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Sérgio Abranches: 'Brumadinho, uma Guernica mineral'

Brumadinho é um espanto. Uma Guernica mineral. Um desalento. Porque não é um só. Antes veio Mariana. Matou um rio, 19 humanos, fraturou a cultura ribeirinha do povo krenak das margens do Rio Doce, destruiu o modo de vida dos pescadores. Soterrou patrimônio natural, cultural, modos de vida e de sobrevivência. Antes ainda que as feridas profundas de Mariana se fechassem e sem reparação à altura das perdas e danos, veio o desastre da Mina Córrego do Feijão. Que vergonha e que indignação!

Mariana e Brumadinho não estão sós. Nem são apenas quatro, como os cavaleiros do Apocalipse. São quatrocentas. Ou mais. Uma delas, dependurada sobre a joia artística que é Congonhas, em Minas Gerais, ameaça com 100 milhões de metros cúbicos de rejeitos, de lama fatal, um extraordinário patrimônio artístico-cultural e a vida inestimável de milhares de pessoas. Ali, a Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos coroa o mais espetacular complexo arquitetônico e estatuário do Brasil. Não é exagero. O conjunto paisagístico e artístico representado pelo santuário não tem paralelo no país.

Abaixo da basílica, sob o olhar dos 12 profetas esculpidos pelo gênio Aleijadinho, coreograficamente distribuídos pelo adro, derrama-se a via-sacra, também do artista, em capelas nas quais as cenas talhadas em madeira em tamanho natural encantam e enternecem. Além da beleza das esculturas, os profetas do adro da igreja e as cenas da Paixão de Cristo nas capelas revelam uma cenografia deliberada e expressiva. É o principal legado escultórico de Aleijadinho, tombado e abandonado. A filha de um maestro amigo meu, ao vê-las aos 8 anos de idade, exclamou: “Estão vivas, papai!”. E estão, mas por quanto tempo?
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Esse santuário artístico, que contou com os gênios de Aleijadinho e outros grandes artistas do Brasil colonial, como o insuperável Mestre Ataíde, Francisco de Lima Cerqueira e João Nepomuceno Correia e Castro, está emoldurado por um cenário natural espetacular e cercado por sobrados que não se fazem mais. Sobre esse precioso bem coletivo está uma barragem como essas que se romperam, porém ainda maior. A Casa de Pedra contém 100 milhões de metros cúbicos de rejeitos, de lama tóxica, prontos para soterrar o legado de Aleijadinho, eliminando-o do mundo e da memória. Em Mariana, foram 50 milhões; em Brumadinho, 12 milhões.

Brumadinho pode ter matado mais de duas centenas de seres humanos. Liquidou negócios e criações. Está matando o Rio Paraopeba. O Paraopeba é um rio sertanejo como eu e, enlameado, caminha para minhas paragens curvelanas. Pode enlamear parte do grande sertão e das veredas de Guimarães Rosa, tirando-lhes até o sentido metafísico. O Doce, rio serrano, tem uma de suas nascentes ao lado, Barbacena, cidade de meu pai, de meu irmão e de minha infância. Conheço as vítimas, cresci com elas. E como dói.

Em São Joaquim das Bicas, os pataxós da aldeia Hã-hã-hãe foram evacuados. Estão ameaçados por Brumadinho do mesmo destino dos krenak do Rio Doce. Hoje, nas margens do rio morto, os velhos krenak contam para os jovens sobre os animais e a vida ribeirinha perdidos na lama, para que mantenham suas referências, agora meras abstrações. O canal Futura tem uma série de documentários pungentes sobre o drama dos krenak do Doce morto.

Essas tragédias não foram incidentais. Elas tiveram causas e autores humanos. O autor principal chama-se Vale. Uma empresa que se apresenta como verde, mas esse verde é camuflagem de predador. Como disse Drummond, o vale é doce, a Vale, amarga. O autor coadjuvante chama-se Estado. Ambos, empresa e Estado, têm uma característica genética comum: suas ações dependem das escolhas de seus gestores, a diretoria, num caso, o governo, no outro. Escreveram essa tragédia a várias mãos, a empresa, suas subsidiárias, as consultoras, os governos estadual e federal, com más decisões, colocando a taxa de lucro acima do valor das vidas humanas e do patrimônio cultural, ambiental e paisagístico.

Há um outro autor político. O Congresso, que se rendeu ao lobby das mineradoras e seus dinheiros de campanha, afrouxou a fiscalização e engavetou as providências legais apresentadas após Mariana. O ex-deputado (deixou a Câmara demitido pelos eleitores) Leonardo Quintão (MDB-MG), relator do projeto que criava novas regras para a mineração, reescreveu-o à imagem e semelhança dos desejos do lobby mineral. Agora vai para o novo governo, manter-se ativo no Gabinete Civil. Brasil surreal, onde tudo muda para ficar na mesma. Exemplos de irresponsabilidade política e corporativa. Deputados deveriam estar a cuidar do bem público e não dos vícios privados. As mineradoras deveriam estar a corrigir seus vícios e buscando novos modos, para minimizar os riscos que impõem à sociedade, à qual nada retornam, se não magros royalties e buracos, quando não cadáveres e desolação.

Falou-se muito, e nem sempre com precisão, sobre risco. No primeiro dia do curso que costumava oferecer sobre risco político, explicava a meus alunos alguns conceitos básicos, igualdades e diferenças. Começava por dizer que a noção de risco é a mesma, na engenharia, no ambiente, na economia e na política. Os dados e os parâmetros é que se alteram. Usava o quadrinho abaixo para ilustrar essa igualdade e distinguir o que faz parte da matriz de riscos e o que não faz.

