Rubens Barbosa

Rubens Barbosa: O governo Biden e o Brasil

As relações com os EUA começaram de forma tranquila, mas estamos apenas no início

O tom das relações entre o Brasil e os EUA, no início do governo Biden, foi definido pelas recentes declarações das porta-vozes da Casa Branca e do Departamento de Estado de que “a prioridade é manter o diálogo e buscar oportunidades para trabalhar conjuntamente com o governo brasileiro nas questões em que haja interesse nacional comum, pois existe uma relação econômica estratégica entre os dois países e o governo Biden não se vai limitar a tratar de áreas em que haja discordância, seja em clima, direitos humanos, democracia ou outros”. A atitude do governo dos EUA pode ser explicada pela decisão da Casa Branca de adotar uma postura inicial firme e assertiva em termos de política interna (combate à pandemia, vacinação, imigração) e uma posição cautelosa em política externa (acordo nuclear com o Irã, China, Rússia) para não confrontar seus críticos republicanos.

Nessa primeira fase do relacionamento com o Brasil, Washington decidiu adotar uma atitude de não confrontação, até mesmo na resposta de Joe Biden a Jair Bolsonaro, e iniciar conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Não deixa de ser uma atitude pragmática de ambos os lados e, do ponto de vista do governo brasileiro, a percepção de algum avanço. O governo americano, no entanto, não está alheio às manifestações públicas de grupos de pressão pedindo medidas duras contra o Brasil. O documento assinado por ex-ministros e negociadores norte-americanos critica a política ambiental brasileira e pede medidas contra o Brasil caso não haja mudança nas políticas de proteção da Amazônia e de mudança de clima. O trabalho Recomendações sobre o Brasil ao Presidente Biden, encaminhado por professores norte-americanos, brasileiros e diversas ONGs, faz duros reparos à política ambiental, a direitos humanos, democracia e pede a suspensão da cooperação com o Brasil em diversas áreas, como defesa, comércio exterior, meio ambiente e outras.

O presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado também enviou carta ao presidente Bolsonaro e ao ministro Ernesto Araújo pedindo explicações e retratação de declarações julgadas favoráveis à invasão do Congresso em Washington. Por fim, um grupo de deputados norte-americanos enviou correspondência ao Senado pedindo a suspensão de programas de cooperação na área de defesa por problemas com os quilombolas no Centro de Lançamento de Alcântara. O conteúdo dos documentos e dessas correspondências, combinado com o anúncio da política ambiental pelo presidente Biden, com referência específica à Amazônia, causou preocupação pelos eventuais impactos no Brasil.

Do lado do governo brasileiro houve três ações para tentar evitar medidas concretas contra o País: a carta de Bolsonaro a Biden em que manifesta a “disposição” de continuar “nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia, com base em nosso Diálogo Ambiental, recém-inaugurado”; o telefonema do ministro Araújo com o secretário de Estado Blinken; e a reunião telefônica entre o chanceler, o ministro do Meio Ambiente e John Kerry, responsável pelos EUA. O setor privado também se manifestou com nota da Câmara Americana de Comércio e da US Chamber sobre as perspectivas favoráveis do intercâmbio comercial.

Uma segunda fase dos entendimentos começa a esboçar-se com os convites para a participação do Brasil, em nível presidencial, das conferências sobre clima e sobre democracia (em que terá destaque a questão dos direitos humanos), em abril, além da Cúpula das Américas. Nesses encontros, os assuntos mais importantes no contexto das relações bilaterais e hemisféricas deverão ser tratados e, dependendo da posições defendidas por Bolsonaro, começarão a aparecer as diferenças de políticas entre Brasília e Washington, em especial em mudança de clima e preservação da Floresta Amazônica.

Na terceira fase de negociação bilateral, Washington deverá reagir à posição brasileira, em especial quanto ao pedido de recursos financeiros para controlar o desmatamento. No telefonema entre Kerry, Araújo e Salles houve concordância em iniciar encontros regulares para examinar formas de colaboração mútua para preservação da Floresta Amazônica. O problema reside no fato de Bolsonaro e Araújo desejarem acreditar que, a partir das políticas apoiadas por Donald Trump, o diálogo com os EUA evoluirá com Biden em “atmosfera de total confiança e entendimento recíproco” e “as boas relações começaram pela discussão sobre meio ambiente e mudança de clima”. E que a “parceria vai continuar”, como mencionado na carta a Biden, o que poderá não ocorrer, dependendo da reação do governo brasileiro (defensiva ou com ajuste na retórica e algumas medidas, com resultados positivos verificáveis) às propostas americanas.

Todd Stern, um dos negociadores dos EUA, antecipou a posição de Washington nos próximos meses. “Os EUA usarão toda a força da diplomacia para conseguir atingir a meta: parar o desmatamento”. E mais: “Sem a Amazônia intacta o Acordo de Paris é impossível”.

As relações com os EUA, que começaram tranquilas, terão muitos outros capítulos em 2021. Estamos só no início.

PRESIDENTE DO IRICE


Rubens Barbosa: Prévias partidárias

Essa ideia foi levantada pelo presidente do PSDB para escolha do candidato a presidente

A expectativa era de que somente a partir do segundo semestre deste ano as articulações sobre as eleições presidenciais de 2022 estivessem a dominar a cena política. Na realidade, essas discussões cada vez mais deverão ocupar as atenções do meio político e da mídia, distraídos em meio aos rompantes populistas bolsonaristas. A crise da saúde causada pela pandemia e o atraso do governo na compra das vacinas ocupam o noticiário, junto com as repercussões da aprovação do auxílio emergencial, da intervenção na Petrobrás e da venda de armas.

Os partidos políticos e personalidades com perspectiva de se apresentarem como candidatos começam a se movimentar e a buscar os holofotes a fim de influir, de alguma maneira, no processo inicial das discussões.

É lugar-comum ressaltar a fragmentação do sistema partidário brasileiro, a falta de programas que sejam defendidos coerentemente por todas as legendas e o controle da máquina partidária por lideranças personalistas e, em muitos casos, autoritárias. Ninguém ignora que uma reforma política, necessária para pôr um mínimo de ordem no quadro partidário, dificilmente será levada adiante, sobretudo, por falta de interesse da classe política.

No marco atual da cena brasileira surgem nomes que certamente poderão estar presentes na eleição de 2022, por sua influência pessoal, e não por força de seus partidos. Essa situação provoca enormes distorções e faz a indicação de candidaturas depender mais dos chefes dos partidos que de um processo democrático que envolva militantes e afiliados. Não há unidade partidária porque os interesses pessoais e políticos determinam o comportamento dos seus membros, o que, na prática, torna os partidos verdadeiras frentes com diversas alas e grupos. Essa é uma das razões do grande número de partidos políticos no Brasil, mais de 30 com representação no Congresso Nacional.

Essa situação não existe só no Brasil. O mesmo se verifica no sistema partidário nos Estados Unidos, embora, por paradoxal que pareça, haja apenas dois partidos que realmente importam no cenário político norte-americano. O Partido Democrata e o Republicano são frentes, com múltiplas alas e interesses divergentes, tanto locais quanto nacionais, como ficou demonstrado nas últimas eleições presidenciais.

