Rogério Baptistini Mendes

Rogério Baptistini Mendes explica o que ‘desgraçou sistema político’ no Brasil

Pesquisador da Unesp aponta relação de retrocessos com bolsonarismo no país, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de outubro

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O sociólogo Rogério Baptistini Mendes afirma que a radicalidade da concepção de autoridade que empresta sentido ao bolsonarismo está em harmonia com a visão de mundo de certas elites, organizadas politicamente e ocupadas em difundir versão grotesca e ultrapassada de liberalismo econômico. “No universo do mercado livre, sem qualquer regulação, coordenação e planejamento, a anarquia e o caos social surgem e reclamam soluções de força”, afirma, em artigo que produziu para a revista Política Democrática Online de outubro.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de outubro!

A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos, gratuitamente, em seu site. “A ausência de solidarismo e o individualismo exacerbado conduzem à desordem, somente atenuada pela obediência ao soberano, homem da família, cuja moralidade é agir contra tudo e todos, para proteger os seus, os escolhidos, na jornada até a suposta terra prometida”, analisa Mendes. Ele também é pesquisador do LabPol (Laboratório de Política e Governo) da Unesp (Universidade Estadual Paulista),

De acordo com o autor do artigo publicado na revista Política Democrática Online de outubro, uma série de equívocos levou a sociedade até este momento. “A pressuposição de que a justiça se confunde com a democracia, por exemplo, desgraçou o sistema político, a atividade política e, no limite, a cultura pública essencial à construção republicana”, afirma.

O caráter normativo do conceito de justiça, segundo o pesquisador, dificulta verificações empíricas sobre o que seria uma situação justa, em contraste com o governo democrático que evidencia o que descreve. “Na luta contra a corrupção, a conexão entre Direito e Política foi subvertida ao ponto de o Direito se confundir com a força coativa do Estado, e a práxis política ser amesquinhada por certa racionalidade econômica para a qual o não-Estado é o objetivo”, explica o sociólogo.

Segundo o autor do artigo, num cenário atomizado, sem lugar próprio e seguro, os grupos primários, nos quais vige o contato íntimo e direto entre os membros, substituem a integração na comunidade política e levam à construção de uma identidade distorcida, apoiada no ódio contra o diferente e em contínuo transe. “Tudo a ameaça, tudo a aflige”, destaca. “Não há destino comum; apenas inimigos a derrotar. A violência substitui o diálogo, a própria atividade parlamentar perde o sentido, transformando o que deveria ser a ágora moderna numa verdadeira arena, ocupada por tipos aberrantes e incapazes”, continua.

Leia também:

‘Pandemia mostra que cidades não são mundos encapsulados’, diz Alberto Aggio

Por que Bolsonaro cessou política de confronto com Legislativo e Judiciário?

Política Democrática Online mostra falta de transparência no combate à corrupção

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


RPD || Rogério Baptistini Mendes: A negação da política e a degeneração republicana

Bolsonaro explora um republicanismo de aparências, dilacerando os limites entre o público e privado, o conjuntural e o estrutural, o razoável e o absurdo, ampliando ainda mais os desafios que o século apresenta

A ideia de um Estado pervertido por políticos desonestos mobilizou a sociedade civil e iniciou o processo que, paradoxalmente, exacerbou os vícios que depravam o espaço público. A República, em sua moderna concepção, herdada dos norte-americanos, está sob ameaça antes mesmo de se consolidar. Seculares oposições distendidas em uma história de acomodações entre o velho e o novo ganham nova vida e fazem aumentar a insatisfação dos viventes. A democracia representativa, a separação de poderes como prevenção ao autoritarismo e a defesa dos direitos individuais parecem formas vazias. O governo Bolsonaro explora um republicanismo de aparências e amplia os desafios que o século apresenta, dilacerando completamente os limites entre o público e privado, o conjuntural e o estrutural, o razoável e o absurdo.

Seguindo lógica torta, os acontecimentos iniciados com as manifestações populares de 2013-14 transmutaram o que parecia ser a emergência de um protagonismo civil em despotismo fundado na moralidade e na religião, típico das sociedades hierárquicas e iliberais. O novo Brasil, egresso da onda negadora da política e dos políticos, galvanizou situação na qual o expurgo dos viciados – mas não da inclinação para o mal – é tolerado, desde que praticado contra os inimigos. E estes são muitos a povoar o universo da cultura, o sistema de partidos e a vida pública da redemocratização. Pessoas e instituições entram na mira, e os fantasmas de nossa tradição autocrática voltam a incomodar.

É possível observar que a radicalidade da concepção de autoridade que empresta sentido ao bolsonarismo está em harmonia com a visão de mundo de certas elites, organizadas politicamente e ocupadas em difundir uma versão grotesca e ultrapassada de liberalismo econômico. No universo do mercado livre, sem qualquer regulação, coordenação e planejamento, a anarquia e o caos social surgem e reclamam soluções de força. A ausência de solidarismo e o individualismo exacerbado conduzem à desordem, somente atenuada pela obediência ao soberano, homem da família, cuja moralidade é agir contra tudo e todos, para proteger os seus, os escolhidos, na jornada até a suposta terra prometida.