Risco
É simples. O conceito básico de risco – ele pode ser sofisticado e ficar mais complexo a partir daí – nasce da interseção entre a probabilidade de ocorrência de um evento e a severidade do dano que pode causar. O quadrante inferior esquerdo – baixa probabilidade e baixo dano – não requer muita atenção. O quadrante superior esquerdo – alta probabilidade e baixo dano – requer providências regulares. O quadrante superior direito – alta probabilidade e dano severo – não faz parte da matriz de risco. Primeiro, antes de uma situação chegar ali, uma empresa responsável já teria tomado providências preventivas, para evitar sua progressão até essa condição quase irremediável. Caso o tivesse feito, não estaria enfrentando um risco, que supõe incerteza, mas um quadro a exigir providências imediatas e radicais. O quadrante inferior direito é o que caracteriza o verdadeiro risco – baixa probabilidade e dano severo — que impõe vigilância permanente.Continua depois da publicidade

Se imaginamos que cada evento pode ser situado em pontos distintos dentro de cada quadrado, indicando variações na probabilidade de ocorrência e severidade do dano, teremos uma escala contínua que irá da probabilidade muito baixa até muito alta e dano de baixa severidade até dano de severidade máxima. As barragens de alteamento a montante, como as de Mariana e Brumadinho, jamais estariam na categoria de baixo risco. A probabilidade de rompimento vai aumentando a cada alçamento, que reduz a resistência estrutural original. Portando, nos dois casos, exigiam monitoramento 24/24, isto é, 24 horas por dia, de segunda a domingo, de 1º de janeiro a 31 de dezembro, com sensores e instrumentação adequados e em permanente manutenção, além de verificações de campo diárias.

O laudo no qual se ampara a Vale para se dar ao direito, que não tem, de dizer que foi pega de surpresa pelo rompimento de Brumadinho é um exemplo de como a atividade tem regulação inadequada. Uma barragem de rejeitos fluidos é dinâmica. O fato de estar estável em setembro de 2018, nada diz sobre sua estabilidade em janeiro de 2019. Mesmo que estivesse desativada – a empresa precisa provar que não aumentou o volume de rejeito desde de 2014 porque em Mariana houve informação inverídica sobre isso –, a chuva, a acomodação progressiva do rejeito ainda liquefeito e sua consolidação progressiva alteram os parâmetros determinantes da estabilidade. Só o monitoramento 24/24 e a inspeção diária podem determinar a estabilidade a cada momento. Barragens não rompem de supetão, avisam. Se não souberam identificar esses avisos, além de negligentes eram incompetentes.

Mais ainda, a trajetória de um possível rompimento deveria ser objeto de simulações, para impedir construções a montante, e, até mesmo, a implantação da barragem. Para toda a área de impacto definida pelos trajetos possíveis da lama, planos de contingência deveriam prever a evacuação, medidas de contenção e proteção. Há áreas em que a remoção é possível e outras, em que ela não é. São investimentos que as empresas evitam, para preservar sua margem de lucros e controlar custos. Como resultado, aumentam os custos públicos. A velha socialização das perdas e privatização dos lucros. Com o progresso rumo a novos materiais de baixo impacto ambiental e climático, o preço dos produtos que vão ficando obsoletos cai e as empresas resistem ainda mais a fazer investimentos de precaução. É ainda pior, porque tentam compensar a perda de valor do produto com a ampliação do volume de venda, aumentando a pressão sobre as barragens, reduzindo as medidas de cautela. Por isso os vícios privados jamais se tornam virtudes públicas. Nessas atividades de risco, não se pode abrir mão da regulação estatal nem terceirizar a palavra final. Por isso o sucateamento e a politização das agências reguladoras, na última década e meia, foram tão lesivos ao interesse público.

Não há outro caminho para a atividade mineral no Brasil se não a proibição do beneficiamento a úmido. Mesmo as barragens de alteamento a jusante, mais seguras, são muito danosas ao ambiente. Além do risco, nunca pequeno, o beneficiamento a úmido causa danos ambientais severos, mesmo em operação normal. Além da devastação que a atividade em si produz, como no Pico do Cauê, tão dolorosamente documentado por Carlos Drummond de Andrade, o consumo de água é absurdo. Só deveriam permanecer em atividade as minas que comportassem beneficiamento a seco.

Isso é o que faria uma sociedade madura, civilizada, que valoriza a vida humana acima de tudo e preza seu patrimônio cultural, artístico e natural. Uma sociedade que não confunde desenvolvimento a qualquer custo com progresso. Um povo que quer transitar para uma vida pessoal e coletiva de mais qualidade, que busca a felicidade, não apenas o prazer fugaz e a alegria passageira.

* Mineiro de Curvelo, o sociólogo e escritor Sérgio Abranches é especialista em ecopolítica


Bernardo Mello Franco: Apertem os cintos: Previsões para a "nova era" de Bolsonaro

Em novo livro, 22 intelectuais fazem previsões sobre o novo governo. ‘Passaremos por uma zona de forte turbulência política’, alerta o sociólogo Sérgio Abranches

O Brasil está condenado a reescrever uma página infeliz da nossa história? A pergunta ronda os 22 ensaios de “Democracia em risco?”, que chega às livrarias na semana que vem pela Companhia das Letras. Como indica o ponto de interrogação, a coletânea não oferece respostas definitivas. Sua proposta é ajudar a entender o que está em jogo na “nova era” de Jair Bolsonaro.

No texto de abertura, o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches sustenta que a eleição de 2018 foi disruptiva. Ele afirma que a vitória do capitão encerrou o ciclo que organizou a política brasileira com relativa estabilidade nos últimos 25 anos. As instituições, que sobreviveram a dois impeachments e múltiplas crises, agora terão que enfrentar uma prova de resistência “mais significativa e direta”. “Apertem os cintos, pois passaremos por uma zona de forte turbulência política”, avisa.

