Ruas

Atos pela democracia elevam tom contra o racismo no Brasil

Protestos contra o Governo Bolsonaro se espalham por dezenas de cidades e ignoram orientação de evitar aglomeração social. “Tenho mais medo do racismo que da pandemia”

Carla Jimenéz, Priscilla Arroyo e Isadora Rupp, do El País

Milhares de pessoas protestaram neste domingo em todo o mundo contra o racismo. No Brasil, não foi diferente. Em plena pandemia do novo coronavírus, que já matou mais de 36.000 pessoas e infectou mais de 690.000 no país, manifestantes saíram às ruas, ignorando a recomendação de que se evite aglomerações, para cobrar o fim da violência racista, levantar bandeiras antifascistas e defender a democracia brasileira, num contraponto aos protestos que ocorrem há semanas ―com a adesão e apoio do presidente Jair Bolsonaro― pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional. “Tenho mais medo do racismo do que da pandemia. Obviamente o coronavírus mata, mas o racismo é muito cruel”, explicou Julia, uma jovem negra da zona sul de São Paulo, uma das dez cidades brasileiras onde houve protestos massivos. “O que adianta ficar em casa se a maior parte da população negra não esta podendo ficar em quarentena?”, justificou a designer Tânia Aquino, 26 anos, que também estava no Largo da Batata. Quem não foi às ruas, foi às janelas: houve panelaços em várias capitais. Também ocorreram alguns atos favoráveis a Bolsonaro, embora em proporção menor, nas cidades de São Paulo, Rio e Brasília.

Manifestantes protestam contra o racismo e o Governo Bolsonaro em São Paulo.
Manifestantes protestam contra o racismo e o Governo Bolsonaro em São Paulo.AMANDA PEROBELLI / REUTERS

O ato no Largo da Batata, na zona oeste da capital paulista, começou tímido e foi ganhando força durante pouco mais de duas horas. O local ficou cheio por volta das 15h, tomando inclusive um trecho da avenida Faria Lima. A Polícia Militar estima em 3.000 pessoas o total de participantes, o que parece um pouco abaixo do que a reportagem testemunhou. Os organizadores falam em ao menos 10.000 pessoas. Centenas de policiais se dividiram ao redor da praça. As pessoas chegavam um pouco tensas não só pelo receio de encontrar violência policial, mas também pelas precauções para evitar o contágio do novo coronavírus. Munidos de máscaras de proteção e álcool gel ―muitos com escudos faciais―, o público se mostrou diverso. Havia jovens, famílias inteiras e até idosos, que justificaram a ida apesar de pertencerem a um grupo de risco da covid-19 pois acharam importante ter a voz ouvida. Apesar dos pedidos dos organizadores para que as pessoas mantivessem distância umas das outras, não houve muito respeito pelo distanciamento social proposto, de um a dois metros.

Protestos antirracistas e antifascistas se espalharam pelo Brasil no domingo.
Protestos antirracistas e antifascistas se espalharam pelo Brasil no domingo.REUTERS / AP / AFP

Do alto de um carro de som, lideranças negras cobravam o engajamento de brancos para salvar “vidas pretas”. “A democracia nunca existiu. O racismo faz parte do DNA do branco, vocês são criminosos”, provocava um jovem líder, que avisou: “agora é hora da pretitude tomar conta”, completou. Um jogral de coletivos negros gritou os nomes de inocentes assassinados, desde a menina Ágatha Félix, passando por João Pedro, morto em São Gonçalo, até a vereadora Marielle Franco, morta há dois anos e meio. “Marielle perguntou/eu também vou perguntar/quantos mais tem que morrer/pra esta guerra acabar”, dizia uma moça, no centro de uma roda de jovens negros.