À diferença do que existe no Brasil, nos Estados Unidos há um processo democrático decisório efetivo dentro dos partidos. A escolha de candidatos em todos os níveis, locais e nacionais, até para os governos estaduais, para o Congresso e para presidente, é feita mediante prévias partidárias que permitem que cada grupo se manifeste e busque conquistar espaços políticos. O vencedor das prévias se torna candidato e todos os que participaram da disputa cerram fileiras e o apoiam.

Caso viessem a prosperar no Brasil, as prévias poderiam ser o início de uma minirreforma política, pois poderiam abrir caminho para a fusão de partidos com afinidades ideológicas e políticas, de forma que os interesses de todos possam ser respeitados e decididos democraticamente. Seria ingênuo pensar que essa medida pudesse, no momento, ser aceita por todos, visto que as fortes lideranças partidárias, “donas” de alguns partidos, dificilmente aceitariam essa mudança transformacional.

A ideia, contudo, acaba de ser mencionada pelo presidente do PSDB, ao comentar o processo de escolha do partido para a eleição presidencial de 2022. Diz Bruno Araújo que o futuro candidato do partido deverá ser escolhido por prévia em outubro. Caso essa decisão se confirme, o PSDB estaria reforçando o processo democrático que prevaleceu em São Paulo em várias eleições para a Prefeitura e para o governo do Estado. O partido estaria fortalecendo o debate democrático e o respeito aos seus princípios programáticos. A unidade seria mantida, visto que aqueles que se dispusessem a concorrer estariam implicitamente manifestando sua disposição de apoiar quem ganhasse a maioria.

Do ponto de vista do partido, o melhor talvez fosse antecipar o processo e realizar a prévia em agosto ou setembro, para criar um fato político diferenciado e dar mais tempo ao candidato escolhido para viajar pelo País e tornar conhecidas suas propostas para um futuro governo. Essa decisão poderia igualmente facilitar as articulações regionais para a escolha de candidatos próprios ou para eventuais apoios a outros candidatos. O partido estaria voltando às suas origens, daria exemplo de democracia, sairia fortalecido não só pela união interna, mas também pela vantagem de sair na frente, enquanto outros partidos iniciarão o processo de escolha apenas em 2022.

A eleição presidencial terá como pano de fundo os desdobramentos da pandemia, a exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos. Pesarão na hora do voto o custo social e humano, pela forma como as decisões na área da saúde foram tomadas, pelo número de mortos e pelos efeitos negativos sobre o crescimento da economia e do emprego, além do aumento da desigualdade. Os futuros candidatos terão de ajustar seu discurso às novas circunstâncias políticas. Quanto mais cedo os candidatos começarem a expor suas ideias e a debater suas propostas para o Brasil, mais chances terão de focar nos interesses concretos dos eleitores.

*Presidente do IRICE


Rubens Barbosa: SOS Indústria

Se a crise do setor não for enfrentada já, perda da competitividade será irreversível

Basta de diagnósticos. A crise no setor industrial exige ação imediata dos empresários e do governo para recuperar o tempo perdido e reverter a tendência de seu gradual enfraquecimento. Se essa questão não for enfrentada de imediato, a perda da competitividade da indústria se tornará irreversível.

Nos últimos seis anos, 36,6 mil fábricas fecharam as portas no Brasil, 17 por dia. A saída da Ford e da Mercedes põem em risco todo o setor automotivo. No ano passado, com a crise econômica nacional agravada pela covid-19, o setor registrou sua menor participação no produto interno bruto (PIB) desde o início da série histórica, em 1946. O Brasil deixou de figurar como uma das dez maiores economias globais.

O processo de desindustrialização precoce está avançando pela ausência de políticas públicas voltadas para seu fortalecimento. A situação está tão grave que há até quem defenda a ideia de que o governo deixe de apoiar o setor industrial e se foque nas atuais vantagens comparativas do agronegócio e da mineração. Com mais de 200 milhões de habitantes e mais de 14 milhões de desempregados, o campo não tem como oferecer as oportunidades de emprego e renda que a indústria propicia.

A reindustrialização e a modernização industrial deveriam ser prioridades nacionais, aceleradas pela implementação da atual agenda de reformas horizontais (mudança estrutural) e pelo aumento da produtividade, complementadas com uma verdadeira política industrial que induza negócios estratégicos de alto impacto econômico e social, visando à geração de empregos e renda. Nesse sentido, caberia fortalecer mecanismos de apoio à indústria como financiamento, compras governamentais e estímulos à produção e exportação de bens de média e alta tecnologia; definir como áreas prioritárias as indústrias de alto conteúdo tecnológico e inovadoras; identificar nichos de mercado para a nacionalização de produtos essenciais estratégicos na área da saúde e outros (em quatro décadas, o Brasil reduziu de 55% para 5% sua capacidade de produção de insumos farmacêuticos); identificação de áreas para criar cadeias de valor agregado na América do Sul a partir de interesses da indústria nacional; apoio com políticas públicas à internacionalização da empresa nacional.

A agenda de competitividade poderia ser levada adiante mediante ação política junto ao Executivo e ao Legislativo para aprovação da reforma tributária, o fator mais importante para aumentar a competitividade da economia e das empresas nacionais. Outras políticas incluiriam a isonomia de tratamento entre produtos importados e nacionais; aprovação da reforma do Estado, com a desburocratização e simplificação de regras e regulamentos a fim de facilitar os negócios (portal único e OEA); fortalecimento de uma política de incentivos à inovação com estímulos a P&D para a iniciativa privada (universidades e centros de pesquisa) e os órgãos governamentais existentes em áreas estratégicas (mas não limitadas), como indústria 4.0, inteligência artificial e biotecnologia; incentivos à formação e capacitação de profissionais e dirigentes empresariais com a concessão de bolsas de estudo e estágios, no País e no exterior; licitação da tecnologia 5G ou autorização de redes particulares para acelerar o processo de modernização da indústria (4.0–inteligência artificial, automação avançada); alinhamento de políticas internas, principalmente a ambiental, com a política de comércio exterior para evitar medidas restritivas contra produtos brasileiros; medir os impactos sociais após a revisão completa dos tributos e outros projetos estratégicos no nível federal (sustentabilidade).

Com a pandemia surgiu a política de “autonomia estratégica”, que busca substituir importação em áreas limitadas e específicas, como saúde e alimentação, que interessam à segurança nacional. Nessas áreas, a vulnerabilidade dos países pela ausência de produção interna teria de ser superada. A autonomia estratégica, combinada com os avanços do 5G e da inteligência artificial, poderia ser nova referência para a definição de políticas para dar início a um ciclo de reindustrialização que ajudará a impulsionar o crescimento econômico e o emprego.

O Brasil tem ainda o maior parque industrial no Hemisfério Sul. Nos últimos 40 anos a participação relativa da indústria no PIB nacional vem caindo, passou de cerca de 26% no final dos anos 80 para pouco acima de 11% no ano passado.

Executivo e Legislativo estão devendo a aprovação das reformas em 2021. A questão, contudo, é de médio e longo prazos. Por isso, ao lado da política externa, do meio ambiente, da defesa nacional, a reindustrialização deveria necessariamente ser incluída no debate da eleição presidencial. A recuperação do setor industrial deveria ser uma das bandeiras do novo governo a partir de 2023.

