sistema único de saúde

Ligia Bahia: A PPP pró-pobres e pretos

Instituições de saúde onde pobres e negros só entram como serviçais não devem ser financiadas com dinheiro público

Falso positivo é o registro de um fenômeno que parece ser, mas não é. Quando se trata de testes, refere-se a uma alteração ou doença que não existe. Na política, indica relações causais errôneas, das quais derivam ações supostamente favoráveis. Falsos positivos não são mentiras, expressam limites na coincidência entre essência e aparência. Resultado laboratorial positivo não é necessariamente diagnóstico, depende. Para que um teste seja bom, seu valor preditivo deve ser alto, não basta detectar os positivos; é necessário discernir os negativos.

Atos governamentais são falsos positivos quando proposições supostamente favoráveis à maioria iludem. Como convicções, interesses, crenças e vontades se misturam nas formulações de programas públicos, a identificação de políticas falsas nem sempre é imediata. Enquanto as descaradamente espúrias, como a ameaça de trocar ministro da Saúde quando o número de casos e óbitos aumenta, são perceptíveis, as retóricas do tipo “não tem outra saída” passam como verídicas.

Esse é o caso das Parcerias Público-Privadas (PPPs), anunciadas como solução para reorganizar o SUS. Seus defensores consideram que a substituição de instituições públicas — morosas e vazadas por más práticas — por organizações privadas produtivas e incorruptíveis pouparia os orçamentos governamentais e modernizaria o SUS. PPP é uma denominação propositalmente vaga. Ficam na terra, os contratos do público com o privado, o repasse regular de recursos financeiros do primeiro para o segundo. Vão para o ar, os nunca atingidos choque de gestão, eficiência e probidade.

Como se trata do que já é (nunca faltou no Brasil transferência do fundo público da saúde para o setor privado), a parceria refere-se a um plus, uma ajeitadinha para incluir novos itens nos acordos vigentes. A verificação da veracidade dos efeitos benéficos das PPPs comprovaria uma proporção elevada de falsos positivos. A transferência de verbas e atribuições públicas para o setor privado, sob premissas equivocadas sobre a origem dos problemas de saúde, não reduz desigualdades, embora pareça promissora à expansão do empresariamento.

A Covid-19 revelou com nitidez que a privação e o racismo abreviam a vida. Portanto, o país precisa de uma outra PPP, a Pró-Pobres e Pretos, que compreenda quais são os riscos à saúde e expresse objetivamente a destinação dos recursos públicos para poupar vidas e assegurar longevidade. Instituições de saúde em que pobres e negros mal põem os pés, só entram como serviçais, não devem ser financiadas com orçamentos públicos diretos ou indiretos.

Atender com dignidade, realizar diagnósticos precoces e tratamentos adequados para os segmentos populacionais que moram em favelas e periferias — sem a segregação do hospital para rico ou do SUS — é parâmetro obrigatório para qualquer PPP civilizada. Em 2019, a presença de estudantes de Medicina pretos e pardos ou de famílias de baixa renda era muito maior nas faculdades públicas (36%) do que nas privadas (23%). As cotas sociais e raciais no ensino superior público, isoladamente, são insuficientes para alterar o padrão desigual no acesso à formação médica.

Muitos prefeitos eleitos incluíram PPPs em suas plataformas. O recrudescimento do número de casos e mortes pelo novo coronavírus tem sido encarado como janela de oportunidades. Empresários passaram a falar em “digitalização do SUS” e telemedicina, misturando cartão, prontuário, pacote de informações eletrônicas e consultas remotas. O combo de produtos promete tirar o SUS da indigência analógica. Mas a PPP verdadeira, duradoura e sustentável seria a vinculação do SUS a centros computacionais universitários, financiados por entes públicos e empresas privadas inovadoras.

Sem abordar a redução das disparidades sociais estruturais, as PPPs não se coadunam com o SUS. Trabalhar junto, com a participação ativa dos segmentos populacionais vulneráveis, é desejável, desde que a meta seja a prevenção de sofrimentos evitáveis. Muito difícil dar certo, mas conta a favor ser uma política autêntica. Prioridades imediatas para a saúde são um Natal sem fome e sem mais perdas de familiares e amigos. Uma PPP verdadeiro positivo tem como tarefas a ampliação do auxílio de renda, o apoio, sem vacilação, ao controle da transmissão da pandemia e a reorganização de serviços de saúde para salvar os vivos.


RPD || Ligia Bahia (UFRJ) e Mario Scheffer (USP): Como o SUS sairá da pandemia?

Promessas não cumpridas, omissões, evasivas e o reconhecimento da indisponibilidade de insumos estratégicos para o Sistema Único de Saúde têm marcado a gestão do Governo Federal no combate à pandemia

A pandemia do Covid-19 e seus trágicos desdobramentos sanitários, políticos e econômicos concederam ao Brasil lugar destacado entre os países com respostas tardias e insuficientes à prevenção de casos e óbitos. A demora e desproporção entre a quantidade de recursos para rastreamento e tratamento de pacientes mobilizados e a magnitude da epidemia passaram a ser um problema em si. Entre fevereiro e agosto de 2020, houve nítida mudança no conteúdo de pronunciamentos governamentais. No primeiro semestre, a preocupação com a “falta” de leitos, equipamentos e testes competiu com debates em torno do uso ou não da cloroquina.