Muitos cartazes contra o racismo se juntavam a outras contra o presidente Jair Bolsonaro que se fizeram presente. Faixas contra a volta da ditadura militar também cobravam a manutenção do regime democrático. Gritos de “Fora, Bolsonaro” e “Vidas negras importam”, foram a base do encontro, que durou até umas 16h30, quando os manifestantes decidiram sair em marcha. Havia um clima de esperança, mas também uma sensação de que a luta antirracista tem um longo caminho pela frente. “Estamos nos colocando contra autoridades que oprimem classes desprivilegiadas como nordestinos e negros. Todos temos medo da covid, mas como moro sozinho, não sou um risco para os outros”, explicou Rodrigo Silva, 33 anos se declara punk.

Ana Paula Braga e seu amigo, Natalício.
Ana Paula Braga e seu amigo, Natalício.PRISCILLA ARROYO

O policiamento ostensivo impressionava e tensionava o ambiente. Com lágrima nos olhos, a técnica de enfermagem Ana Paula Braga, 41, dizia se sentir “oprimida". “Não podemos deixar crescer essa força do mal no país, de autoritarismo. Sou mulher, negra, sinto que estamos perdendo mais liberdade a cada dia. Infelizmente não vejo esperança no futuro próximo. O que estamos fazendo aqui hoje é uma construção”, disse ela, que é funcionária pública e concursada do Ministério da Saúde.

Os embates com a polícia eram o grande temor do governador de São Paulo, João Doria, que atuou para que os manifestantes pró e contra o governo se encontrassem. “Tudo que não precisamos é estabelecer confrontos na rua neste momento no Brasil. Isso só vai atender a quem tem projeto autoritário e deseja justificar a presença do Exército e com medida mais autoritária e mais dura diante de um Estado ou conjunto de Estados”, disse ele em entrevista o EL PAÍS, na semana anterior.

Mas num dia de protestos antifascistas e antirracistas, quatro jovens negras relataram terem sido abordadas pela polícia. “Viemos protestar contra o racismo e sofremos racismo na pele. Fomos enquadradas quatro vezes no caminho de ida e durante o ato. Agora, na volta também”, diz Tainah Andrade, 18 anos, ao apontar para a viatura. “Nos pararam, mas não pararam o grupo de meninas brancas que estavam bem na nossa frente”, contou a manifestante.

Tainah Andrade e suas três amigas foram enquadradas quatro vezes no caminho e durante o ato.
Tainah Andrade e suas três amigas foram enquadradas quatro vezes no caminho e durante o ato.PRISCILLA ARROYO

Participando de seu primeiro protesto, Lucio Lima de Paula, estudante negro de Itaquaquecetuba, escolheu levar um cartaz contra intolerância. “Somos parados, tomamos enquadro, somos desrespeitados. Isso faz parte da rotina, mas cansei. Sei dos perigos da covid, mas o racismo mata há anos e não podemos ter medo. Se a gente não vier, ninguém vai vir por nós”, disse o jovem. Já o veterano Juarez Correa Barros Junior, 63 anos, se disse “viciado em democracia” e explicou porque optou se arriscado para encarar uma aglomeração em plena pandemia."Me sinto mais inseguro no Brasil com esse presidente do que já me senti em toda a minha vida. Saí de casa hoje para demonstrara minha raiva e indignação.”

Inicialmente, a manifestação ocorreria na avenida Paulista, mas os organizadores mudaram o local do ato após decisão da Justiça de São Paulo, já que no centro ocorreria uma concentração pró-Governo. Por volta das 16h30, a manifestação no Largo da Batata foi encerrada pelos organizadores, que recomendaram às pessoas que fossem embora para suas casas. Um grupo, entretanto, decidiu marchar até a avenida Paulista, mas foi impedido por um bloqueio policial. Negociadores da polícia tentaram demover integrantes para que deixassem as ruas, mas eles insistiram. “Os que ficam ainda aqui são vândalos, os que se manifestaram eram cidadão do bem”, dizia o secretario executivo da Polícia Militar, Coronel Álvaro Camilo, ao vivo em entrevista à CNN Brasil. Ao final, a polícia lançou bombas de gás para dispersar os que ficaram. De acordo com balanço final da PM, 14 pessoas foram detidas.

