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Sérgio C. Buarque: A milícia do presidente

O presidente Jair Bolsonaro parece inspirar-se no seu grande desafeto ideológico, o populista autoritário presidente Nicolás Maduro (que sucedeu o falecido coronel Hugo Chavez) na missão muito bem sucedida de destruição da Venezuela. Os dois decretos assinados por Bolsonaro, facilitando a posse de armas de fogo pela população, é um instrumento a mais de formação de grupos armados, que pode levar à escalada de violência e intimidação na política brasileira.

A simplificação do acesso a volumes mais amplos de armas, fora do controle das Forças Armadas, facilita o armamentismo dos grupos criminosos que atuam e controlam amplas áreas das cidades brasileiras, principalmente no Rio de Janeiro (narcotraficantes e milicianos), e permite a formação das milícias bolsonaristas com os fanáticos seguidores do presidente. Esta é a intenção de Bolsonaro. “Eu quero todo mundo armado!”, disse ele mais de uma vez. Quando diz isso, Bolsonaro sabe quem vai comprar armas e organizar pequenos arsenais: os caçadores e atiradores (autorizados a comprar até 60 armas sem necessidade de autorização do Exército), numa fachada para todo tipo de criminoso e fanatismo político.

O governo autoritário da Venezuela, segundo declaração recente de Maduro, já conta com “3,3 milhões de milicianos organizados, treinados, armados e dispostos a defender a união da Venezuela”. O dado é exagerado, segundo especialistas, mas esta Milicia Nacional Bolivariana supera em muito os 123 mil homens do contingente das Forças Armadas. Este é o povo armado dos sonhos de Bolsonaro, milicianos bolsonaristas, para copiar, no Brasil, o modelo bolivariano de intimidação e violência política contra os adversários, que mantém o governo no poder, apesar da devastadora crise econômica, social e política.

Mas o presidente brasileiro diz que pretende armar o povo brasileiro porque não quer uma ditadura. Logo ele, que não cansa de defender e louvar a ditadura militar brasileira, e que afirmou, lá atrás (1999), que o Brasil só iria mudar “quando nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil!”

Raul Jungmann tem razão quando adverte, em carta aberta aos ministros do STF-Supremo Tribunal Federal, que os decretos de Bolsonaro que facilitam o acesso a armas estimulam uma guerra civil no país. “Ao longo da história, diz ele, o armamento da população serviu a interesses de ditaduras, golpes de Estado, massacre e eliminação de raças e etnias, separatismos, genocídios e de ovo da serpente do fascismo italiano e do nazismo alemão”.

O povo armado nunca serviu à democracia. Muito pelo contrário, empurra a política para o terreno pantanoso da violência, substitui os argumentos e a negociação política pela disputa armada, quebra o monopólio da força pelo Estado, e permite a formação de milícias e exércitos partidarizados. Tem sido assim na Venezuela de Chavez e Maduro.  Pode vir a ser assim também no Brasil, se Bolsonaro continuar com seu projeto de armar o “seu” povo para o enfrentamento político que se avizinha com as eleições de 2022, lembrando que, seguindo o exemplo de Donald Trump, ele já antecipou que podem vir a ser fraudadas, se ele não for reeleito.

O mais absurdo e chocante desta iniciativa armamentista de Bolsonaro é o seu lançamento num momento em que morrem cerca de mil brasileiros por dia por Covid-19, em grande parte por conta de sua irresponsabilidade na condução (ou ausência de condução) da política sanitária do Brasil. Já são mais de 250 mil mortos, que se somam às 60 mil vítimas anuais de homicídios, quase sempre por arma de fogo. O presidente Jair Bolsonaro é o senhor das armas, e parece ter um desprezo especial pela vida dos brasileiros.

*Economista com mestrado em sociologia, professor da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, sócio da Multivisão-Planejamento Estratégico e Prospecção de Cenários e da Factta-Consultoria, Estratégia e Competitividade. É sócio fundador da Factta Consultoria. Fundador e membro do Conselho Editorial da Revista Será? É membro do Movimento Ética e Democracia.


Sérgio C. Buarque: Decrescimento? O que é isso?

Durante o lockdown da China, no início deste ano, fotografias da Nasa mostravam a purificação do ar nas grandes cidades chinesas poupadas da emissão de poluentes, evidenciando a relação direta entre o nível de atividade econômica e a degradação do meio ambiente. Apesar da bela e inspiradora foto, o mundo torcia pela recuperação da economia chinesa, pelos negócios que gera e pelos milhões de empregos que dependem do crescimento econômico da China. Dados os atuais níveis de produção e consumo, a estrutura produtiva e o padrão tecnológico dominante, o aumento do PIB provoca uma elevação proporcional da pressão sobre o meio ambiente. A desejada recuperação da economia chinesa vai continuar degradando a natureza e emitindo gases de efeito estufa, embora o governo chinês esteja fazendo um esforço sério de recuperação e moderação das pressões antrópicas no país.