Uma série de equívocos nos trouxe até este momento. A pressuposição de que a justiça se confunde com a democracia, por exemplo, desgraçou o sistema político, a atividade política e, no limite, a cultura pública essencial à construção republicana. O caráter normativo do conceito de justiça dificulta verificações empíricas sobre o que seria uma situação justa, em contraste com o governo democrático que evidencia o que descreve. A primeira, conforme explica o filósofo político Félix E. Oppenheim (1913-2011), reclama o auxílio de definições morais; a segunda, não. E é este o engodo, a verdadeira cilada, que se armou no caminho da cidadania. Na luta contra a corrupção, a conexão entre Direito e Política foi subvertida a ponto de o Direito se confundir com a força coativa do Estado, e a práxis política ser amesquinhada por certa racionalidade econômica para a qual o não-Estado é o objetivo.

Voltando ao passado, a representação idealista da República como uma construção virtuosa, ordenada de cima para baixo, aproxima os que anseiam por justiça dos que exploram seus sentimentos e esvaziam a esfera pública. Num cenário atomizado, sem lugar próprio e seguro, os grupos primários, nos quais vige o contato íntimo e direto entre os membros, substituem a integração na comunidade política e levam à construção de uma identidade distorcida, apoiada no ódio contra o diferente e em contínuo transe. Tudo a ameaça, tudo a aflige. Não há destino comum; apenas inimigos a derrotar. A violência substitui o diálogo; a própria atividade parlamentar perde o sentido, transformando o que deveria ser a ágora moderna numa verdadeira arena, ocupada por tipos aberrantes e incapazes.

É por saber que os homens são o que são que os republicanos modernos criaram o sistema de pesos e contrapesos. Inumano um governo de deuses, falíveis os homens, a República moderna só é possível se operada pela Política ativa e protegida pelo Direito. Este não troca de lugar com aquela, nem pode. É de sua neutralidade e independência que os conteúdos de justiça construídos ao longo da história dependem. O que consideramos avanços civilizatórios não são objeto de negociação. Promotores, magistrados ou mitos não ocupam o proscênio. Entre nós, este pertence à cidadania.

* Sociólogo. Pesquisador do LabPol (Laboratório de Política e Governo da Unesp-FCLCAr). 


‘Na cidadania, mitos se despedaçam’, diz Rogério Baptistini Mendes

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, pesquisador da Unesp diz que ‘bolsonarismo é a versão contemporânea do oikos’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

A polarização civilização e barbárie demarca grupos e sociedades humanas, analisa o sociólogo e pesquisador da Unesp (Universidade Estadual de São Paulo) Rogério Baptistini Mendes, em artigo que publicou na 23ª edição da revista Política Democrática Online , produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojilo Pereira), em Brasília. “No campo da cidadania, a democracia se fortalece e os mitos se espedaçam”, diz ele, em outro trecho.

Clique aqui e acesse a 23ª edição da revista Política Democrática Online!

Para além do caráter evolucionista da classificação, herdado do século 19 europeu, o sentido da polarização está atrelado aos movimentos históricos e sociais emancipadores do homem, sendo o Iluminismo sua síntese. “A construção de uma noção inclusiva e abrangente de humanidade, que daí deriva, não está dissociada das ideias dos antigos, mas as alarga”, diz ele.

O cultivo do espírito pela filosofia encontra o método, as técnicas e a disseminação dos saberes contra a ignorância, segundo o autor do artigo da revista Política Democrática Online. “A razão esclarecida abre seu caminho em meio às trevas e aponta para o reconhecimento mútuo dos seres humanos como portadores do mesmo destino e condição. É o que torna possível a convivência e, repugnante, o assassinato”, analisa o pesquisador da Unesp.

Em outro trecho, Mendes destaca que a subversão da pólis pela lógica binária que apostou na pedagogia do conflito, do “nós contra eles”, se fez acompanhar por patologias de um mercado que nunca integrou e se apresenta como lugar de resistência desregrada, incivilizada. “Neste contexto, a cidade, lugar da política, é hostil, e os espaços são privatizados. Sob o manto de defesa da ordem, da propriedade e dos direitos do ‘cidadão de bem’, o bolsonarismo é a versão contemporânea do oikos”, critica ele.

Mais adiante, o sociólogo diz que a história não é uma marcha ascensional e unilinear, estando repleta de dificuldades e incoerências. “Mas com ela se aprende. A partir dos ensinamentos do passado, da experiência e da apreciação racional, o homem civilizado e verdadeiramente livre se manifesta, constrói o presente e projeta o futuro”, afirma. “Na civis, no espaço público e em relação aos demais, é que a liberdade esclarecida e verdadeiramente emancipadora é exercida”, continua.