O importante é olhar para a frente e defender políticas e medidas que possam, na década de 2020-2030, criar condições para a reindustrialização do País. E necessária uma visão estratégica de médio prazo. Para isso será necessário que a indústria se ajuste às transformações por que passa o mundo, se concentre em inovação e novas tecnologias e, sobretudo, não fique esperando as benesses do governo.

PRESIDENTE DO IRICE


Rubens Barbosa: Notas sobre a carta de Bolsonaro a Biden

Importante entender as entrelinhas. Não vai ser fácil o diálogo entre os dois governos

A carta do presidente Bolsonaro enviada a Joe Biden por ocasião da posse como presidente dos EUA, na forma, parecia ter sido escrita pelo velho Itamaraty ao descrever a relação entre os dois países. Os comentários sobre os valores compartilhados, as coincidências e os avanços recentes refletem as posições do atual Itamaraty durante o governo Trump e estão longe de poder ser associadas ao governo Biden, a menos que o texto indique uma bem-vinda correção de rumos na política externa brasileira… Importante é entender o que está nas entrelinhas da correspondência presidencial.

Uma primeira observação esclarecedora diz respeito à referência de que o atual governo “corrigiu os equívocos de governos brasileiros anteriores, que afastaram o Brasil dos EUA, contrariando o sentimento de nossa população e os nossos interesses comuns”. Como embaixador em Washington nos governos FHC e Lula (1999-2004), devo dizer que recebi diretamente dos dois presidentes instruções precisas para manter e ampliar as relações bilaterais, o que foi feito com resultados muito concretos para o Brasil durante os cinco anos em que lá permaneci. O posterior predomínio de considerações partidárias a partir de certo momento no governo Lula e no governo Dilma realmente afetou o relacionamento entre os dois países, como tive ocasião de prever e registrar em meu relatório final de gestão. A normalidade e o tratamento construtivo na relação entre os dois países foram retomados em seguida, com o governo Michel Temer.

A afirmativa de que “os empresários de nossos dois países têm interesse em um abrangente acordo de livre-comércio” exagera a vontade empresarial quanto a esse acordo amplo (como se vê pela relutância em avançar as negociações com a Coreia do Sul em decorrência da baixa competitividade brasileira), bem assim quanto à disposição do governo de Washington, que não tem nem mandato do Congresso, nem interesse em abrir negociações com o Brasil.

Nas organizações econômicas internacionais, a carta diz que “o Brasil está pronto para continuar cooperando com os EUA para a reforma da governança internacional. Isso se aplica, por exemplo, à OMC, onde queremos destravar as negociações e evitar as distorções de economias que não seguem as regras de mercado”. Essa ação proposta por Trump, e que deverá ser mantida por Biden, visa a atingir a China, não considerada pelos EUA como economia de mercado. Apoiada pelo Brasil até aqui, com base na coincidência com as políticas de Trump, vai continuar agora à luz da dependência do suprimento de vacinas e insumos chineses para combater a pandemia? O governo brasileiro vai mudar sua percepção negativa sobre o multilateralismo e seus efeitos maléficos sobre as nações e passar a apoiar a nova linha do governo Biden?

Resta saber se a afirmação de que “necessitamos também continuar lado a lado enfrentando as graves ameaças com que hoje se deparam a democracia e a liberdade em todo o mundo e que se tornam mais prementes no mundo pós-covid” será suficiente para justificar, apesar de tudo, convite ao Brasil para participar da grande conferência sobre democracia que Biden convocará neste ano.

O aspecto mais importante da correspondência se refere à “disposição a continuar nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia, com base em nosso Diálogo Ambiental, recém-inaugurado”. Em relação ao Acordo de Paris, “nota que o Brasil demonstrou seu compromisso com a apresentação de suas novas metas nacionais” e que, “para o êxito do combate à mudança do clima, será fundamental aprofundar o diálogo e aumentar a cooperação na área energética, visto ter o Brasil sido escolhido país líder para o diálogo de alto nível da ONU sobre Transição Energética”. A relevância desse trecho reside no fato de o Brasil ter dado o roteiro às demandas do governo Biden para que sejam apresentados resultados concretos na preservação da Amazônia (combate ao desmatamento, queimadas, garimpo ilegal e proteção das comunidade indígenas), conforme previsto pelo recém-firmado Diálogo Ambiental; para cobranças no aprofundamento das metas nacionais sobre redução de emissão de gases de efeito estufa, pois, contrariando o compromisso de 2015, ao invés de ampliar as metas, o governo promete emitir mais CO2 até 2030 e as condicionou a recursos externos, o que acarretou a exclusão do Brasil da Cúpula de Ambição Climática sobre mudança de clima; ao aceitar participar do Diálogo sobre Transição Energética, o Brasil será cobrado a apresentar propostas ambiciosas em políticas climáticas

O Congresso americano, com o novo governo, começou a rever o sistema geral de preferências para países em desenvolvimento, em que se prevê a exclusão de países que não implementarem políticas relacionadas às leis ambientais nacionais ou compromissos internacionais. Caso o Brasil seja excluído, empresas nacionais deixarão de exportar com tarifa zero mais de US$ 2,2 bilhões. Será mantida a decisão de o Brasil acompanhar os EUA e aprovar os princípios da política de rede limpa (clean network) para excluir empresas chinesas da concorrência para a instalação da plataforma 5G?

Não vai ser fácil o diálogo entre os dois governos.

*Presidente do IRICE


Rubens Barbosa: Amazonas e 5G

O Brasil está na incômoda posição de ter-se colocado entre os EUA e a China

Cada vez mais, todos os países terão de lidar com os impactos na sua economia de decisões tomadas no exterior e sobre as quais não têm influência. Novas prioridades globais, como a preocupação com o meio ambiente, a mudança de clima e a desigualdade social, terão influência nas políticas internas dos países.

Incertezas e desafios internos e externos serão, assim, a realidade para o Brasil em 2021. Além das políticas e reformas estruturais, duas questões serão cruciais para definir projeções mais positivas de crescimento econômico do País na década que se inicia: a ratificação do acordo do Mercosul com a União Europeia (UE) e a decisão sobre a implantação da tecnologia 5G.

A assinatura do acordo de livre-comércio com a UE, bem assim sua ratificação ficarão na dependência da percepção externa sobre o cumprimento pelo Brasil dos compromissos assumidos nos acordos de meio ambiente e mudança de clima assinados desde 1992 e sobre a fiscalização e a repressão de ilícitos no desmatamento, nas queimadas e no garimpo na Amazônia. Mais recentemente, a UE comunicou aos países-membros do Mercosul, como condição para levar adiante o acordo, sua intenção de assinar uma declaração conjunta anexada ao acordo definindo compromissos ambientais e sociais dos dois blocos para reforçar a confiança dos países europeus na posição do Mercosul, em especial do Brasil, acerca da Amazônia.

Em 2021 deverá haver duas importantes reuniões relacionadas ao Acordo de Paris, sobre mudança de clima em Glasgow, na Escócia, e sobre biodiversidade, na China, o que abre oportunidades para o Brasil mostrar os avanços no que se refere à Amazônia. Argentina no primeiro semestre e Brasil no segundo terão de atuar fortemente junto às lideranças políticas e os Parlamentos para fazer o acordo ser assinado e ratificado.