O historiador Boris Fausto diz que é cedo para desenhar com clareza os rumos que o governo vai tomar. “Mas no âmbito educacional e da cultura, assim como no trato de determinadas minorias, as tendências não deixam dúvidas. Todas elas constituem um retrocesso”.

Ele prevê o acirramento da violência no campo, a reboque do discurso agressivo do presidente. “As porteiras estão abertas para as mortes de lideranças, para a invasão de terras indígenas pelas milícias armadas, para o desmatamento sem inibições”, escreve. Apesar dos temores, Fausto diz contar com a vigilância da imprensa, do Judiciário e da sociedade civil: “Ao menos por ora, não há razões para ceder ao catastrofismo”.

O sociólogo Celso Rocha de Barros parece menos confiante. “As bases do nosso progresso até agora — a democracia, a imprensa livre, a autonomia das instituições e a competição entre os partidos — podem desabar a qualquer momento”, afirma. Ele diz que a hora é de “rebaixar expectativas”: “O objetivo, nos próximos quatro anos, é evitar retrocessos”.

A historiadora Angela de Castro Gomes vê a ascensão de Bolsonaro como “uma ameaça efetiva a nosso regime democrático, que poderá ser corroído por dentro”. O jurista Conrado Hübner Mendes alerta para as afinidades do presidente com líderes da extrema direita do Leste Europeu. “O Brasil está batendo à porta da liga dos governos autoritários no aniversário de trinta anos da Constituição. Esse crepúsculo não é o fim, mas sua antessala”, escreve.

A historiadora Heloisa Starling costuma brincar que sua classe só é boa para prever o passado. Agora ela admite um sentimento de “perplexidade” com o presente. “Não sabemos ainda se a erosão da democracia no Brasil é um processo inevitável ou mesmo irreversível”, afirma. “Em 1964, a ruptura política e institucional se consumou; ocorreu um golpe de Estado e a deposição do presidente constitucional. Em 2018, o cenário é instável, a democracia brasileira saiu dos trilhos, mas o futuro está em aberto”, diferencia.

A professora observa que o presidente “é exatamente o que parece, e ainda podemos nos perguntar se as aparências enganam”. Mais adiante, ela pede cautela a quem considera que o país está mergulhando num novo ciclo autoritário: “A forma do que virá está em aberto — o tempo não é retilíneo, nele não existe lugar para a repetição e não há jeito de se governar a história”.


Sérgio Abranches: O desafio político do novo governo

Pistas dadas por Bolsonaro indicam agenda de reformas que exigirá várias emendas à Constituição

O novo governo começa embalado em altas expectativas e muita controvérsia. Sua eleição encerrou um ciclo do presidencialismo de coalizão, mas anulou o modelo político. Se o pleito presidencial implodiu o duopólio PT-PSDB, as eleições proporcionais resultaram em um multipartidarismo mais fragmentado, com bancadas partidárias significativamente menores. A formação de maiorias ficou mais difícil. Requer mais partidos, ao custo de menos afinidades político-programáticas. A pauta de demandas e desejos que elegeu Jair Bolsonaro tem um núcleo muito conservador, mas a maioria que o levou à vitória é difusa e diversificada.

O presidente eleito precisará de uma agenda que, sem desatender ao núcleo conservador, atenda a um espectro mais amplo de anseios, sob o risco de frustrar a larga faixa do eleitorado que votou mais contra o situacionismo. Ao mesmo tempo, terá que enfrentar os desafios que estão postos no campo fiscal e econômico.

O novo governo tem a seu favor um clima de otimismo como há muito não se registra no país. A esperança da opinião pública é um fator que impulsiona adesões no Congresso. Mas, embora um ingrediente necessário ao sucesso legislativo da agenda presidencial, não é suficiente.

Principalmente para um conjunto tão diferenciado de questões, que vão da economia — sobre a qual há relativo consenso no geral, todavia muita divergência no particular — até questões de direitos e costumes, em relação às quais não há concordância, nem no todo, nem nas partes.

O momento de maior probabilidade de sucesso corresponde aos primeiros quatro meses do primeiro ano do primeiro mandato. Em todas as presidências, desde 1990, com Collor, até Dilma, foi este o momento de maior sucesso parlamentar relativo, com o menor custo político e fiscal.

Pelo que informou o chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, as prioridades e a agenda legislativa do novo governo serão apresentadas em reunião ministerial, no próximo dia 14. Prioridade clara e uma agenda focada também ajudam a conquistar maiorias.

Mas, no Congresso mais fragmentado da História, a formação de maiorias constitucionais exigirá coalizões com grande número de partidos, o que reduz a coerência interna e aumenta a dispersão de objetivos políticos e programáticos. A maior vantagem que terá no Legislativo será a afinidade do presidente eleito com o parlamentar mediano.

Mas ele se recusa a negociar uma coalizão multipartidária com as lideranças das legendas. Isso dificulta muito a agregação de parlamentares em número suficiente para aprovar uma agenda tão ambiciosa quanto aparenta ter o novo governo.

As pistas até agora dadas por Bolsonaro e seus principais auxiliares indicam uma agenda de mudanças e reformas que exigirá várias emendas à Constituição. Quanto mais PECs o presidente incluir em sua proposta parlamentar, maior a coesão multipartidária que precisará alinhavar para ter sucesso.

Fernando Henrique Cardoso tinha uma coalizão compacta, majoritária. Conseguiu aprovar um número significativo de emendas constitucionais e reescrever o capítulo econômico da Constituição. O forte impulso do Plano Real fez a diferença. Nenhum outro presidente conseguiu aprovar tantas PECs em um só ano.