Na avaliação de Guilherme Boulos, candidato à Presidência em 2018 pelo PSOL e um dos líderes do MTST, um dos organizadores, a manifestação trata-se de o começo de um caminho para barrar o fascismo no Brasil. “Começamos domingo passado e continuamos hoje. Se só os fascistas estão nas ruas, por mais que sejam minoria na sociedade, um ambiente de intimidação acaba sendo criado. É o que queremos evitar”, afirmou.

Policiamento ostensivo

Uma semana após um ato antirracista terminar em repressão policial e tumulto na capital paranaense, um cordão de isolamento com policiais do choque, viaturas e cavalaria cercou a Praça Santos Andrade, local onde foi realizado o ato Vidas Negras Importam - Fora Bolsonaro, em Curitiba. O policiamento ostensivo era desproporcional ao número de manifestantes, revistados um a um antes de entrar no limite da praça. Com as mãos na cabeça, tinham o corpo e as mochilas inspecionadas. Garrafas d’água e o agora onipresente álcool em gel eram abertos e verificados, enquanto um helicóptero da PM sobrevoava a praça e arredores.

Ao ver as abordagens, o engenheiro ambiental Everton Rocha, 31, titubeou. Homem negro, nascido no interior da Bahia, mora há cinco anos em Curitiba, onde concluiu o seu mestrado em Engenharia Química pela Universidade Federal do Paraná. “Por um segundo pensei em não ir e voltar para casa. Mas alguém precisa lutar. Nós estamos morrendo”, lamentou.

O engenheiro Everton Rocha, de 31 anos.
O engenheiro Everton Rocha, de 31 anos.ISADORA RUPP

A decisão de revistar os participantes, segundo a porta-voz da PM do Paraná, a Tenente Michele Trindade, foi por conta das depredações ocorridas na última segunda-feira, 2 de junho, e para garantir a segurança dos manifestantes. “Os organizadores se mostraram solícitos, e a OAB e Ministério Público também auxiliaram nessa intermediação”, declarou. Segundo a porta-voz, quatro pessoas foram detidas por porte de entorpecentes. Mas na análise da defensora pública e coordenadora do Grupo de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União, Rita Cristina de Oliveira, a PM não poderia ter feito a revista. “É uma forma ilícita de impedir o direito de livre manifestação”, avalia a defensora. "Não é leviano dizer que isso não ocorre como padrão adotado nas correntes manifestações pró-Governo ou pró-Lava-jato ou anticorrupção, que são comuns aqui na cidade. Nesse ponto chega a refletir o projeto de branqueamento exitoso que sufoca o grito e a presença dos negros nesta cidade historicamente, e que se reproduz na atuação policial”, completou, indagada pelo EL PAÍS.

Miguel Otávio, Ágatha Félix, George Floyd

“É uma sensação de medo, que o meu direito de falar e de ir e vir está sendo limitado", lamentou Natasha de Miranda Gomes, 21 anos, integrante de um coletivo socialista. Em Curitiba, assim como em outras capitais brasileiras, a morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, que despencou de um dos edifícios das “Torres Gêmeas” de Recife, foi lembrado com emoção. "E não podemos mais nos conformar com as coisas como estão. Com o Miguel, menino negro, morrer porque a mãe precisou passear com o cachorro da madame em plena quarentena. A gente luta pelo antirracismo e pelo anticapitalismo. O povo negro nunca ganha nesse sistema”, completou a jovem Natasha.

Natasha de Miranda Gomes, do Coletivo Rebeldia.
Natasha de Miranda Gomes, do Coletivo Rebeldia.ISADORA RUPP

Parte dos manifestantes seguiram para o Palácio Iguaçu, sede do governo estadual, sob os olhares da polícia. No caminho, dos apartamentos, moradores panelaço e engrossavam o coro “Fora, Bolsonaro”. Os manifestantes e policiais permaneceram no local até o começo da noite, e não houve nenhum registro de confronto.