No tocante à tecnologia 5G, o Brasil está na incômoda posição de ter-se colocado entre os EUA e a China na crescente confrontação estratégica das duas maiores economias do mundo e seus dois maiores parceiros comerciais. A disputa das duas superpotências pela hegemonia econômica, comercial e tecnológica global continuará pelas próximas décadas e ganhará novas características a partir deste mês de janeiro, com o governo Biden.

Como a confrontação não tem as mesmas características ideológica e bélica da disputa entre EUA e União Soviética, a importância da parceria comercial com a China para muitos países fez a UE concluir as negociações de significativo acordo de investimento com Beijing, na contramão do que propõem os EUA. Sem tomar partido de um lado ou de outro no tocante à definição da tecnologia 5G, mais da metade das maiores economias globais já adotaram a tecnologia chinesa, enquanto há ainda um número elevado de países desse grupo sem decisão formada sobre o assunto. A Alemanha chegou até a passar no Parlamento uma lei de segurança de redes que permite o uso da tecnologia da Huawei em redes 5G em troca de garantias da empresa chinesa sobre a proteção de informações em seus equipamentos.

Para o Brasil a tecnologia 5G será importante, especialmente para permitir a modernização da indústria, cujo desenvolvimento ficou afetado pelas dificuldades econômicas internas e pela perda da competitividade. Apenas 10% da indústria brasileira pode ser considerada no estágio da quarta revolução industrial (4.0). As redes particulares propiciadas pela 5G facilitarão o processo de recuperação e atualização da indústria local, com benefício para a economia, o emprego e as exportações nacionais.

O atual governo terá a responsabilidade de adotar medidas que sejam vistas como adequadas e com resultados concretos na política ambiental e de mudança de clima para permitir a ratificação do acordo de livre-comércio com a UE. Caso contrário, a crescente demanda dos governos e, agora, também do setor privado, em especial grandes companhias e instituições financeiras, e dos consumidores sobre a preservação da Amazônia acarretará medidas contrárias aos interesses nacionais – restrições às exportações, boicotes a produtos brasileiros e prejuízos pela suspensão de financiamento de projetos de interesse do governo. Uma decisão baseada em considerações ideológicas e geopolíticas, no caso do 5G, terá consequências nefastas para o País em médio prazo, pelo atraso de dois a três anos na utilização de uma tecnologia que vai revolucionar o mundo e pelo custo de milhões de dólares que a mudança da infraestrutura existente acarretaria para as empresas de telecomunicação e para os consumidores.

Não levar em conta essas realidades será afetar as perspectivas de desenvolvimento econômico, de reindustrialização do País e de avanços na inovação e na tecnologia, agravando ainda mais as condições sociais domésticas e dificultando uma posição relevante do Brasil no mundo, o que deveria ser de nosso interesse.

A invasão insurrecional do Congresso em Washington deverá ter forte impacto na política interna de países onde o nacional-populismo pode ameaçar as instituições, pondo em risco a democracia. A política ambiental de Joe Biden deverá ter consequências concretas no Brasil.

PRESIDENTE DO IRICE


Rubens Barbosa: Estratégia para o comércio exterior

Objetivo é fazer o Brasil se inserir plenamente nos fluxos dinâmicos de trocas internacionais

Uma estratégia de desenvolvimento para o Brasil para o período 2020-2030 com cinco eixos – econômico, institucional, de infraestrutura, ambiental e social – foi divulgada pelo governo Bolsonaro. Nos desafios e orientações de todos os eixos, em especial no da área econômica, encontram-se declarações de intenção que terão forte impacto no futuro do comércio exterior.

Como subsídio para o exame dessas medidas, o Conselho de Comércio Exterior (Coscex) da Fiesp discutiu e elaborou uma estratégia para o comércio exterior, encaminhada pelo presidente da entidade a Brasília. Essa estratégia tem como objetivo a ampliação das exportações e importações, diversificar os mercados e os produtos exportáveis e permitir uma inserção competitiva dos produtos brasileiros nos fluxos mais dinâmicos do intercâmbio comercial.

Do ponto de vista da indústria, essa estratégia deveria estar baseada no tripé reindustrialização, agenda de competitividade e abertura da economia via negociação de acordos comerciais, cujos principais aspectos poderiam ser resumidos como a seguir.

A reindustrialização e a modernização industrial seriam possibilitadas pela implementação da atual agenda de reformas horizontais (mudança estrutural) e pelo aumento da produtividade, que seriam complementadas com uma verdadeira política industrial que induza negócios estratégicos de alto impacto econômico e social, visando à geração de empregos e renda. Nesse sentido, caberia fortalecer mecanismos de apoio à indústria como financiamento, compras governamentais e estímulos à produção e exportação de bens de média e alta tecnologia; definir como áreas prioritárias as indústrias de alto conteúdo tecnológico e inovadoras; identificar nichos de mercado para a nacionalização de produtos essenciais estratégicos na área da saúde e outros; identificação de áreas para criar cadeias de valor agregado na América do Sul a partir de interesses da indústria nacional; apoio com políticas públicas à internacionalização da empresa nacional

A agenda de competitividade poderia ser levada adiante mediante ação política junto ao Executivo e ao Legislativo para aprovação da reforma tributária, o fator mais importante para aumentar a competitividade da economia e das empresas nacionais. Outras políticas incluiriam a isonomia de tratamento entre produtos importados e nacionais; aprovação da reforma do Estado, com a desburocratização e a simplificação de regras e regulamentos a fim de facilitar os negócios (portal único e OEA); fortalecimento de uma política de incentivos à inovação com estímulos a P&D junto à iniciativa privada (universidades e centros de pesquisa) e aos órgãos governamentais existentes em áreas estratégicas (mas não limitadas), como indústria 4.0, inteligência artificial e biotecnologia; incentivos à formação e capacitação de profissionais e dirigentes empresariais com a concessão de bolsas de estudo e estágios, no País e no exterior; licitação da tecnologia 5G ou autorização de redes particulares para acelerar o processo de modernização da indústria (4.0–inteligência artificial, automação avançada); alinhamento de políticas internas, principalmente a ambiental, com a política de comércio exterior para evitar medidas restritivas contra produtos brasileiros; medir os impactos sociais após a revisão completa dos tributos e outros projetos estratégicos em nível federal (sustentabilidade).

A abertura da economia seria realizada via acordos comerciais, com a definição de uma política de negociação de acordos comerciais, com a participação do setor privado, com vista a diversificar mercados e a pauta de produtos exportáveis e promover a ampliação de empresas exportadoras, de modo a reduzir a concentração hoje existente. Deveria haver uma sincronização com a agenda de competitividade, cujo atraso em sua implementação justificaria certo grau de proteção à indústria pela elaboração de lista setorial limitada de produtos sensíveis que seriam liberalizados no final do processo ou ficariam em lista de exceção. Impõe-se a transparência nas negociações dos acordos e na defesa comercial contra medidas restritivas e protecionistas. Nesse contexto, caberia examinar, entre outras, uma reforma tarifária com a revisão da Tarifa Externa Comum do Mercosul, sob a ótica da escalada tarifária; a convocação de conferência especial do Mercosul para examinar seu funcionamento e seus objetivos depois de 30 anos de sua criação, como previsto no artigo 47 do Protocolo de Ouro Preto; o exame junto ao Ministério da Economia e o Banco Central de mecanismos financeiros como o Centro de Clearing com o renminbi na China e o CCR na América Latina, para facilitar a expansão das exportações brasileiras num momento de crise no cenário externo; e rever o funcionamento e os objetivos da Zona Franca de Manaus à luz de uma nova política para a Amazônia, com ênfase na biotecnologia e na bioeconomia.