Em seguida, o foco das atenções convergiu para o auxílio emergencial e para a abertura das atividades econômicas. Em maio de 2020, três meses após o Governo Federal ter declarado o estado de emergência em saúde pública no Brasil, em 4 de fevereiro, o SUS, os profissionais da saúde e a população diretamente afetada pela Covid-19 ainda conviviam, em muitas cidades, com grave insuficiência de leitos de internação, falta de médicos e de equipamentos de proteção individual para profissionais de saúde, assim como era precário o fornecimento de ventiladores e kits de testes diagnósticos.

O tom otimista e tranquilizador de autoridades governamentais sobre a “preparação do País” e a “capacidade do SUS” para o enfrentamento da pandemia foi pouco a pouco substituído por promessas não cumpridas, omissões, evasivas e o reconhecimento da indisponibilidade de insumos estratégicos. Por ocasião do registro oficial do primeiro caso positivo no país, em 26 de fevereiro, o então Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou que recursos novos estariam sendo investidos para a expansão de leitos, compra de equipamentos de proteção individual para profissionais de saúde e em laboratórios para a realização de testes.

O alegado investimento, como outros anúncios oficiais que se seguiram, teve pouca repercussão prática. Em maio, ainda estava explícita a carência extrema de testes e leitos para internação, além do colapso de unidades de terapias intensiva em capitais como Fortaleza, Manaus e Rio de Janeiro. Entre os meses de fevereiro e maio, embora menos eufóricos, discursos oficiais insistiam, no ápice da pandemia, em anunciar a expansão da rede hospitalar e a aquisição de insumos que deveriam ter sido providenciados muito antes da explosão da Covid-19 no País.

Em pleno agravamento da falta de vagas para internação de pacientes no SUS, transmitido diariamente pela mídia, ainda se ouvia que muitos leitos estariam disponíveis somente quando estivessem prontos novos hospitais, concluídas reformas e readequações na rede pública ou iniciadas negociações de compra de vagas do setor privado. Um dos principais parâmetros para a saída do isolamento social, o indicador de ocupação hospitalar, restava inviável, num cenário em que sequer os leitos prometidos e necessários eram ofertados. A tentativa tardia de responder, face à constatação da imensa subnotificação de casos, que em parte pode até hoje ser atribuída à ausência da testagem em larga escala, foi malograda. O então Ministro da Saúde, Nelson Teich, prometeu que o governo compraria 46 milhões de testes, quando sequer a divulgação de Mandetta, o ministro anterior, de distribuir 23,9 milhões de testes, havia sido concretizada. Similarmente, a divulgação oficial de que o Ministério da Saúde cadastraria cinco milhões de profissionais da saúde para reforçar o enfrentamento ao coronavírus fracassou.

Foram crescentes a falta de médicos, de especialistas em medicina intensiva e de pessoal na linha de frente assistencial, em condições de trabalho inadequadas e inseguras, com excesso de pacientes, sobrecarga de horas de trabalho, estresse emocional, infecção, bem como os óbitos de trabalhadores da saúde. Sem uma gestão coordenada de recursos humanos, viu-se a dificuldade de contratações temporárias e improvisadas, delegadas a organizações sociais privadas, fragmentadas em editais e chamadas pouco atrativas. Promessas de recursos financeiros com dois dígitos de bilhão, testes com dois dígitos de milhão, respiradores e leitos com dois e três dígitos de milhar, respectivamente, não se concretizaram, nem nas compras anunciadas, nem nos prazos previstos, nem nas datas de entrega, invariavelmente atrasadas, se e quando ocorreram. Expressões como “colapso do sistema de saúde” e “pontuação em UTI”, para avaliar quem vive e quem morre, chegaram a ser naturalizadas em determinado momento.

O fenômeno biológico do coronavírus e as dificuldades objetivas que o cercam, como a inexistência de terapias eficazes e de vacina, definitivamente, não são da mesma natureza da desorganização de um sistema de saúde e dos desmandos políticos que repercutiram decisivamente no aumento do número de mortes e, mais de seis meses após a entrada da Covid-19 no Brasil, são responsáveis por péssimos indicadores de controle da pandemia. Mesmo em meio às incertezas sobre a doença, diversos países resolveram as equações para o controle da disseminação e a redução da letalidade no âmbito do sistema de saúde, das instituições e dos serviços.

Os obstáculos objetivos para a contagem de todos os casos de Covid-19, assintomáticos e sintomáticos, comuns a tantos países, são bem distintos das barreiras que, no Brasil, impediram a contagem transparente de leitos de internação, o acompanhamento da execução orçamentária excepcional, da quantidade de testes ou do número respiradores colocados à disposição da população.

Imprecisões das informações sobre o modo de transmissão e disseminação da doença não são comparáveis à precariedade dos registros administrativos para o exercício do controle social e a produção de conhecimento científico sobre as respostas governamentais à epidemia. No Brasil, essa confusão, seja proposital ou não, impede até agora o discernimento dos rumos tomados pelo SUS e pelas políticas de saúde durante a pandemia.

Dos recursos previstos, de rotina do SUS ou excepcionalmente autorizados para a pandemia, o que de fato foi liberado e entregue, quando e para quem? A magnitude dos recursos que foram de fato operacionalizados é compatível com as necessidades de atendimento e as demandas acrescidas durante a pandemia?

A pergunta a ser respondida futuramente é se o SUS, que passou a ser reconhecido como um sistema de saúde adequado ao Brasil, sai maior, mais potente e com maior aceitação social após a pandemia do novo coronavírus?

*Lígia Bahia é médica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1980), mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (1990) e doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (1999). É professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

*Mario Scheffer é professor Doutor do Departamento de Medicina Preventiva (DMP) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), na área de Política, Planejamento e Gestão em Saúde.