No Rio de Janeiro, os manifestantes se reuniram em frente ao monumento Zumbi dos Palmares, por volta das 15h, e caminharam até a Candelária. Além dos cartazes antirracistas, a repetição dos nomes das vítimas negras da violência policial compôs a trilha deste ato de domingo: “Marielle, presidente!”, “Agatha Félix, presente!”, “João Pedro, presente!”, “George Floyd, presente".

Protesto contra o racismo no Rio de Janeiro.
Protesto contra o racismo no Rio de Janeiro.CARL DE SOUZA / AFP

Com a colaboração de Breiller Pires, Heloísa MendonçaRegiane Oliveira Marina Novaes, do EL PAÍS em São Paulo.


Ascânio Seleme: A manifestação da direita

A direita desorganizada brasileira, descontadas as nuances, é a cara da esquerda que vai às ruas

Ninguém se surpreenderia se as bandeiras das manifestações que tomaram as capitais fossem vermelhas. As pautas substantivas dos que foram às ruas neste domingo são muito parecidas com as das empunhadas pelos manifestantes de duas semanas atrás. Abaixo a corrupção; fim dos privilégios; combate ao crime; política limpa; justiça igual para todos; resultados na economia. A direita desorganizada brasileira, descontadas as nuances, é a cara da esquerda que vai às ruas.

Em primeiro lugar, ambas são ingênuas. Gritam e jubilam-se coletivamente por um Brasil utópico, onde as coisas funcionem de acordo com a sua vontade, e somente por ela. Ignoram, ou não aceitam, o que é pior, os jogos de pressão, os lobbies, os grupos e as tendências políticas que existem em qualquer sociedade organizada. Olham para o Congresso e só enxergam o que chamam de velha política. Trata-se na verdade de toda e qualquer forma de ação política que não atenda aos seus interesses. Direita e esquerda são iguais nesse aspecto.

A direita que desfilou na Avenida Atlântica e na Avenida Paulista não é carnívora. Ela quer o que todos querem, um país mais justo, menos roubalheira, mais ordem, menos crime, justiça. Bolsonaro foi apenas uma imagem, uma ilusão. Poderia ser Lula. Seria igual em força e teor. Nem mesmo o impulso que movimenta as duas extremidades é diferente. Se a esquerda dá ônibus e sanduíches para seus militantes, a direita dá bandeiras, bandanas e camisetas. O mar de bandeiras brasileiras iguais, fabricadas em série, guarda a imagem e a semelhança das bandeiras e bonés do MST.

Os extremistas de cada lado somem na multidão. Os que gritaram pelo fechamento do Congresso e do Supremo, ou em favor da volta dos militares e da ditadura, foram pingos na multidão, não significaram nada. Como nada significam os extremistas de esquerda que pregam o fim do capitalismo, da sociedade burguesa e de todos os seus asseclas que usam ternas e togas. Tantos estes quanto aqueles querem regimes de força, onde só uns poucos ungidos mandam, desmandam, prendem e arrebentam. Foi assim na história, de um lado e de outro.

O que importa numa manifestação como a deste domingo é que um grupo grande de brasileiros, honestos e sinceros na sua maioria, foi à rua pedir soluções para tirar o Brasil do buraco. Há duas semanas outro grupo de brasileiros honestos e sinceros pedia da mesma forma saídas para a crise. A diferença entre os dois times é marginal. Uns são mais humanistas, outros mais egoístas. Uns querem resultados já, outros poderiam ter resolvido ontem. Todos são brasileiros e querem um Brasil melhor para si, para seus filhos, para todos.