Urge a discussão de uma estratégia com o setor privado para que o Brasil possa inserir-se plenamente nos fluxos dinâmicos das trocas internacionais. Essa é a contribuição do Coscex da Fiesp.

*Presidente do Conselho de Comércio Exterior da FIESP


Rubens Barbosa: Visões de futuro, China e Brasil

Os chineses fazem um sólido planejamento e o País deixa o grupo das dez maiores economias

A quinta sessão plenária do 19.º Comitê Central do Partido Comunista da China (PCCh), concluída em 29 de outubro, apresentou as linhas gerais do 14.º plano quinquenal econômico e social do país (2021-25). O plano quinquenal registra os objetivos gerais para os próximos cinco anos e, além disso, estabelece o planejamento de médio prazo, até 2035. Mantendo a retórica de “paz e desenvolvimento”, o PCCh traçou as principais linhas estratégicas levando em conta, sobretudo, a crescente competição global. Os documentos indicam que as lideranças do partido, refletindo as incertezas no cenário global, buscaram mudanças em três áreas: fortalecimento da economia, autossuficiência em tecnologia e mudança de clima.

Na sua visão de futuro, os líderes chineses abandonam a ênfase no crescimento econômico com o aumento do PIB e passam a focar “o aumento significativo no poderio econômico e tecnológico” do país até 2035, com foco em questões estruturais e qualidade de vida. O comunicado final do plenário do congresso não fixa uma taxa de crescimento para 2035 e menciona somente o objetivo de alcançar, “em termos de PIB per capita, o nível de países moderadamente desenvolvidos”. Manter o foco no crescimento faz sentido para a China num momento de crescente competição entre grandes potências, que o comunicado, em outras palavras, denomina “profundos ajustes no equilíbrio de poder internacional”. Uma economia forte vai “assegurar que a China tenha recursos necessários para a defesa nacional e a pesquisa científica” e para a expansão de seus interesses globais.

Em vista da gravidade da crise pandêmica, a China teve de adiar o projeto da Rota da Seda (Belt and Road Initiative), uma forma de projetar seu poderio econômico além-fronteira.

As sanções dos EUA e as restrições à venda de semicondutores a empresas chinesas motivaram mudanças na atitude da liderança do PCCh no tocante à dependência de tecnologia do exterior. As vulnerabilidades da China foram exploradas geopoliticamente pelos EUA, apesar dos custos econômicos e da oposição de parte da indústria norte-americana. O plenário do partido afirmou que “autossuficiência em ciência e tecnologia é um pilar estratégico do desenvolvimento nacional” e demandou que “importantes avanços sejam conseguidos em tecnologias críticas” para que a China se torne “líder global em inovação”. Essa diretriz já estava presente nas medidas tomadas para o avanço na política industrial Made in China 2025, com resultados concretos em várias áreas, entre as quais o país já mostra significativa liderança global: tecnologia 5G e 6G e inteligência artificial.

A liderança chinesa passou a ver na política ambiental e de mudança do clima uma forma de ganhar prestígio global e obter benefícios econômicos. A proteção ambiental tem sido uma prioridade crescente para as autoridades chinesas nos fóruns internacionais. Em setembro, na ONU, Xi Jinping anunciou que a China fixou a meta de o pico das emissões de gás carbono ser alcançado em 2030 e a de emissão zero, obtida em 2060. Embora ambiciosos, esses objetivos indicam a participação cada vez mais intensa da China nas discussões sobre políticas ambientais, com potenciais reflexos sobre outros países.

Enquanto a China faz seu sólido planejamento com visão de futuro, o Brasil mantém uma atitude preocupante em termos de planejamento de médio e longo prazos. O FMI projeta uma queda de perto de 5% em 2020 e um crescimento de mais de 4% em 2021, apesar de estimativas de analistas econômicos de que as questões fiscais, a ausência de reformas, a queda no crescimento do comércio exterior e nos investimentos externos não prenunciam uma saída em V, como repetido pelo ministro da Economia. Por outro lado, o baixo crescimento da economia nos últimos anos, agravado pela pandemia, fez o Brasil deixar de ser uma das dez maiores economias globais, segundo o Ibre/FGV. Em termo de PIB em dólares, neste ano, Canadá, Coreia do Sul e Rússia devem ultrapassar o Brasil, que cairá para a 12.ª posição.

A preocupação aumenta quando se verifica não haver um plano claro de saída da crise atual, nem prioridades para avanços econômicos, sociais e tecnológicos. Sem maior discussão, o governo editou decreto que institui a Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031, com cinco eixos: econômico, institucional, infraestrutura, ambiental e social. Trata-se um uma medida tímida, que vai na direção correta. O Congresso e a sociedade civil deveriam ser chamados a participar da análise e discussão dessa estratégia. Dois aspectos chamam a atenção no documento do governo federal: a ausência de uma clara prioridade para a inovação e a tecnologia e de metas claras no eixo ambiental no tocante à preservação da Floresta Amazônica e à mudança do clima.

China, Europa, Japão e EUA (com Biden), no atual cenário internacional, colocam mudança de clima e tecnologia como objetivos centrais, como ficou evidente na reunião do G-20 no final da semana. Quando o Brasil vai juntar-se a eles?

*Presidente do Irice


Rubens Barbosa: Notas sobre a eleição presidencial nos EUA

A sociedade americana optou por um presidente moderado e conciliador

A histórica vitória de Joe Biden será analisada por muitos anos. O resultado da eleição foi surpreendentemente equilibrado, refletindo a profunda divisão do país. A onda azul, democrata, não se concretizou, mas a sociedade americana preferiu eleger um presidente moderado e conciliador, que promete reduzir o ódio e unir os EUA. O resultado das urnas mostrou que o eleitor separou a figura do presidente falastrão do seu partido. O Partido Republicano, que teve desempenho muito melhor que Trump, saiu fortalecido, com maior número de deputados na Câmara dos Representantes e com a possibilidade de manter a maioria no Senado.

A polarização política nos EUA vem se acentuando nas últimas décadas e esse quadro não se deve alterar no futuro previsível, em razão, entre outros fatores, do aprofundamento, com a pandemia, dos contrastes existentes no país mais rico e mais avançado do mundo. A crescente concentração de renda acentuou as desigualdades entre as pessoas, as regiões e entre os centros urbanos e as áreas rurais, fato agravado pelas consequências econômicas. O impasse, se o Senado continuar republicano, dificultará a execução das reformas prometidas por Biden nas áreas de saúde, economia, energia, imigração, meio ambiente e no fortalecimento da democracia e dos direitos humanos.