Com a fragmentação e a resistência do presidente em negociar com os partidos, o mais provável é que não caibam muitas PECs na agenda de Bolsonaro. O sucesso objetivo de sua presidência depende da dimensão econômica de sua agenda e seus efeitos sociais.

O sucesso subjetivo, junto a seu eleitorado, depende das propostas sobre costumes, muito conservadoras e controversas. Se este quadro se confirmar, ele terá que encontrar um caminho de equilíbrio entre as reformas econômicas e sua pauta conservadora e garantir ganhos sociais. Um desafio e tanto.

*Sérgio Abranches é cientista político


Sérgio Abranches: Uma coalizão para chamar de sua

Para conseguir governar, Bolsonaro terá que negociar com partidos, não apenas com bancadas temáticas

Para ter apoio duradouro e governar, Bolsonaro precisará formar maioria multipartidária. O presidente eleito, Jair Bolsonaro, prometeu não compor o Ministério por acerto com lideranças dos partidos. Terá um Ministério híbrido, com técnicos, militares e indicados por bancadas temáticas. É o primeiro governo assumidamente de direita. Tem uma ideologia bem definida, com uma proposta econômica liberal ortodoxa e uma pauta de valores conservadora e religiosa. A indicação de ministros setoriais pelas bancadas temáticas, como Agricultura e Saúde, ou o poder de veto da evangélica na Educação revelam a disposição de governar com as agendas dessas frentes parlamentares.

Significa que Bolsonaro não terá uma coalizão? Não. Apenas que a coalizão não será formada com base na troca de apoio por ministérios. É uma novidade a ser testada. Só a prática dirá se terá sucesso. A literatura acadêmica diz que, sem a representação da coalizão no gabinete, há risco para a governabilidade. O partido de Bolsonaro tem 10% dos votos na Câmara e 5% no Senado. Para governar, precisará formar maioria multipartidária. Quer usar meios novos para organizá-la. Mas, terá que negociar com partidos no Congresso. As bancadas temáticas não dão liga para coalizões duráveis. Apenas alianças tópicas. Unem-se no específico e se dividem no todo. Pode-se chamar como quiser, base de apoio, maioria, aliança. Será uma coalizão. Um termo neutro a significar apenas um acordo multipartidário para apoiar o governo. A diferença é que há meios espúrios e meios limpos para negociar coalizões. A maioria das democracias multipartidárias do mundo tem governos de coalizão negociados por meios lícitos.

O ciclo político-partidário que organizou governo e oposição nos últimos 24 anos esgotou-se. A fragmentação das bancadas dificulta a coalizão. Para ter maioria simples, 267 votos, Bolsonaro, no melhor cenário, precisaria dos oito maiores partidos da centro-direita. Para emendas constitucionais, a maioria é de 308. Demandaria incluir os onze maiores partidos. Nos dois casos, ou garante 100% dos votos de todos ou terá que incluir mais legendas. Será um teste de novos formatos para o presidencialismo de coalizão, em um contexto difícil para compor e coordenar coalizões.

*Cientista político, autor do livro “Presidencialismo de coalizão”


Eleição de Bolsonaro deve gerar “novo governo de transição”, diz Sérgio Abranches

Sociólogo afirma que eleição de ex-capitão do Exército encerra polarização entre PT e PSDB

Por Cleomar Almeida

Em entrevista à edição de novembro da revista Política Democrática online, o sociólogo mineiro Sérgio Abranches diz que um “novo governo de transição” deve nascer no país com a eleição do ex-capitão do Exército e deputado federal Jair Bolsonaro (PSL) para a Presidência da República. Autor dos livros “A Era do Imprevisto” e “Presidencialismo de Coalizão” (ambos da editora Companhia das Letras”, ele traça as características do próximo presidente que decidirá os rumos do país de janeiro próximo até 2022.

“Continuará sendo presidencialista, multipartidário e de coalizão, mas com diferenças. Bolsonaro, por exemplo, já está mudando, ele está nomeando ministérios, sem distribuir os partidos, sem ter indicações partidárias”, afirma. “Será uma transição, de cujo êxito dependerá o sucesso e o insucesso do governo Bolsonaro”, complementa ele. A entrevista é o destaque da nova edição da revista produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Partido Popular Socialista (PPS).

Acesse aqui a edição de novembro de Política Democrática online

Na avaliação do sociólogo, a eleição do ex-capitão encerra a disputa entre PT e PSDB. “Nem a esquerda atual nem a direita entenderam o século vinte um, ainda. O Brasil está tendo uma disputa, um enfrentamento na política entre forças que continuam no século 20, não entraram no século 21”, diz ele, na entrevista.

De acordo com o autor, alguns pressupostos norteiam o século 21. “Tem-se de entender o imperativo da sustentabilidade, o imperativo climático que é impositivo e causa prejuízos profundos que começam pelos setores mais pobres, mas os ricos também perdem”, diz, para continuar: “O Texas enfrentou disputa acirrada por causa da política climática de Trump. A grande parte da produção texana foi dramaticamente afetada por intempéries”.

O Texas, conforme observa Sérgio Abranches, é o maior produtor de petróleo e de energia eólica dos Estados Unidos. Segundo ele, a liderança de direita entendeu que a questão climática é impositiva, “tanto quanto a transição energética”, conforme ressalta. “Eles sabem de tudo. Outro ponto é que, em economias globalizadas com a hegemonia do capital financeiro, urge respeitar os limites fiscais”, pondera.