El País: Sem base parlamentar, Bolsonaro aposta nas ruas para emparedar Congresso

Presidente morde e assopra ao falar do Parlamento num único dia, mas segue incentivando manifestação de apoiadores no próximo doming. Movimentos do impeachment se descolam do "bolsonarismo puro"

De manhã, o presidente Jair Bolsonaro mordeu. Em discurso, desqualificou o establishment político do qual ele faz parte há três décadas. “O Brasil é um país maravilhoso, que tem tudo para dar certo. Mas o grande problema é a nossa classe política”. Na sequência, provocou os deputados. “Se a Câmara e Senado têm propostas melhores que a nossa, que ponham em votação”. À tarde, em outro evento nesta segunda-feira, ele assoprou. “Nós valorizamos, sim, o Parlamento brasileiro, que vai ser quem vai dar palavra final nesta questão da Previdência, tão rejeitada nos últimos anos”.

O vai-e-vem de discurso não altera, por ora, o plano A do bolsonarismo nesta semana: a tentativa do presidente de emparedar os parlamentares transformando a mobilização de seus seguidores nas redes sociais em um movimento de rua, no próximo domingo, dia 26. O discurso que fala do presidente como refém do Parlamento e da "velha política" —e que por vezes menciona até o fechamento do Congresso como medida— está espalhado pelos grupos de WhatsApp bolsonaristas que foram centrais na campanha eleitoral. Tem sido estimulados, mais ou menos explicitamente, por parte do bolsonarismo puro, do clã familiar a nomes ligados ao escritor Olavo de Carvalho, como o assessor da presidência, Filipe Martins. A movimentação no mundo virtual inspira a desconfiança em Brasília, pois trata-se de um terreno onde os “radicalismos se sobrepõem ao diálogo", conforme definiu nesta segunda o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

A prova para saber se a estratégia dará certo ou não dependerá do impacto das manifestações que os bolsonaristas planejam em apoio ao Governo em ao menos 50 cidades brasileiras. Será uma espécie de desagravo ao presidente, já que no último dia 15 de maio, milhares de pessoas estiveram nas ruas protestando contra o contingenciamento de 30% dos recursos da educação. Outro ato com a mesma temática está programado para o dia 30.

No caso dos protestos a favor de um presidente que governa há menos de cinco meses e tem a mais baixa popularidade para uma mandatário em primeiro mandato desde 1992 (cerca de 35% de aprovação), não está claro totalmente quem são, de fato, seus organizadores. Se são partidos políticos (ou ao menos o seu, o PSL), sociedade civil, ou grupos organizados, como o dos caminhoneiros. “Não se trata de um terceiro turno eleitoral. São atos convocados por militantes. Eu mesma decidi aderir depois que vi nas redes sociais”, afirmou a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF), uma das mais ferrenhas defensoras de Bolsonaro no Congresso.

Dentro do próprio PSL e entre os ativistas da direita, como o Movimento Brasil Livre ou o Vem Pra Rua a adesão não é automática, pelo contrário. Tido como um dos principais ativistas que atuaram pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT) e consequente eleição de Bolsonaro, o MBL anunciou no fim de semana que não apoia o protesto. Em seu Twitter, Renan Santos, um dos líderes do grupo, disse que a manifestação força a barra contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal e também assusta os militares. “Tudo o que pretendem é criar o caos. Apenas na bagunça sobrevivem. Pediram intervenção em 2014, invasão do congresso em 2015, revolução caminhoneira em 2018 e agora acham que a chance real pintou”, afirmou Santos.

Nas hostes do partido presidencial, a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), que chegou a ser cotada para ser vice de Bolsonaro, afirmou que não apoia as manifestações porque elas não têm racionalidade. “O presidente foi eleito para governar nas regras democráticas, nos termos da Constituição Federal. Propositalmente, ele está confundindo discussões democráticas com toma-lá-dá-cá”, afirmou a parlamentar também pelo Twitter.