Os EUA estão deixando de ser um país com maioria branca e calvinista para se tornarem uma democracia multirracial e multicultural. Quase 75 milhões de eleitores se manifestaram contra um presidente com abordagem não convencional na política, negacionista, percebido como egoísta, mentiroso, vaidoso e que põe seus interesses pessoais e eleitorais acima dos interesses do país. Trump impôs políticas que favoreceram o populismo, o protecionismo, o racismo e o isolacionismo, sempre ressaltando que isso ampliaria o emprego do trabalhador norte-americano e reforçaria a ideia de que os EUA sempre estariam em primeiro lugar. As políticas seguidas por Trump acentuaram o divórcio racial e os conflitos relacionados à imigração. Em alguns Estados, porém, os votos de jovens negros, latinos e muçulmanos foram acima do esperado para o Partido Republicano, apesar de algumas políticas de Trump terem sido claramente contrárias aos interesses dessas minorias. Acentua-se, assim, a divisão em torno de temas culturais, enquanto há mais convergência em torno das políticas econômicas, menos conflitivas por estarem voltadas para o crescimento do emprego e da renda.

Apesar da rejeição pessoal, as bandeiras que Trump levantou deverão permanecer. O movimento populista, nacionalista e conservador se fortaleceu com o voto nas áreas rurais, mais pobres, de maioria branca, sem instrução superior e de menor renda. Os republicanos emergem estranhamente como o partido da classe trabalhadora, mais afinado com os anseios da nova composição social e racial da sociedade norte-americana.

Outro aspecto relevante que ficou claro com os resultados eleitorais é a questão do uso político da religião. O recado das urnas aos políticos foi claro: igreja e Estado não devem ser misturados e confundidos. Os eleitores manifestaram-se a favor de discussões sobre questões práticas que afetam diretamente seus interesses e refutaram uma guerra religiosa, em especial contra imigrantes muçulmanos.

As incertezas que as transformações internas na sociedade norte-americana acarretam deixam também uma lição sob o ângulo das relações externas. O alinhamento político e econômico com os EUA é perigoso. Depender dos EUA não representa um apoio estável de médio e longo prazos, dadas as modificações que pode haver nas tendências dos eleitores em eleições seguintes. As políticas de Trump em relação aos aliados dos EUA, no tocante aos organismos internacionais, ao grau de confrontação com a China, à política de meio ambiente, deverão, como já anunciado, ser modificadas no governo Biden. O que poderá acontecer em 2024? Serão mantidas as políticas do governo democrata? Voltarão as políticas isolacionistas?

Uma vez que são muito fortes as instituições no país, as acusações de fraude e a judicialização do processo eleitoral promovidas por Trump, que tantas incertezas despertam e de certo modo representam um sério problema para o funcionamento do sistema eleitoral, não chegarão a ameaçar a democracia, nem a credibilidade das eleições, mesmo com eventuais violências isoladas.

Os institutos de pesquisa voltaram a se equivocar de maneira grave. Os meios de comunicação (TVs, jornais e rádios) tornaram-se, na prática, braços dos dois partidos políticos, estimulando a divisão. O papel da mídia social foi menor do que na eleição de 2016.

Ficam no ar algumas perguntas. Dada a força de Trump como líder de uma parte do Partido Republicano, e sobretudo pelo peso dos mais de 70 milhões de votos, qual será o papel do atual presidente a partir de 20 de janeiro? Trump vai se recolher, como fizeram todos os seus antecessores, ou continuar ativo no Twitter, mantendo-se como uma presença forte no cenário político norte-americano? A Constituição dos EUA determina que nenhuma pessoa poderá ser eleita mais de duas vezes para o cargo de presidente. Trump poderá muito bem querer se apresentar novamente em 2024. Como o Partido Republicano vai reagir ao trumpismo?

*Presidente do IRICE


Rubens Barbosa: Judicialização do processo

O recurso que Donald Trump está interpondo à Suprema Corte diz respeito ao resultado da apuração em alguns Estados e o que está sendo pedido é a recontagem ou a anulação de votos

Na eleição presidencial de 2000, acompanhei de Washington o impasse na apuração dos votos na Flórida, que gerou pedido de George Bush à Suprema Corte para suspender a contagem dos votos. Depois de um mês de incertezas, o Judiciário, por um voto, decidiu suspender a apuração e, com isso, o candidato republicano venceu a eleição naquele Estado e tornou-se presidente dos EUA.

A situação hoje é diferente. O recurso que Donald Trump está interpondo à Suprema Corte diz respeito ao resultado da apuração em alguns Estados (Pensilvânia, Geórgia, Nevada e Michigan) e o que está sendo pedido é a recontagem ou a anulação de votos. Como a Suprema Corte decidiu recentemente que todos os votos devem ser contados, dificilmente a judicialização favorecerá o atual presidente.

Trump tem repetidamente colocado em dúvida o sistema eleitoral, prevendo fraudes e contestando o sistema de votos pelo correio, sem nenhuma evidência. Na noite do dia 3, à frente na maioria dos Estados, afirmou que havia vencido, mas que havia uma manobra para “roubar” a eleição e dar a vitória para o candidato democrata.

O resultado da apuração mostrou o alto grau de divisão existente hoje nos EUA. A pequena margem entre os dois candidatos encoraja a alegação de Trump. Duvidar da legitimidade eleitoral pode abalar a confiança pública no sistema, embora tenham sido raros os casos de ilícitos comprovados ao longo da história política dos EUA e nenhum deles afetou o resultado final.

Apesar de o sistema eleitoral americano não dispor de uma Justiça Eleitoral nacional, mas estadual, é constrangedor ver um presidente, no exercício de suas funções, questionar a lisura das apurações com acusações sem provas. Trata-se de um mau exemplo, vindo de um país que tem a pretensão de ser um modelo democrático para o mundo. Essa atitude representa um sério problema para o funcionamento do sistema eleitoral no futuro, pelas incertezas que desperta, mas não chega a ameaçar nem a democracia nem a credibilidade do país.

A repetição desse recurso, em prazo tão curto, começa a despertar discussões sobre a necessidade de revisitar o sistema eleitoral. Deverão aumentar as críticas à eleição indireta por um colégio eleitoral, com regras que variam de Estado a Estado, e a apuração manual, longe das urnas eletrônicas. As mudanças, contudo, serão difíceis, sobretudo se, com Joe Biden, o Senado continuar com maioria republicana.

A Suprema Corte também poderá começar a ser visada, sobretudo em relação à forma como os juízes são escolhidos. Como no Brasil, a escolha é feita por indicação do presidente, com forte influência ideológica. Sistema eleitoral e Suprema Corte passarão a ser temas de discussão no cenário político americano e poderão estimular esse debate também no Brasil.

*Foi embaixador do Brasil nos EUA


Rubens Barbosa: As novas ameaças e o Brasil

País deve acompanhar a evolução tecnológica e geopolítica da exploração espacial.

Grande parte das facilidades da nossa vida no planeta Terra depende, para seu funcionamento diário, de objetos baseados no espaço. Sistemas de comunicação, transporte aéreo, comércio marítimo, serviços financeiros, monitoramento de clima e defesa dependem da infraestrutura espacial, incluindo satélites, estações terrestres e movimentação de dados em âmbito nacional, regional e internacional. Essa dependência apresenta sérios – e frequentemente pouco percebidos – problemas de segurança para empresas provedoras e para os governos.