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IstoÉ: A democracia vai passar por um teste inédito, diz Sérgio Abranches

Por Vicente Vilardaga, da IstoÉ

As eleições da semana passada definiram uma nova composição para o poder Legislativo, que nada tem a ver com a que vigorou nos últimos 24 anos da República, dominada pela tríade PSDB, PT e PMDB. Ocorre agora uma fragmentação inédita, uma ascensão do baixo clero e uma mudança de agenda e de rumos, com 30 partidos ocupando pelo menos uma vaga na Câmara e nove deles tendo entre 28 e 37 representantes. Dois deles têm mais de 50 deputados, o PT (56) e o PSL (52), partido de Jair Bolsonaro. O desafio para o novo presidente será compor uma maioria robusta que lhe garanta a sustentação no poder. Em entrevista para a ISTOÉ, o cientista político Sérgio Abranches, 69 anos, que acaba de lançar o livro “Presidencialismo de Coalizão — raízes e evolução do modelo político brasileiro” (Companhia das Letras), explica como isso poderá ser feito. Para Abranches, “presidencialismo de coalizão” é o tipo de regime em que há uma diluição do poder parlamentar em vários partidos. “O PSL saiu do nada para formar a segunda maior bancada e com isso a lógica mudou porque não há mais um partido estruturador”, afirma.

O que caracteriza o presidencialismo de coalizão?
É o modelo político brasileiro desde 1946. A primeira versão dele entrou em colapso em 1964, com o golpe militar. Foi retomado em 1988, com a promulgação da nova Constituição democrática. Caracteriza-se pelo fato de combinar uma série de traços, de elementos estruturais ou institucionais que o tornam muito diferente do modelo presidencialista norte-americano. A principal diferença é que lá o presidente pode governar em minoria. É frequente na história política dos Estados Unidos o que eles chamam de governo dividido — o Congresso com a maioria de um partido e o Executivo com um presidente de outro partido. Aqui no Brasil tem se mostrado impossível governar em minoria.

Esse modelo ainda funciona?
Depende do ângulo que a gente olha. O fato de que o presidente não consegue governar sem maioria e de não conseguir fazer maioria com seu próprio partido (o partido do presidente nunca consegue mais de 20% das cadeiras), torna o modelo vulnerável e sujeito a crises. Toda vez que a coalizão se desfaz há uma crise política. Mas se a gente considerar o fato de que ele foi pensado para resistir a traumas que levassem a rupturas e à instabilidade democrática, certamente funcionou muito bem. Os constituintes conseguiram colocar no modelo uma série de elementos de defesa da democracia que fizeram com que fosse muito mais resiliente do que o modelo anterior.

O eleitor sente-se representado pelos nossos políticos?
Em nenhum lugar do mundo a população está satisfeita com a maneira pela qual vem sendo representada pelo sistema político. O problema local é mais grave por algumas razões. A primeira delas é que a crise de representatividade se associa a uma forte crise econômica e social, a mais grave da nossa história republicana. A segunda é que a gente já vinha numa tendência de esgotamento do sistema partidário que dominou os últimos trinta anos da República. As lideranças não se renovaram e os partidos envelheceram, se tornaram mais oligárquicos e controlados por um pequeno grupo de personalidades, quando não por uma personalidade só, como o PT.

De que forma isso explica a migração para a direita no espectro político?
Isso está muito embutido nessa tendência de realinhamento partidário. O que essa eleição produziu foi justamente isso, uma onda muito forte para a direita, liderada por um político que tem uma mentalidade claramente autoritária. O processo de realinhamento foi acelerado e atingiu gravemente os partidos que dominaram o jogo político a partir de 1994, principalmente o PT e o PSDB.

O PSDB parece ser o maior derrotado nesse processo.
É o maior perdedor. Sua bancada em 2014 tinha 54 parlamentares e agora tem 29. Foi derrotado em estados importantes e perdeu o papel estruturador na disputa presidencial. Sofreu uma derrota fragorosa exatamente no eixo da disputa que dominou por duas décadas. E não vai retomar sua posição porque não tem condições de liderança. O partido se deteriorou de uma forma avassaladora.

Qual o saldo das urnas para o PT?
O PT também foi fortemente derrotado. Ficou confinado no Nordeste, onde mantém alguma força, e viu a sua bancada desidratar. Embora seja a segunda maior bancada do Congresso, perdeu treze deputados — tinha 69 cadeiras e passou para 56. E perdeu também substância no Senado.

O senhor acredita que o MDB terá força para se rearticular nessa nova composição?
O MDB nunca disputou a Presidência para valer. Disputou a presidência três vezes, com Ulysses, Quércia e agora com Meirelles, e foi um fracasso retumbante. Nunca teve essa vocação de galvanizar o País numa disputa presidencial. Dedicou-se a formar bancadas numerosas e ser o pivô de qualquer coalizão, em qualquer governo. Agora, caiu de 66 cadeiras para 34 e é um parceiro descartável em todos os cenários.

Qual vai a ser a configuração do Congresso?
É uma configuração com bancadas médias, dez partidos terão bancadas com cerca de 30 parlamentares e duas com mais de 50 parlamentares, o PT e o PSL. Mudou muito a configuração. O PSL saiu do nada para formar a segunda maior bancada e com isso todo processo de montagem de coalizão mudou, a lógica mudou porque não tem mais um partido pivô, se perdeu o partido estruturador.

A onda anti-petista é determinante nessa eleição?
É importante, mas o fator determinante é a guinada do eleitor para a direita e para a extrema direita. O discurso que pegou foi anti-PT e a favor de uma série de valores morais conservadores. Surgiu uma pauta muito autoritária.

E de onde veio essa pauta moral conservadora?
O Brasil sempre teve uma parcela da sua elite com uma mentalidade autoritária e muito conservadora. Sempre foi assim. E com o avanço das igrejas evangélicas não tradicionais, essa visão ultramoralista, com interpretações unilaterais e estreitas da realidade, cresceu na população em geral, sobretudo entre os mais pobres. Por outro lado, o próprio regime de liberdade produziu a emergência de setores mais avançados, mais liberais e com padrões de comportamento muito diferentes da média da família tradicional brasileira. Esses setores progressistas exacerbam os sentimentos dos mais conservadores.