“O PSL está unido. Só a Janaína que é contra”, minimizou a deputada Kicis. Segundo ela, o MBL foi um importante movimento conservador a atuar contra a gestão petista, mas não são fundamentais para dar sustentação ao Governo. “Eles não são os donos das ruas nem das manifestações da direita”, ponderou. De acordo com essa parlamentar, o protesto servirá para pressionar os parlamentares a aprovarem três projetos governistas: a reforma da Previdência, o pacote anticrime de Sergio Moro e a medida provisória 870 – a reforma administrativa responsável por reduzir de 29 para 22 o número de ministérios.

Enquanto isso no Congresso, o Governo se depara com onze medidas provisórias em vias de perderem seu prazo de validade. Bolsonaro não tem base de apoio: 305 deputados de 21 partidos se declaram independentes e outros 134 parlamentares de seis legendas se dizem opositores. Restam os 54 governistas do PSL e outros 20 que a reportagem não localizou suas lideranças para que elas se manifestassem sobre seus posicionamentos políticos.

Sem esse apoio, Bolsonaro coloca em risco também sua reforma da Previdência. No fim da semana passada, circulou-se entre a classe política a informação de que um novo projeto estaria sendo elaborado pelo parlamento a fim de alterar a proposta do Governo. Rapidamente, o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o secretário de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho, reuniram-se com Maia e com o relator da reforma, Samuel Moreira (PSDB-SP), para tentar aparar quaisquer arestas. “O que houve foi um ruído de comunicação. As alterações poderão ocorrer em cima do projeto apresentado pelo Governo, como sempre foi no parlamento”, minimizou Marinho.


Elio Gaspari: Lula tenta a velha mágica do medo da rua

Manipulador do medo, Lula bota gente na rua e se oferece como pacificador. Desde que entrou na política, Lula mostrou-se um hábil manipulador do medo que o andar de cima tem da rua. Ele põe sua gente na praça, estimula bandeiras radicais e se oferece como pacificador. Quando os radicais passam a incomodá-lo, afasta-se deles. Essa mágica funcionou durante mais de 30 anos, mas mostrou sinais de esgotamento a partir de 2015, quando milhões de pessoas foram para a rua gritando “Fora, PT!”. Ele quis reagir mobilizando o que supunha ser seu povo, mas faltou plateia.

Agora o mágico reapresentou o truque. Ele informa que não tem “razão para respeitar” a decisão do TRF-4. Sabe-se lá o que isso quer dizer. Se é uma zanga pessoal, tudo bem. Pode ser bravata, pois ele cancelou a viagem à Etiópia e entregou o passaporte à polícia. Isso é coisa de quem respeita juízes.

Enquanto Lula é vago em suas ameaças, João Pedro Stédile, do MST, é mais direto: “Aqui vai o recado para a dona Polícia Federal e para a Justiça: não pensem que vocês mandam no país. Nós, dos movimentos populares, não aceitaremos de forma nenhuma que o nosso companheiro Lula seja preso”. A ver.

Em 2015, Lula defendia a permanência de Dilma Rousseff dizendo que era um homem da paz e da democracia, mas “também sabemos brigar, sobretudo quando o Stédile colocar o exército dele nas ruas.” Viu-se que o temível exército de Stédile não existia. Na parolagem catastrófica da época, o presidente da CUT, Vagner Freitas, dizia que “se esse golpe passar, não haverá mais paz no país.” Houve. (A CUT remunerava seus manifestantes. Um deles, imigrante da Guiné, tinha o boné da central, mas não falava português. Estava na Avenida Paulista porque recebera R$ 30.)

Nas recentes manifestações dos Trabalhadores Sem Teto em São Paulo, a via Dutra e a Marginal Pinheiros foram bloqueadas com o incêndio de pneus. Eram mais de 50 pneus em cada bloqueio. Ganha um fim de semana em Pyongyang quem souber como se conseguem 50 pneus sem uma infraestrutura militante e incendiária.

O truque é velho mas, desta vez, apareceram dois personagens surpreendentes. Primeiro veio Gleisi Hoffmann, presidente do PT: “Para prender o Lula, vai ter que prender muita gente, mas, mais do que isso, vai ter que matar gente. Aí, vai ter que matar.” Na quarta-feira, diante da condenação de Lula, ela avisou: “A partir deste momento, é radicalização da luta”.