Nesse cenário, começam a ser examinadas novas ameaças de ataques aos satélites em órbita que podem afetar todos os serviços e facilidades mencionados. Essas ameaças devem estar sendo avaliadas pelo governo brasileiro. Além disso, a utilização do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão, tornada possível depois de décadas de decisões equivocadas, representa um grande desafio para o governo e as empresas brasileiras. Não só pela necessidade de melhoria na infraestrutura da região e do próprio centro, mas também na legislação interna, sobre uma lei do espaço (que defina as atividades comerciais no espaço, como a utilização de detritos espaciais), sobre o órgão responsável pela negociação com empresas interessadas na utilização do CLA, a definição do contrato de licenciamento de lançamento, a ser assinado com a autoridade nacional e o comércio de tecnologia espacial.

Como qualquer outra infraestrutura digitalizada, satélites e outros objetos baseados no espaço são vulneráveis, em especial, a ameaças cibernéticas. As vulnerabilidades cibernéticas apresentam riscos muito sérios não só para esses objetos, mas também para infraestruturas essenciais terrestres. Se não forem contidas, essas ameaças poderão interferir no desenvolvimento econômico global e, por extensão, na segurança internacional. Cabe registrar que essas preocupações não são meramente hipotéticas. Na última década mais países e atores privados conseguiram adquirir e empregar meios para afetar esses objetos espaciais críticos com aplicações inovadoras que começam a representar uma ameaça real ao seu funcionamento.

A ideia da guerra espacial não é nova, começou com os foguetes V-2 da Alemanha. A eventual atividade bélica no espaço hoje se concentra nos instrumentos utilizados para as guerras na Terra. Os satélites são utilizados nas operações militares para identificar alvos e responder a questões estratégicas, além de localizar as forças militares e bombas e obter informações nos teatros de guerra. Isso torna os satélites alvos atrativos para mísseis terrestres. EUA, China e Índia estão desenvolvendo armamentos destrutivos de objetos no espaço, visando a impedir os sinais para a Terra dos satélites militares com lasers ou mesmo os explodindo, fazendo detritos se espalharem pelo cosmo. Estão também tornando suas Forças Armadas voltadas para o espaço. Em 2019 foi criada pelo governo dos EUA a Força Espacial, serviço militar independente cujos doutrina, treinamento e capacidade estão sendo definidos pelo Pentágono.

Para tentar evitar uma lei da selva espacial começa a ser discutido algum tipo de regime multilateral. No momento não há leis nem normas específicas para uma eventual guerra espacial. O Tratado sobre o Espaço Exterior, de 1967, proíbe a utilização de armas de destruição em massa no espaço, mas não trata de armas convencionais. Se dois satélites, por exemplo, ficam muito próximos de maneira ameaçadora, não há respostas adequadas. Em 2008 a União Europeia propôs um código de conduta voluntário para promover “comportamento responsável” nessa área. No mesmo ano, para se contrapor a essa iniciativa, China e Rússia propuseram um tratado que proibiria armas no espaço. O tratado não visava armas antissatélites, mas armas antimísseis baseadas no espaço. A oposição à iniciativa europeia, além da Rússia e da China, veio da América Latina e da África.

Apesar de apoiar a desmilitarização do espaço, os países dessas regiões não aceitaram que os países com objetos no espaço pudessem ter o direito de usar a força para defendê-los. Nenhuma das duas iniciativas prosperou, mas experimentos militares com fins ofensivos continuam a ser feitos visando à eventual destruição de satélites que poderão ter efeitos devastadores para a defesa e as comunicações globais.

O governo brasileiro não poderá perder de vista as transformações positivas que ocorrerão na área aeroespacial pela redução de custos, por novas tecnologias e, sobretudo, pelo aparecimento de uma nova geração de empresários privados operando ao lado dos governos. Turismo para os ricos e mais avançada rede de comunicações para todos, exploração mineral e transporte de massa passarão a ter um impacto nos negócios e tornarão o espaço uma verdadeira extensão da Terra. Com visão de futuro, o Brasil, que passará a ter interesses concretos nesse campo, deveria fazer o acompanhamento da evolução tecnológica e geopolítica da exploração espacial.

Sem descurar das novas ameaças que começam a ser discutidas agora e poderão afetar as facilidades terrestres de que dispomos, o Brasil deveria participar dessas conversações, quando retomadas.

*Presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen)


Rubens Barbosa: Centro de Defesa e Segurança Nacional

Entidade sem fins lucrativos, buscará preencher um vazio de discussões na sociedade

O Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) foi criado em São Paulo, com o estímulo do ex-ministro Raul Jungmann. Trata-se de uma entidade sem fins lucrativos que se caracteriza pela independência e pluralidade, acima de interesses partidários, ideológicos ou setoriais, e buscará preencher um vazio de discussões na sociedade civil sobre assuntos de extrema importância na área de defesa e que podem definir a posição do Brasil no mundo.

Somos uma das dez maiores economias globais, o quinto maior território e a sexta população mundial. E temos a terceira maior fronteira. Nosso país está destinado a ter papel relevante no contexto das relações internacionais. Membro do Brics, na área da defesa se constitui na segunda maior potência do Hemisfério; tem a maior costa banhada pelo Atlântico Sul e dos três ecossistemas do subcontinente, à exceção do andino, está presente nos outros dois, o amazônico e o platino. Sendo um país continental, torna-se obrigatório termos uma visão clara dos temas da defesa e segurança, compatível com a necessidade de dispor de recursos de proteção e, se necessário, capacidade de dissuasão adequada a seu presente e seu futuro.

Por motivos históricos, sociais e econômicos inexiste compatibilidade entre a realidade do País e sua defesa e segurança nacional. Ao contrário de outros países, não há no Brasil uma cultura de defesa por nos situamos na mais pacífica das regiões em termos de conflitos interestatais – o último conflito em que nos envolvemos dista 150 anos do presente, a Guerra do Paraguai. Socialmente, nossas prioridades prementes são desigualdade, saúde, educação, segurança pública e emprego. E, economicamente, nossa situação fiscal precária nos impõe severas restrições à expansão de gastos, sobretudo com investimentos. Disso resulta um distanciamento entre as prioridades da política e as da defesa e da segurança nacional. Falta às nossas elites sociais, econômicas e politicas maior sensibilidade para um debate e maior interesse e compreensão do tema.

Nesse sentido, deverá ser buscada interlocução com o Congresso Nacional. O Congresso recebeu do Executivo e deverá examinar os documentos sobre a Política Nacional de Defesa e a Estratégia Nacional de Defesa. Espera-se que, diferentemente do que ocorreu nos últimos quatro anos, haja efetivo engajamento dos representantes da sociedade brasileira na discussão de como enfrentar as novas ameaças – não bélicas, mas cibernética e ambientais, por exemplo – que afetam a defesa e põem em risco os interesses nacionais. A política de defesa deve ser definida pela visão apenas da política militar de defesa?

O setor industrial de defesa, complexo defesa e segurança pública, responde por 3,4% do nosso PIB. Considerando que o porcentual da defesa, a principal responsável por produtos de alta e média-alta tecnologia, é muito menor, da ordem de 0,5%, esse alheamento das nossas elites é disfuncional. Como em outros países, a inovação na área de defesa propriamente dita poderá ser esteio e impulsora de um projeto de desenvolvimento nacional e tecnológico autônomo, essencial para garantirmos nossas independência e soberania. Esses são alguns dos temas que deveriam ser discutidos com a sociedade civil, o Congresso e o governo.