Leia também:

‘Dívida da Cinemateca Brasileira chega a R$ 14 milhões’, diz Henrique Brandão

Guerra ideológica aterroriza vítimas de estupros no Brasil, mostra reportagem

O que caracteriza a mentalidade bolsonarista? João Cezar de Castro Rocha responde

‘Lista de perdedores é imensa’, diz Everardo Maciel sobre propostas de reforma tributária

Sergio Denicoli explica como agem ‘robôs militantes’ e aponta final ‘infeliz’

O que está por trás do poder catártico do cinema? Confira o artigo de Lilia Lustosa

Reforma tributária, estupros e paixão por robôs são destaques da Política Democrática

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


RPD || Rogério Baptistini Mendes: Política e cidadania em defesa da civilidade e da democracia

Governo Bolsonaro, como nenhum outro desde a redemocratização, atua despudoramente em função de seu grupo e entrega o destino dos demais membros da sociedade política à própria sorte, avalia Rogério Baptistini Mendes

O substantivo feminino civilidade diz respeito, entre outras coisas, às formalidades que os cidadãos adotam entre si para demonstrar respeito mútuo. Seu oposto, a incivilidade, remete à barbárie, à selvageria. Na obra O processo civilizador (1939), Norbert Elias aponta que civilização costuma designar a consciência do Ocidente em relação a seu tempo, de forma que outros tempos e outros povos, com outros costumes e práticas, seriam não civilizados. A confusão entre cultura e civilização, consolidada na modernidade, chega a seu ápice com a cultura de massas e parece emprestar sentido aos temores manifestados por Alexis Tocqueville quanto aos riscos do despotismo e do insolidarismo de uma massa de homens semelhantes em busca de pequenos prazeres, mas estrangeiros ao destino dos demais.

A polarização civilização e barbárie demarca grupos e sociedades humanas. Para além do caráter evolucionista da classificação, herdado do século XIX europeu, seu sentido está atrelado aos movimentos históricos e sociais emancipadores do homem, sendo o Iluminismo sua síntese. A construção de uma noção inclusiva e abrangente de humanidade, que daí deriva, não está dissociada das ideias dos antigos, mas as alarga. O cultivo do espírito pela filosofia encontra o método, as técnicas e a disseminação dos saberes contra a ignorância. A razão esclarecida abre seu caminho em meio às trevas e aponta para o reconhecimento mútuo dos seres humanos como portadores do mesmo destino e condição. É o que torna possível a convivência e, repugnante, o assassinato.

Do latim civis, civilização faz referência à cidade - para os gregos, lugar da vida política em oposição ao lugar da vida econômica. A distinção entre pólis (cidade) e oikos (núcleo econômico familiar) não deixa de iluminar a sensação de barbárie que acomete quem vive no Brasil. O governo federal, como nenhum outro desde a redemocratização, atua despudoramente em função de seu grupo e entrega o destino dos demais membros da sociedade política à própria sorte. Os exemplos abundam numa escala que vai do ridículo ao grotesco. E o que parece nonsense é, na verdade, visão de mundo derivada de um estado de coisas no qual negacionismo científico, violência contra adversários políticos, devastação humana e ambiental são interdependentes e complementares.

O processo que conduziu ao alargamento de perspectivas em direção ao Estado Democrático e sua dimensão civilizatória, contraditoriamente, amesquinhou as expectativas do brasileiro médio. Educado para o consumo, hoje ele confunde forma e conteúdo, substitui o longo pelo curto prazo, exagera a dimensão utilitária da vida e reduz a cultura ao entretenimento. Sua conduta é a contraparte do que lhe é cobrado em termos de repressão e desejos insatisfeitos. Numa sociedade na qual populistas de esquerda e de direita prometem e não tem como entregar, o senso de justiça termina subvertido, e a noção de público e de comum se esvanece diante das patologias do ódio e do ressentimento. Do “diferente de tudo que está aí” para o bolsonarismo, o caminho foi trilhado continuamente.

A subversão da pólis pela lógica binária que apostou na pedagogia do conflito, do “nós contra eles”, se fez acompanhar por patologias de um mercado que nunca integrou e se apresenta como lugar de resistência desregrada, incivilizada. Neste contexto, a cidade, lugar da política, é hostil, e os espaços são privatizados. Sob o manto de defesa da ordem, da propriedade e dos direitos do “cidadão de bem”, o bolsonarismo é a versão contemporânea do oikos. Na narrativa, o ambiente familiar, no qual cada um é o senhor, uma autoridade máxima, concorre com o público e o esvazia de sentido, transformando o país num verdadeiro acampamento de estranhos unificado em torno do messias com o qual se identificam.

A história não é uma marcha ascensional e unilinear, estando repleta de dificuldades e incoerências. Mas com ela se aprende. A partir dos ensinamentos do passado, da experiência e da apreciação racional, o homem civilizado e verdadeiramente livre se manifesta, constrói o presente e projeta o futuro. Na civis, no espaço público e em relação aos demais, é que a liberdade esclarecida e verdadeiramente emancipadora é exercida. Neste campo, que é o da cidadania, a democracia se fortalece e os mitos se espedaçam.

*Rogério Baptistini Mendes é sociólogo, pesquisador do LabPol -Laboratório de Política e Governo das Unesp/FCL-CAr.