Gleisi Hoffmann não é uma liderança descartável. Foi Lula quem a colocou na cadeira. Admita-se que ela exagerou na primeira frase e foi genérica na segunda. É nessa hora que entra o comissário Luiz Marinho: “Se condenarem o Lula vão apagar fogo com gasolina. Depois, arquem com as consequências. A toda ação corresponde uma reação. Nós não estamos falando em pegar em armas, mas não vamos aceitar uma prisão para tirar Lula da disputa”.

Marinho é o herdeiro presuntivo de Lula e candidato ao governo de São Paulo. Presidiu o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e a CUT. Foi ministro da Previdência e defendeu correções nos benefícios de aposentados e pensionistas. Confrontado por um protesto que lhe bloqueava o caminho, o motorista do seu carro oficial avançou e feriu três manifestantes. Dias depois, o ministro comentou o episódio: “O pessoal veio agredir o carro”. Em 2008, Marinho elegeu-se prefeito de São Bernardo com uma campanha de barão, orçada em R$ 15 milhões. É um dos comissários petistas que podem ser encontrados com frequência na copa ou na cozinha de Lula. Antes do julgamento, no entristecido café da manhã de Lula com sua família, só havia dois amigos: Marinho e o advogado Roberto Teixeira.

Os sinais dados por Marinho e Gleisi indicam que há um flerte de Lula com os radicais que bloqueiam a Dutra com 50 pneus. Esse poderá ser mais um dos seus erros num processo que começou há muito tempo, quando ele decidiu alisar o pelo de petistas corruptos. Desta vez, tentando se colocar como vítima de um pacto sinistro, Lula queima o filme do coitadinho, inocente e perseguido. Alguns dirigentes petistas já compreenderam o risco e trabalham para aquietar o “Momento Nero” de Lula, até porque esse é um Nero de baile de carnaval.

 


Vinicius Mota: Dilma insufla o ódio nas ruas e vai morar em Ipanema

De cada 100 policiais militares brasileiros, 49 declaram-se pretos ou pardos. Um soldado paulista ganha menos de cinco mínimos mensais. Já protestos de esquerda têm menos pretos e pardos. A renda do militante supera a de uma família chefiada por um soldado PM e, por muito, a de um lar brasileiro típico.

A elite vermelha pretende falar em nome da maioria da população, mas está distante dela. Policiais, desafiados nas ruas a cada manifestação, estão mais próximos da rotina das classes trabalhadoras.

Ninguém se iluda com críticas furiosas da esquerda ao menor sinal de excesso na repressão. A preocupação com a integridade das pessoas —somente das que se chocam com a polícia, nunca das que são vítimas da brutalidade militante— é mero pretexto de uma disputa de poder.

O PT, em autocrítica sincera, arrependeu-se de não ter infiltrado sua ideologia nas Forças Armadas. Lamentou-se por não ter favorecido a ascensão de oficiais alinhados ao partido. A diretriz para as PMs estaduais há de ser a mesma.

Nesse delírio autoritário, elas serão tratadas como inimigas apenas até o momento em que o partido arrebatar-lhes o comando. Depois disso, poderão produzir feridos e cadáveres sem ser incomodadas pelos intelectuais a serviço do futuro.

A esquerda brasileira, da velha e da nova geração, não sepultou a violência política. Nas derivações subletradas do marxismo de hoje, o culto da revolução —o banho de sangue que abriria caminho para o mundo pacificado— deu lugar ao prazer estético da depredação e do confronto provocado com a polícia.