Os padrões produtivos e tecnológicos não são constantes e estão mesmo atravessando, neste século, mudanças profundas que, no geral, tendem a reduzir o impacto ambiental, ou pelo menos, conter a marcha desesperada para o abismo. Ainda muito insuficiente, é verdade, mas está em curso uma transição energética para novas fontes renováveis, inclusive na China, emergindo novas alternativas de uma economia verde e atividades de baixo carbono, acelerando inovações tecnológicas que amortecem as pressões antrópicas, e aumentando a participação na estrutura produtiva do setor Serviços de baixo impacto ambiental. Tudo isso reflete o aumento da consciência ambiental no mundo e o debate técnico e político alimentado por diferentes proposições e negociações.

Desde a década de 90, quando as Nações Unidas lançaram a proposta de desenvolvimento sustentável e, mais recentemente, com as pesquisas e o debate em torno das mudanças climáticas, vem crescendo a preocupação mundial com a degradação do meio ambiente e, ao mesmo tempo, com a pobreza e a exclusão social no planeta[1]. O conceito de desenvolvimento sustentável parte da compreensão de que o modelo econômico atual está destruindo a natureza e de que são necessárias reorientações profundas na produção, no consumo, na tecnologia. A proposta se sustenta na correlação e busca do equilíbrio dos pilares equidade social, conservação ambiental e crescimento econômico, mesmo sabendo que existem tensões entre eles e que, por último, dependem de escolhas políticas.

Excetuando o troglodita que preside a maior economia do mundo, que tem uma das mais altas emissões de gases de efeito estufa, o mundo está tomando consciência da necessidade de reestruturação da economia e geração de inovações tecnológicas que permitam evitar uma catástrofe. O Acordo de Paris, com compromissos de quase todos os países do mundo com metas de redução das emissões, não é modesto, embora ainda apenas parcialmente efetivado. O cumprimento das metas de redução da emissão dos gases de efeito estufa deve levar mais à redefinição da estrutura produtiva e inovações tecnológicas, na direção de uma economia verde, que, propriamente, à redução do PIB dos países de mais alta renda. Na União Europeia, vanguarda mundial por uma economia limpa, mostra resultados excepcionais: entre 1990 e 2018, o PIB europeu cresceu 61%, enquanto as suas emissões de gases de efeito estufa diminuíram em 23%.

O problema é político porque, em última instância, as boas propostas, inclusive a ideia de desenvolvimento sustentável, dependem da sua cristalização em decisões que se incorporam nas ações de Estado. O mesmo cidadão que defende o meio ambiente não aceita mudar seu estilo de vida, diferentes grupos de interesse não aceitam mudar os padrões de produção e de consumo, impedindo decisões políticas transformadoras.

Recentemente, tem surgido na literatura um outro conceito – decrescimento – pretendendo superar a proposta de desenvolvimento sustentável, que destaca a impossibilidade de crescimento da economia diante dos limites da natureza. De acordo com Elimar Nascimento, decrescimento “consiste em nos libertarmos da ideologia do crescimento contínuo, que funda a irracionalidade da degradação ambiental promovida pelo modelo econômico vigente” [2]. Como está explícito no conceito (ou slogan?), trata-se de promover um decrescimento do PIB-Produto Interno Bruto mundial, já que o “modelo econômico vigente” é irracional e degrada o meio ambiente. A ideia de desenvolvimento sustentável do decrescimento, ao contrário, não rejeita, em princípio, o crescimento econômico, definindo, contudo, que este deve ser condicionado ao propósito maior de equidade social e conservação do meio ambiente. Neste sentido, aponta para uma mudança do “modelo vigente” e não para um decrescimento da economia que caberia no modelo que parece inabalável. O reducionismo do decrescimento parece dizer: “reduzam o crescimento que o planeta aguenta este modelo predatório”.

Rigorosamente, não existe um determinismo nem uma correlação rígida entre crescimento econômico e degradação ambiental. A segunda lei da termodinâmica que define o processo de entropia (dissipação de energia e desorganização da matéria), citada por Elimar, pode ser compensada em sistemas complexos e não lineares, como o planeta e a biosfera, pelo que Edgard Morin chamou de “tendência para a organização, para a complexidade crescente, isto é, para a neguentropia”[3]. Ou, como diz Capra, “o universo vivo evolui da desordem para a ordem, em direção a estados de complexidade crescentes”[4]. Claro que existem limites, mas nada que se possa considerar como um dado definitivo, atemporal e irredutível, como define a lei da termodinâmica.

Entendendo o planeta como um ser vivo e dinâmico, os “limites físicos” dependem de múltiplos fatores econômicos, sociais, tecnológicos e políticos. Os limites do crescimento analisados pelo Clube de Roma no final dos anos 60 (The Limits to growth) eram bem diferentes dos atuais limites físicos da natureza, mais amplos, em alguns aspectos, e até mais estreitos em outros, considerando inclusive o que já foi degradado. Nada disso significa que a natureza aguenta e se recupera de qualquer pressão antrópica. Significa que o planejamento do desenvolvimento sustentável tem que compreender o comportamento dinâmico da natureza e regular a economia, estimular a inovação e organizar a sociedade para a conservação do meio ambiente, sem a qual, a própria capacidade da economia entra em colapso.

