bolsonaro rifou a cardiologista Ludhmila Hajjar, apoiada publicamente por Lira. O deputado do PP, segundo interlocutores, ficou "muito chateado".
No partido, Lira havia defendido a indicação de Ludhmila em detrimento do deputado Luizinho (PP-RJ), preferido entre os parlamentares. À bancada, Lira disse que Bolsonaro não aceitaria o nome de um político nesse momento e, então, o ideal era dar apoio a Ludhmila. Quando o presidente mudou de ideia, Lira se irritou.
Em conversa no Palácio do Planalto com o presidente, na tarde de terça-feira, porém, Ciro Nogueira deu aval ao nome do cardiologista. Ao sair do Palácio do Planalto, ele tentou acalmar os ânimos de Lira. Na segunda-feira à noite, após o anúncio de seu nome, Queiroga se reuniu com diversos deputados do PP, como Hiran Gonçalves (RR), Celina Leão (DF), Margarete Coelho (PI) e de outros partidos, como Soraya Santos (PL-RJ).
Parlamentares cobram desde o fim do ano passado o cumprimento de um calendário de vacinação factível e veem como fundamental uma mudança de postura do ministério. Alguns aliados de Lira dizem até mesmo publicamente que não há mais chance para erros.
– O Congresso vai dar o todo apoio. Mas, numa situação grave dessas, o ministro não pode aprender a ser ministro. Tem que ser ministro e colocar em prática o calendário de vacinação – afirma o vice-presidente da Casa, Marcelo Ramos (PL-AM).
Além de condenarem o papel de Pazuello na Saúde, alguns parlamentares esperavam que pudessem ter mais influência no ministério para coordenar as políticas voltadas diretamente para suas bases eleitorais.
Parlamentares do Centrão e aliados de Lira disseram ao GLOBO, em caráter reservado, que a postura de Bolsonaro no episódio poderia incitar retaliações em "votações importantes". Entretanto, essa ainda é uma conjectura diante da insatisfação.
– É um dos ministérios mais delicados de qualquer governo. Não é possível trazer alguém para tentar entender o que está acontecendo. É delicado. Queiroga é uma pessoa que tem capacidade médica, mas não conhece o sistema de saúde. Temos o exemplo do Teich. Quanto tempo ele durou? Um mês. Era extremamente qualificado academicamente, mas o Ministério da Saúde é uma área técnica, mas também política. Em um momento como esse, não dá pra botar pessoa que ainda está tentando entender o que está acontecendo internamente – diz o deputado Hugo Leal (PSD-RJ).
Roberto DaMatta: Viramos jacaré?
Meu senso de antropólogo cultural antigo e de não especialista (hoje, o Brasil é a pátria desses maravilhosos profissionais) prevê que teremos múltiplas vacinas contra o competidor biológico maior, a Covid-19, com suas famílias e linhagens que o governo Bolsonaro incrementa por meio de um pueril negacionismo e por uma adulta e criminosa sabotagem.
O vírus, não custa repetir, além de ser um agente epidêmico mortal e sem intenções (exceto sobreviver), é — tal como as nossas elites, de que somos parte e parcela — um predador invisível e solerte.
Aliás, conforme escreveu um “especialista” chamado Charles Darwin, no mundo natural, além de uma perturbadora ausência de intenção (ou causa final) e de uma óbvia presença de oportunidade, quem melhor se adapta e mais se reproduz triunfa.
O significado dessa desgraçada vitória, devo logo dizer antes que me levem à guilhotina moral, é a grande questão do nosso mundo, já que, de modo claro, ela suprime um outro mundo, uma outra vida e — quem sabe? — engendra uma história alternativa...
Se levamos a sério as premissas darwinistas, cabe honrar ao menos “este mundo” de que estamos certos e onde atuamos. Pois o fato inexorável é o seguinte: se tudo ocorreu ao acaso num planeta igualmente singular, posto que ele próprio é “vivo”, o sentido final da existência não precisa ser justificado por uma outra vida. Ela tem que fazer sentido aqui e agora, como demandam o vírus, os sanitaristas e todos os inesperados. Acima de tudo, os inesperados paradoxalmente previstos (e planejados) dos abismos entre quem tem demais e os despossuídos.
Não é preciso ser um sábio para dirimir os abismos sociais do Brasil. Eles saltam aos olhos quando saímos de casa — se casa temos...
Nesta etapa antropocênica — em que a pandemia impede, entre outras dimensões, que se possam disfarçar as imensas desigualdades mundiais, os vergonhosos abismos sociointelectuais nacionais e os transtornos de um planeta agredido por “empreendedores” esquecidos de que são por ele englobados e foram por ele engendrados —, não há a menor dúvida de que a espécie triunfante, o Homo sapiens, é ao mesmo tempo Deus e algoz do mundo que habita e dele mesmo.
Diz um celebrado mestre-pensador (Claude Lévi-Strauss) que, graças à invenção da linguagem articulada e dos costumes, somos um superpredador com um trajeto semelhante ao do câncer, porque conseguimos uma multiplicação além da Bíblia. Hoje somos onipresentes. A onisciência e a onipotência que nos tornariam divinos está em nossa volta e se afirmam nos laboratórios e nas “armas de destruição em massa”, esse eufemismo para artefatos com o poder de simplesmente assassinar o planeta em nome de alguma desavença nacional!
Avaliando com minha óbvia insuficiência essas pressões, tenho, não obstante, um temor de idoso: imagino, conforme confesso ao meu filho Renato, um consumado biólogo, pesquisador e professor universitário, que o vírus pode ter vindo para ficar.
O que significa esse “ficar” quando o ideal de conforto, satisfação e dignidade depende de um rude individualismo (primeiro eu, depois os meus e em seguida quem pensa e faz como eu!) — uma consciência do mundo que convenientemente inibe reciprocidades, interdependências e só imagina o outro como adversário ou inimigo a ser eliminado (ou cancelado, como se diz atualmente)?
Não deixa de ser paradoxal que o lado mais perturbador do vírus seja sua potência de bloquear o que nos tornou humanos: a sociabilidade ancorada na presença do outro. A dialética da costumeiro e do exótico — do encontro interessado ou espontâneo. Enfim, o que originou as grandes descobertas, inclusive a desses bichos invisíveis que existem ao nosso lado e interagem conosco porque são tão antigos quanto nós.
A habitual negação e a sabotagem do vírus no Brasil — cujo maior responsável é uma atitude emocional e irracional do presidente Bolsonaro e de seus seguidores —não são só um ato de desgoverno desses que permeiam e estruturam a admiração nacional desde que nos entendemos como um coletivo; são um risco para a Humanidade.
Certo que Adão não foi criado no Brasil, mas é igualmente verdadeiro que a Humanidade pode ser radicalmente ameaçada a partir de nossa cuidadosa e precisa negligência negacionista. De nossa incapacidade de realizarmos uma leitura mais abrangente de nosso lugar na Terra.
Enfim, se não nos conscientizarmos do perigo que estamos causando a todo o planeta; se não nos dermos conta de que o vírus impede o comércio, a aliança, a troca em todos os seus níveis que nos fizeram humanos, então vamos virar jacarés.
Cumpriremos um dos mais devastadores vaticínios do mais insensível presidente da nossa história.