O comitê central circula os alvos: empresários, imprensa, parlamentares, procuradores e juízes são atingidos dia e noite pela acusação de “golpistas”. As tropas de assalto nas ruas entendem o recado e partem para a ação. Dilma Rousseff pronuncia a fatwa e vai morar em Ipanema. (Folha de S. Paulo – 05/09/2016)


Vinicius Mota é secretário de Redação da Folha. Foi editor de Opinião (coordenador dos editoriais) e do caderno ‘Mundo’. Escreve às segundas-feiras.

Fonte: pps.org.br


Cristovam Buarque: Voto pelo Brasil

Há momentos em que votamos com entusiasmo pelo futuro com que sonhamos; em outros, votamos para impedir um futuro que nos assombra. Se o julgamento da presidente afastada, Dilma Rousseff, fosse hoje, eu votaria pelo impeachment, não apenas por razões jurídicas ou só pelo conjunto da obra passada mas, sobretudo, pelos riscos que a volta de Dilma representa para o futuro do Brasil.

Não estou votando nem aderindo ao governo do presidente interino, Michel Temer. O impeachment decorre do descrédito do governo Dilma, da falta de apoio nas ruas e no Parlamento, dos erros cometidos na gestão da economia, da contaminação com a corrupção, dos crimes de responsabilidade.

Decorre, sobretudo, da percepção de que a volta dela ao poder, com o mesmo modelo político-econômico, significaria que o Congresso é conivente com erros, corrupção e ilegitimidades fiscais.

Em agosto de 2015, os senadores João Capiberibe (PSB), Randolfe Rodrigues (Rede), Lasier Martins (PDT), Acir Gurgacz (PDT), Lídice da Mata (PSB) e eu fomos ao Alvorada e entregamos uma carta à presidente Dilma, na qual dizíamos que o Brasil tinha três cenários negativos adiante: a continuação de seu governo, seu impeachment ou a cassação da chapa Dilma/Temer.

Para evitar as dificuldades que seu governo enfrentaria, sem cair no impeachment, sugerimos que reconhecesse seus erros, dissesse que seu partido era o Brasil e pedisse apoio a todos para governar até o fim do mandato. Nossas sugestões não foram consideradas.

Durante o longo processo de impeachment, que o Congresso Nacional seguiu dentro do rigor constitucional, Dilma não indicou o rumo que seria dado por um novo governo seu. Nada disse sobre como construir a necessária base de apoio parlamentar, como acalmar as ruas, que estratégia econômica adotaria para retomar o crescimento, gerar emprego, promover a estabilidade monetária e superar a crise fiscal.

Concentrou-se nos aspectos jurídicos, em chamar de golpistas dois terços dos deputados federais e senadores.

Estou cumprindo um dever que as circunstâncias históricas e meu compromisso com o país e seu futuro me impõem, de acordo com minha análise e consciência.

Carrego a esperança de que o governo sucessor seja capaz de recuperar o equilíbrio de nossas contas, resgatar a credibilidade necessária à volta do crescimento e do emprego, manter os bons projetos sociais, retomar o diálogo com o Parlamento e as ruas e fazer a travessia até 2018.

Tenho consciência de que meu voto provocará incompreensão e decepção em amigos e companheiros, eleitores e leitores, além de desprestígio no exterior. Sinto, entretanto, que esse é um ato necessário para reorientar o futuro do Brasil e, portanto, justifica o sacrifício.

Depois de tantos erros na economia, falsas narrativas do marketing político, tolerância com a corrupção, crimes de responsabilidade e descrédito imposto às forças progressistas, precisamos virar a página de um governo que ajudei a eleger e apoiei em parte de seu longo mandato de 13 anos.

Voto com a esperança de que surja uma nova esquerda dos escombros, sem o vício e o acomodamento dos últimos anos.

É com pesar, mas com a sensação de corrigir rumos, que voto pelo impeachment. Um voto triste, mas necessário. (Folha de S. Paulo – 20/08/2016)

Cristovam Buarque, 72, é senador (PPS-DF) e professor emérito da Universidade de Brasília. Foi governador do Distrito Federal e ministro da Educação (governo Lula)


Fonte: pps.org.br