A China tirou 800 milhões da pobreza por conta de um acelerado crescimento econômico às custas de forte degradação ambiental. O resultado social foi espetacular, mas o custo excessivamente elevado, comprometendo a qualidade de vida dos chineses e mesmo a capacidade de permanência da dinâmica econômica. A escolha política é questionável, mas não se pode ignorar que o resultado foi possível apenas por conta do crescimento da economia e, portanto, elevação da renda. Claro que nos países de alta renda não existe “necessidade” de crescimento da renda para assegurar qualidade de vida e mesmo equidade social. E, na verdade, a maioria desses países já tem taxas de crescimento muito baixas por razões econômicas e demográficas. Entretanto, para tirar dois bilhões de excluídos da pobreza no mundo com os atuais padrões de produção, matriz energética, tecnologia dominante e nível de consumo será previsível um dramático impacto de degradação da natureza. E como é eticamente inaceitável que o mundo continue convivendo com tamanha exclusão, é necessário perseguir um novo estilo de desenvolvimento que permita elevar a renda (distribuindo, evidentemente, nos países de baixa renda) sem degradar o meio ambiente e sem manter ou ampliar as desigualdades sociais. Para isso, é necessário um Estado com capacidade de regulação da economia e com volume de recursos suficientes para o provimento de serviços públicos de qualidade para a população. E como a questão é global – tanto o meio ambiente quanto a desigualdade de renda – é necessário intensificar as negociações entre as nações e fortalecer as instituições multilaterais que lidam com a questão do desenvolvimento sustentável.

O slogan de decrescimento (é assim que definem, segundo Elimar) não agrega nada ao conceito de desenvolvimento sustentável e ainda confunde a opinião pública, na medida em que tenta disputar os espaços de debate de ideias com visão sustentada pela redução da economia. Em um modelo de desenvolvimento com o Estado orientando a produção, estimulando a inovação e influenciando nos padrões de consumo é possível haver crescimento do PIB com equilíbrio social e sem degradação do meio ambiente. Vale lembrar, por outro lado, que um Estado com poder regulador e com capacidade de investimento no provimento de serviços públicos depende do desempenho da economia para a elevação da receita pública.

Quando propõe “planejar um decrescimento que nos conduza a outro estilo de vida”, o conceito de decrescimento parte do econômico e assume, de partida, a redução da produção econômica e, claro, da renda, para conduzir a outro estilo de vida. É reducionista e poderia levar ao contrário: já que reduzimos a pressão antrópica pela redução do PIB, é possível conservar o estilo de vida. O inverso é mais abrangente e transformador: definição de uma estratégia de construção de outro modelo de desenvolvimento que seja capaz de harmonizar equidade social (ideia que não aparece no conceito de decrescimento) e crescimento econômico dentro dos limites da conservação ambiental.

Finalmente, de acordo ainda com Elimar, os formuladores da ideia de decrescimento têm a “ousadia (…) de propor superar a economia de mercado e o capitalismo”. Superar a economia de mercado significa, em termos concretos, a estatização dos meios de produção, o planejamento centralizado e o controle do Estado sobre a rede de comercialização. As experiências “ousadas” de superação do mercado têm sido acompanhadas de dramáticas consequências econômicas, sociais e, particularmente, ambientais, como a degradação de enormes proporções do meio ambiente na União Soviética.

O mundo não precisa de novos conceitos, menos ainda desta ideia reducionista de decrescimento, que confunde o debate e a definição de políticas e acordos globais. O conceito de desenvolvimento ainda é o grande referencial para construção do futuro, e ganha amplitude e convencimento quando incorpora o compromisso com a sustentabilidade e articula os objetivos de equidade social, conservação ambiental e crescimento econômico.

Notas

[1] Mesmo antes, nos anos setenta do século passado, Ignacy Sachs defendia um novo modelo de desenvolvimento que chamou de ecodesenvolvimento, que consistia na mesma busca de uma economia contida pela capacidade de reprodução da natureza.

[2] A análise a seguir está baseada na interpretação do conceito de decrescimento apresentada por Elimar Nascimento no Ensaio “Algumas notas sobre a origem do Decrescimento” publicado na Revista Será? de 2 de outubro de 2020.

[3] Morin, Edgard. O paradigma perdido: a natureza humana, 3ª ed., Lisboa, Publicações Europa-América, s. d. (Biblioteca Universitária) – citado em Buarque, Sérgio C. Construindo o desenvolvimento local sustentável – metodologia de planejamento. 3ª Edição, Editora Garamond, Rio de Janeiro, 2006.

[4] Capra, F. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos”, São Paulo: Cultrix/Amana-key, 1996 – citado em Buarque, Sérgio C. Construindo o desenvolvimento local sustentável – metodologia de planejamento. 3ª Edição, Editora Garamond, Rio de Janeiro, 2006.

*Sérgio C. Buarque, economista com mestrado em sociologia, professor da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, sócio da Multivisão-Planejamento Estratégico e Prospecção de Cenários e da Factta-Consultoria, Estratégia e Competitividade. É sócio fundador da Factta Consultoria. Fundador e membro do Conselho Editorial da Revista Será? É membro do Movimento Ética e Democracia.