A votação de Bolsonaro é uma vitória personalista sem qualquer sustentação partidária importante?
Acho que sim, a campanha dele é uma campanha praticamente familiar, dois ou três generais, ele, o presidente do partido e os filhos. Ele e dois filhos tiveram um sucesso eleitoral espantoso. A partir de uma base sem estrutura, conseguiram produzir lideranças no Legislativo e dar alguma vertebração a um movimento muito personalista.

A classe média se alinhou com Bolsonaro?
Houve uma saída da classe média da base de Lula para a direita. Essa mesma classe média que apoiou o Lula e produziu vitórias espantosas ao longo das últimas eleições começou a se dividir na eleição da Dilma e agora migrou definitivamente para a direita. Ela foi frustrada pelo colapso econômico produzido pela Dilma.

Caso se eleja. Bolsonaro vai governar com maioria?
Ele está dando sinais, sobretudo através do deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), de que negocia por dentro da estrutura partidária com várias lideranças. Bolsonaro conhece bem o baixo clero e tem a vantagem de que parte da renovação foi por conta do PSL. Acho que vai tentar fazer uma coalizão, que vai ser pouco vertebrada, heterogênea e com a adesão de muitos oportunistas, como aconteceu com o Collor. No livro que acabei de publicar analisei os presidentes de Collor para cá e todos tiveram capacidade de aprovar sua agenda prioritária. Nos primeiros seis meses de governo nenhum deles sofreu qualquer contestação significativa do Congresso.

Como deverá ser a relação de Bolsonaro com a mídia?
Já é uma relação estressada, como, de resto, foi também com o PT. O Bolsonaro tem mostrado uma característica que se vê também em Donald Trump de preferir falar com uma emissora em particular e de usar as redes sociais para se comunicar diretamente com o público. Até agora ele fez isso e a maneira que ele escolheu para agradecer os votos foi um “live” nas mídias sociais. Sem imprensa, sem nada. Ele tem uma relação antagônica com a mídia.

O que representa a entrada de mais militares e policiais na esfera política?
Isso já ocorria nos Estados. A diferença agora é a presença de vários generais da reserva na campanha política e o aumento, nos últimos dois anos, dos pronunciamentos e das manifestações políticas dos militares, inclusive da ativa. É um fator político novo que devemos considerar com cuidado.

Pode-se dizer que a democracia está ameaçada?
A democracia vai passar por um teste inédito, pelo qual não passou até agora. Essa terceira república começou sofrendo um trauma muito forte, que foi a decepção quase instantânea com o Collor, que perdeu o apoio do eleitorado, da sociedade, e sofreu um impeachment. Mas ela conseguiu se recompor a partir do governo Itamar Franco. Com a estabilização da economia e o sucesso macroeconômico foi criado um plano de estabilidade e de apoio às instituições democráticas que durou 30 anos. Agora nós estamos diante de uma sucessão de traumas e a democracia vai passar por um teste sem precedentes.

As minorias estão ameaçadas?
Um governo com essas atitudes, com essa mentalidade autoritária, e com esse discurso tão extremado, como o do Bolsonaro, cria um risco social. O governo sofrerá as limitações institucionais típicas do nosso regime constitucional e provavelmente as obedecerá. O problema é o empoderamento das pessoas nas ruas: o policial que pode sacar a arma com facilidade, já que se sente autorizado, ou o rapaz homofóbico que se sente autorizado a atacar um homossexual. Há uma responsabilidade do Bolsonaro, se eleito, de segurar os seus radicais.


Sérgio Abranches: Momento de risco

Polarização social pode gerar desordem e violência. Só os dois candidatos a presidente têm poder para conter seus seguidores

O Brasil vive um momento político sem precedentes e de muito risco. O eixo que organizou a vida político-partidária no últimos 24 anos, desde a eleição de FHC, em 1994, rompeu-se. O presidencialismo de coalizão, neste período, foi marcado pela disputa presidencial polarizada entre PSDB e PT. Ela organizava e articulava governo e oposição. Este duopólio partidário nunca foi ameaçado nas últimas seis eleições. Sem poder competir pela Presidência, os outros partidos miravam a coalizão. Buscavam fazer a maior bancada possível para compartilhar o poder pela via do apoio parlamentar ao presidente eleito. Nenhum presidente conseguiu eleger a maioria no Congresso com seu partido.

Dificilmente algum presidente conseguirá. Ao mirarem a coalizão, estes partidos parlamentares, principalmente o PMDB/MDB, passaram a organizar o jogo parlamentar orientando-o para a formação de coalizões majoritárias, independentemente do partido vencedor da disputa presidencial. Este sistema começou a naufragar com a revelação de um processo de corrupção político-empresarial abrangente, que atingiu as principais lideranças, tanto dos partidos presidenciais, PT e PSDB, quanto da maioria dos partidos parlamentares. Processo que o PSDB e o PT negaram ou não quiseram ver.

Diante da incapacidade dos dois partidos organizadores da vida política do país de dar respostas à indignação da sociedade com a corrupção e a perda progressiva, porém rápida, da qualidade das políticas públicas, prenunciava-se um realinhamento partidário, que começou nesta eleição presidencial. O PSDB, cujas bases sempre foram menos sólidas que as do PT, elegeu uma bancada anêmica para o Congresso. O PT perdeu 12 deputados. Deixou de eleger senadores importantes e ficou confinado ao Nordeste. Manteve-se como a primeira bancada na Câmara, e isso lhe permitirá estruturar a oposição, se perder o segundo turno, ou liderar uma coalizão, se ganhar, mas como muito menos força.