Ao longo do tempo, o Cedesen ajudará a corrigir a falta de uma cultura de defesa na sociedade e poderá contribuir para a construção de um diálogo estratégico entre civis e militares, sem preconceitos e com visão de futuro. O Cedesen tratará de temas relacionados com defesa, segurança nacional e regional, base industrial de defesa, Política Nacional de Defesa e Estratégia Nacional de Defesa, entre outros.

As dimensões da defesa e segurança nacional estão contempladas em diversas áreas: cibernética, tecnologia, geoestratégica, energia, ambiente, política, entre tantas outras fundamentais para sobrevivência e existência de uma nação e sua sociedade. O centro terá como prioridade a elaboração de estudos e pesquisas em globalização, defesa e segurança nacional e regional; laboratório de tendências em inovação, tecnologia e mercados; publicação de trabalhos, pesquisas, estudos, textos, ensaios, monografias, além de reuniões e seminários sobre os temas e questões relativas a seus objetivos e propósitos.

Neste semestre o Cedesen realizará dois outros encontros virtuais sobre Relação entre Civis e Militares (28/10) e Indústria de Defesa (25/11). A agenda para o próximo ano está em elaboração e dentre suas prioridades estarão os documentos sobre Política Nacional de Defesa e Estratégica Nacional de Defesa, as Forças Armadas e a Amazônia, Política Nacional do Espaço, desafios do entorno geográfico (América do Sul, Atlântico Sul, África, Antártida).

Na semana passada, um encontro virtual marcou a abertura do centro. Os ex-ministros Nelson Jobim, Raul Jungmann e Sergio Etchegoyen ressaltaram a crescente importância das questões de defesa e segurança para o Brasil e a necessidade de maior engajamento do Congresso e da sociedade civil para a definição dos objetivos da política de defesa e os meios e caminhos estratégicos para alcançá-los.

*Presidente do Cedesen


Rubens Barbosa: Brasil e Venezuela, a quem possa interessar

Canal militar poderia sondar a possibilidade de iniciar conversas sobre transição pacífica

No início de setembro, em reunião do Brics, o Brasil exortou os governos da China, da Rússia e da Índia a encontrarem uma saída para a Venezuela, cujo regime se tornou, segundo se afirmou, um foco de crime organizado, terrorismo, tráfico de drogas e de ouro, além de não estar disposto a fornecer condições para eleições livres e justas. A solução demandada é a renúncia dos que detêm o poder e sua concordância com a formação de um governo de união nacional.

Na semana passada, de passagem por Roraima, o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, com o ministro Ernesto Araújo, visitou acampamentos de refugiados venezuelanos em ato visando a favorecer a campanha para a reeleição de Donald Trump. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, com o apoio de ex-chanceleres, classificou a visita como “afronta à diplomacia brasileira”. Araújo considerou os comentários “infundados” e que “só teme a parceria (com os EUA) quem teme a democracia”.

Sem ter rompido relações com Caracas, o Brasil fechou a embaixada e os consulados na Venezuela e pediu a retirada de todos os diplomatas venezuelanos, declarando-os personae non gratae. Suspendendo a Venezuela no Mercosul, pelo descumprimento da cláusula democrática, o intercâmbio com o Brasil reduziu-se a iniciativas isoladas de empresas nacionais exportadoras de alimentos.

O Brasil trata dos assuntos com a Venezuela por meio do Grupo de Lima, alinhando-se às ações do governo dos EUA em relação às sanções unilaterais contra o regime de Nicolás Maduro. Em 8 de agosto, o governo venezuelano solicitou ajuda do governo brasileiro para o combate à pandemia, especialmente na área de fronteira com permanente fluxo de refugiados para o Brasil. Sem resposta até agora, no final de agosto o Pro-sul, órgão de coordenação sul-americana, reuniu-se para tratar de ações conjuntas para combater a pandemia e aparentemente não houve comunicação pelo Brasil da carta recebida e as recomendações feitas ignoraram a situação na Venezuela e o apelo humanitário.

Os parceiros regionais, em especial Brasil, Colômbia e EUA, na prática, suspenderam suas relações com Caracas, em função da política de sanções econômicas contra o regime de Maduro. O vazio político e econômico criado abriu espaço para que países extrarregionais, como Rússia, China, Irã e Turquia, além de Cuba, se tornassem parceiros importantes da Venezuela. Nesse contexto, a exortação brasileira foi ignorada.

Os EUA apresentaram em março proposta para a transição política do governo na Venezuela. O plano, chamado Quadro Democrático para a Venezuela, incluía a retirada das sanções econômicas caso Maduro e o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, mandatário autoproclamado do país, abrissem mão do poder. O país passaria a ser governado por um conselho de cinco membros escolhido pela Assembleia até o fim de 2020, quando seriam realizadas eleições presidenciais e parlamentares. De seu lado, os EUA retirariam restrições sobre membros do governo e a venda do petróleo venezuelano, principal fonte de renda externa. A proposta foi apoiada pelo Brasil, mas nasceu morta por ter sido apresentada pelos EUA, e foi rejeitada de imediato pelo governo de Caracas.

O Brasil tem interesses concretos a resguardar, como a proteção da longa fronteira, combater o tráfico de armas, drogas e ouro, proteger a Floresta Amazônica, apoiar medidas para conter a pandemia e reduzir o número de refugiados, receber a dívida comercial e financeira e manter o fornecimento de energia venezuelana para o Estado de Roraima. Os interesses brasileiros estariam mais bem resguardados se o relacionamento com a Venezuela não fosse delegado a um grupo e a outros países do hemisfério ou extrarregionais.

Nenhum outro país estaria em melhor posição para tomar a iniciativa de ressuscitar uma proposta semelhante à dos EUA do que o Brasil. Cabe ressaltar que nunca foi interrompido o relacionamento entre as Forças Armadas dos dois países. A última visita de alto nível à Venezuela foi no governo Temer, quando o ministro da Defesa esteve duas vezes em território venezuelano para se encontrar com sua contraparte para examinar a questão dos refugiados e do fornecimento continuado de energia ao Brasil. Longe dos holofotes, o canal militar privilegiado e preservado, talvez com discreta ajuda de Cuba, poderia sondar a possibilidade de iniciar conversas visando a uma transição pacífica na política venezuelana.

É senso comum que em qualquer negociação, além da representatividade dos participantes, sempre se deve evitar encurralar e deixar o interlocutor sem alternativa. Há que oferecer uma saída ao outro lado. Os militares têm experiência nisso, pois negociaram a transição democrática com o elemento mais importante, a anistia – que não consta na proposta norte-americana. Por sua atuação histórica no processo de integração regional e sobretudo, no atual momento, por seus interesses concretos, o Brasil teria credibilidade para iniciar conversas nessa linha, via diplomacia militar. O governo seria insuspeito por tudo o que tem declarado a respeito do governo de Caracas, mas o interesse nacional estaria sendo posto acima de ideologias e alinhamentos.

*Presidente do IRICE