O vazio deixado pelo silêncio eloquente dos dois partidos em relação às ansiedades centrais da população foi ocupado pela voz mais estridente, de Jair Bolsonaro. Desalojou o PSDB do eixo presidencial e, ajudado por uma forte onda antipetista, quase se elege no primeiro turno. O pior desempenho petista nas presidenciais, apenas superado pelas candidaturas de Lula, no início de sua trajetória, em 1989 e 1994.

O realinhamento de 2018 desorganizou o sistema político-partidário que deu sustentação ao presidencialismo de coalizão por quase 25 anos. Mas nada colocou em seu lugar que pudesse reorganizá-lo melhor e de forma democrática. Ao contrário, provocou uma polarização extremada na sociedade e no sistema partidário sem precedentes nesses 30 anos de Terceira República. Acentuou a distância entre a maioria eleitoral do presidente e a nova maioria eleita pelo Congresso, qualquer que seja o eleito. A próxima Câmara terá 11partidos com bancadas de 28 a 56 deputados. Outros 19 partidos terão entre 1 e 13 deputados. As coalizões serão mais heterogêneas e mais distantes da visão do presidente.

A polarização social é perigosa. Alimenta impulsos extremos. Pode gerar desordem e violência. Só os dois candidatos a presidente têm poder para conter seus seguidores. O discurso de Bolsonaro até agora tem abrigado visões extremadas. Mesmo após o excepcional desempenho no primeiro turno. Caberá a ele desmobilizar esses sentimentos polares, acomodando-os nos limites institucionais da democracia pluralista.

Ele próprio precisará, se vitorioso, indicar a aceitação dos limites institucionais que a democracia impõe aos poderes do presidente da República. Não se pode desprezar os sinais de risco, nem desconsiderar o que as urnas nos estão dizendo. É uma situação delicada. A democracia brasileira passará por um teste inédito. Ela mostrou resistência a testes, choques e traumas até agora. Creio que os constituintes desenharam um sistema institucional robusto para evitar rupturas democráticas.


O globo: ‘O próximo governo não terá coalizão programática’, diz Sérgio Abranches

Autor, que lança “Presidencialismo de Coalizão”, no dia 24, fala sobre as raízes do sistema político e o atual momento da governabilidade no Brasil

Roberto Maltchik, de O Globo

Com 45 anos de análises políticas, Sérgio Abranches detalha os desafios do sistema político e aponta os riscos de o próximo presidente, seja ele quem for, reproduzir o atual padrão de relacionamento entre o governo e o Congresso .“Do ponto de vista da lógica, não há nada que tenha mudado essencialmente na política brasileira que faça com que seja diferente".

Quais são, hoje, os problemas do presidencialismo de coalizão no Brasil?
O problema não é ser presidencialista, nem de coalizão. O problema do presidencialismo de coalizão é que ele tem, progressiva e rapidamente, caminhado para um padrão absolutamente clientelista, baseado no toma lá da cá.

Por que se agrava a cada dia?
Por várias razões, mas uma delas é o excesso de fragmentação de partidos nas coalizações. Coalizões muito grandes são muito mais difíceis de lidar. E também o fato de que não há afinidade programática nenhuma entre o presidente e os partidos de sua coalizão. E isso vai acontecer, de novo, no ano que vem. Não haverá coalizão programática.

Não tem como ser diferente?
Do ponto de vista da lógica, não há nada que tenha mudado essencialmente na política brasileira que faça com que seja diferente. A centralização de recursos na União continua enorme; a discricionariedade do presidente na gestão do gasto público continua a mesma; e você tem um problema adicional: essa eleição de 2018 pode chegar ao fim do segundo turno sem a coalizão montada. Isso vai ocorrer entre novembro e fevereiro. Nesses quatro meses, o que sobra para negociar com os partidos? Ministérios e posição. Na verdade, o novo presidente não discutiu, em momento algum, com nenhum parceiro, o seu programa de governo.

No livro, o senhor menciona os “partidos-pivôs” como fundamentais nas coalizões. Que tipo de partido é esse?
É o partido que representa o parlamentar básico, o parlamentar que domina o cenário na Câmara dos Deputados. Este partido já representa, nos estados, a base eleitoral. Quando chega ao Congresso, faz uma bancada grande. Nesta eleição, isso vai mexer um pouco. Mas, até 2014, o MDB sempre teve as maiores bancadas. Esse é o determinante do veto ou do voto. Sem este partido, o presidente para de ter comando sobre a agenda legislativa. É quando o Legislativo faz a pauta-bomba, a legislação que não é do interesse do presidente. Conflitante com a agenda presidencial. Foi o que aconteceu com Collor e Dilma.

Por que a sustentabilidade é tão frágil no Brasil?
Por causa da baixa taxa de compatibilidade entre o presidente da República e sua coalizão. Compatibilidade ideológica. No caso da Segunda República, ela era menos casuísta, menos oportunista, do que a Terceira República foi se tornando. Na Terceira República, havia uma aliança natural que poderia ter sido formada entre PT e PSDB. Ela se inviabilizou, abrindo espaço para o surgimento dos partidos de orientação parlamentar, que são pivô de qualquer coalizão.

E parecem cada vez menos compatíveis entre si...
Os problemas de gestão da coalizão se tornaram muito mais complicados nos governos do PT. E, neste contexto, você passa a ter os impulsos, que nascem das divergências internas da coalizão, para a corrupção. No caso do governo Fernando Henrique, ele ficou refém do Congresso ao propor a reeleição. O mercado político mostrou: “você será o primeiro beneficiado, você paga tudo”.

Como conciliar o interesse dos aliados, vocacionados a atender sua base eleitoral, e o plano do presidente, que deve atender à Federação, sem o modelo clientelista?
A gente tem uma diferenciação dos interesses do presidente e do Legislativo. Ela decorre do modelo de eleição federativa. O presidente é eleito pelo Brasil, ele precisa de maioria de votos em cerca de 15 estados para vencer uma eleição. Os deputados são eleitos em seus redutos. Um conjunto delimitado de municípios. Com o excesso de concentração de poderes da União, essa diferença de interesses se agrava e se radicaliza profundamente. Esse é o caminho do clientelismo e da corrupção porque o presidente administra todo o orçamento da República na boca do caixa. Eu não creio que a gente vá resolver esse problema sem enfrentar o problema da descentralização federativa. Não resolve se a gente não devolver parte da capacidade tributária e de gastos aos estados e municípios, fazendo com que essas demandas locais, mais associadas às bases políticas dos parlamentares, se resolvam no âmbito local.


O Globo: Brasil vive em ‘estado de indignação permanente’, diz Sérgio Abranches

Especialista diz que descontentamento generalizado leva à solidariedade popular com movimento dos caminhoneiros

Por Renan Setti, de O Globo

Para o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches, o Brasil vive em “estado permanente e latente de indignação”, e é isso que explica a sustentação da greve dos caminhoneiros. Segundo o autor de “A Era do Imprevisto”, a organização horizontal dos manifestantes, que ocorre via WhatsApp, é sintoma da falta de representatividade do sistema político e dificulta as negociações com o governo.

O que explica essa greve?

De um lado, há uma motivação econômica. Saímos de um período de congelamento de preços para um de aumento diário, influenciado pelo câmbio e pela geopolítica. Isso elevou o custo do frete em um momento de crise. Além disso, o sistema de transportes brasileiro é de extrema exploração, com uma parcela grande de autônomos expostos a um leilão brutal e tendo que aceitar um frete quase de subsistência. Quando ele paga um pedágio alto, mesmo andando vazio, e vê o diesel disparar, existe uma indignação legítima. Do outro lado, há um sentimento difuso de inquietação e descontentamento.

Mas esse movimento também não atende a interesses corporativos?

Das concessões do governo, o frete mínimo é a única que atende aos autônomos. O resto é resultado do lobby das empresas. A empresa brasileira é viciada em subsídio. Eu não pesquisei o suficiente para saber em qual desses núcleos o movimento nasceu, mas sei o suficiente para saber que, sozinhos, os autônomos não conseguiriam fazê-lo durar tanto tempo.

Por que o governo encontra tanta dificuldade para desmobilizar a greve, mesmo com tantas concessões?

As lideranças verticais estão perdendo a capacidade de controlar movimentos que nascem de forma mais difusa e espontânea. Uma parcela grande deles não é representada por associações, criadas para representar profissionais formais. Agora, o “biscateiro” da carga, que estava desempregado e viu nas facilidade dadas pela Dilma a possibilidade de trabalhar, não é alcançado pelas lideranças. É muito mais fácil para ele se comunicar em rede, por meio do WhatsApp, com outros grevistas do que ligar a televisão e reconhecer o representante que diz negociar em nome dele. O verdadeiro autônomo hoje não faz parte da malha do sistema, mas é alcançável pela rede. É um fenômeno da transição. Em todas as categorias, quando houver esse tipo de problema, o governo não conseguirá lidar com os instrumentos tradicionais.

Então a organização virtual, em rede, foi fundamental para o surgimento dessa greve?

É um instrumento e será cada vez mais. Diante de um sistema político que não dá voz à sociedade, que só representa a si mesmo, a indignação da população se valerá cada vez mais desses canais. A culpa é do sistema político.

Em meu próximo livro, “Presidencialismo de coalizão” (que sai em agosto pela Companhia das Letras), trato da questão de fundo, que é a péssima qualidade das políticas de base no Brasil, por conta de uma visão de curto prazo e do “toma lá, dá cá” com o Congresso. Isso produziu políticas de muito má qualidade. Além disso, temos uma concentração absurda no governo federal. Essas questões se refletem em nossa estrutura tributária e fiscal absurdas. O sistema tributário é um Frankenstein. Tudo isso é um incentivo brutal ao clientelismo e impede os estados de buscarem suas próprias iniciativas.

O que explica o apoio de parcela importante da população ao movimento?

O Brasil apresenta nível quase unânime de indignação e insatisfação, com a política e com o governo. Cada vez que um segmento específico é mais apertado e se revolta, esse descontentamento explode na rede e ganha respaldo dos indignados em geral. O governo, desde a Dilma (Rousseff), prometeu coisa demais e não cumpriu. (O presidente Michel) Temer chegou prometendo o paraíso. Embora a inflação tenha caído, a melhora econômica não veio. Tem-se, então, uma sociedade em estado permanente e latente de indignação, o que gera uma reação espontânea de solidariedade com o outro. Mas isso é efêmero. Conforme o desabastecimento afeta o conforto, esse elas começam a enxergar um exagero e mudar de argumentação.

Qual será o impacto da greve nas eleições?

Será como o das manifestações de 2013. Só não sabemos para que lado mudará o quadro eleitoral. Mas está claro que o Brasil tem uma agenda que não dá para resolver. Nenhum dos pré-candidatos demonstrou ter noção da gravidade do problema. Não sei o que esperar das eleições diante de respostas tão esvaziadas. Foi um show de “vaselina” e contradições. Quando você é candidato a presidente, você tem obrigação de vir a público, expor as causas do problema e como enfrentá-lo. Aliás, é a hora de mostrar sua capacidade de articulação e participar da intermediação com os manifestantes, como fez o (Emmanuel) Macron, durante a campanha eleitoral na França, nos protestos na fábrica da Whirlpool.