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Ricardo Rangel: Profecia autorrealizável

Muitos democratas têm se manifestado no sentido de que uma “terceira via” não tem chance e que um segundo turno entre Bolsonaro e Lula é inevitável. Ato contínuo, elogiam Lula, que, afinal, “é um democrata” e não tem por objetivo desmontar por completo as instituições, como o supremo mandatário vem fazendo.

Lula se assemelharia ao barítono da ópera da anedota, que, brutalmente vaiado, alerta: “Não gostaram do barítono? Esperem para ouvir o tenor!”. O barítono Lula parece determinado a mostrar que não desafina, e, incansável, perambula por Brasília, conversa com todo mundo, lança pontes ao centro, busca vacinas, produz um discurso com começo, meio e fim.

Diante da insuportável cacofonia produzida pelo tenor que ocupa o Alvorada, Lula surge com a maviosa voz de um Fischer-Dieskau redivivo. Mas quão afinado com a democracia está, de fato, o barítono Luiz Inácio?

Foi Lula quem criou a polarização e o ódio político: o “nós x eles” que impede o país de se reconciliar consigo mesmo começou contra Collor em 1989, intensificou-se no mensalão, chegou ao paroxismo na Lava-Jato e no impeachment de Dilma; o hábito petista de chamar qualquer não petista de fascista, racista, homofóbico etc. perdura até hoje. Fake news foram usadas para assassinar a reputação de Marina Silva em 2014, e foi Lula que iniciou a campanha de desmoralização e descredibilização da imprensa (que os petistas chamam de “mídia golpista”).

O esquema de corrupção centralizada, administrada pelo Planalto, não foi algo que “sempre existiu”, como dizem os petistas. Foi algo novo: um método de governo que comprava em dinheiro vivo o apoio dos parlamentares e, assim, atentava contra um dos alicerces da democracia, a separação dos poderes, (o tratoraço de Bolsonaro é parecido). E o dinheiro desviado foi também para a campanha eleitoral, reelegendo o PT mais três vezes, atentando contra outro pilar da democracia, a alternância no poder.

“Não se deve perder de vista que, quando se escolhe o menor entre dois males, o que se escolhe é um mal”

Afora os ataques à democracia, ainda houve a “nova matriz econômica”, que provocou um descalabro econômico. E como Lula afirma que o mensalão e o petrolão nunca existiram e atribui o desastre econômico a Temer, é lícito supor que, eleito, vá fazer tudo igualzinho.

Admita-se que, apesar de tudo, Lula continua sendo melhor do que Bolsonaro, mas não se deve perder de vista que, quando se escolhe o menor entre dois males, o que se escolhe é um mal. Então é bom examinar bem para ver se essa escolha é mesmo inevitável. E, por enquanto, não é.

O Brasil é um país onde terremotos políticos se multiplicam — há pouco mais de um mês, Lula não era elegível, a CPI da Covid não existia e nada se sabia sobre o tratoraço, por exemplo —, e ainda faltam dezessete meses para a eleição: há muita água para rolar.

Quem vaticina que um segundo turno entre Lula e Bolsonaro é inevitável não está fazendo análise política, está contribuindo para criar uma profecia autorrealizável: se aqueles que não querem um segundo turno entre os dois polos acreditarem que ele é inevitável, assim será.

Não é hora de crer em vaticínios e inevitabilidades, é hora de criar alternativas.

Publicado em VEJA de 19 de maio de 2021, edição nº 2738

Fonte:

Veja

https://veja.abril.com.br/blog/ricardo-rangel/profecia-autorrealizavel/


Ricardo Rangel: Que autocrítica é essa?

A presunção do PT e de suas linhas auxiliares (como o PSOL, onde está Chico) é a principal responsável pela eleição de Bolsonaro

Anteontem, Chico Alencar, ex-deputado federal pelo PT e pelo PSOL, publicou neste espaço o artigo “Desafios do PT aos 40 anos”, sobre as perspectivas do Partido dos Trabalhadores.

Chico afirma que, antes de 1980, os partidos eram “ajuntamentos de interesses aristocráticos”, mas que o PT “veio das praças para os palácios” e “chegou criticando experiências autoritário-burocráticas do ‘socialismo real’”. O PT de fato nasceu com a promessa de ser um partido democrático, mas até que ponto a cumpriu?

Em 1985, as forças progressistas apoiavam Tancredo Neves, um democrata, mas o PT, amuado com a derrota das Diretas Já, recusou-se a votar, preferindo o risco da vitória de Paulo Maluf, candidato da ditadura. E, “democraticamente”, expulsou os três petistas que votaram em Tancredo.

O PT votou contra a Constituição “cidadã” que ajudou a escrever — e quase não a assinou. Em 1989, contra Collor, o PT “democraticamente” cindiu os brasileiros entre “nós” (os virtuosos) e “eles” (a direita, os canalhas, a elite branca de olho azul, os coxinhas, os fascistas), periodicamente reeditando a polarização.

O PT combateu o Plano Real, recusou uma aliança natural com o PSDB, colou no partido a etiqueta “direita”, fez uma oposição sistemática ao governo FHC. Lutou pelo impeachment de todos os presidentes não petistas, e não criou liderança relevante além daquele que, até da cadeia, é o chefe supremo. O partido “dos trabalhadores” vota contra a reforma do Estado e a favor dos privilégios das corporações (a nova aristocracia), enquanto defende o “socialismo real” de Cuba e Venezuela e advoga o “controle social” da mídia, dita “golpista”.

Segundo Chico, ao chegar ao poder, o PT “fez alianças desconsiderando fronteiras éticas, mais pragmáticas que programáticas”, e falhou na “construção de uma ‘nova gramática’ do poder, inclusive na formulação de uma política econômica alternativa”.

Os defeitos do PT vêm de antes da chegada ao poder (resultante, em parte, do apoio do PTB, comprado com dinheiro vivo), mas Chico é um tanto injusto em sua “crítica”. Corrupção costuma ser coisa desorganizada, cada um roubando como pode; já corrupção planejada, operada de forma centralizada pelo Palácio do Planalto, com mesada para parlamentar e objetivo estratégico, é uma “‘gramática’ do poder” que “nunca antes neste país” se viu. Já a “nova matriz econômica” — que atirou o país na maior recessão de todos os tempos e criou desemprego recorde — é, sem dúvida, uma “política econômica alternativa”.

O ex-deputado afirma que “a direita viralizou a falsa ideia de que a corrupção sistêmica, estrutural e antiga de 500 anos tinha sido inaugurada pelo petismo”, e que, com isso, “parte da população passou a perceber o PT como um partido igual aos demais”. Pelo jeito, é errado achar que quem rouba como os demais é igual aos demais. Mas isso de pôr o Legislativo na folha de pagamento do Executivo, num atentado à separação de Poderes e à democracia, não tem 500 anos: foi inaugurado pelo petismo, mesmo. Chico é um homem íntegro, mas não teria saído do partido por uma banalidade.

Chico alerta que “a boa tradição [da autocrítica] da esquerda precisa ser revitalizada”, e isso é “tão importante quanto constituir uma frente democrática, progressista e antifascista”. O problema é que a esquerda brasileira, quando faz autocrítica, sempre chega à conclusão de que não fez nada muito errado e segue, altaneira, no mesmo caminho. Ora, se, como diz Chico, a corrupção petista é “antiga de 500 anos” e a política econômica não foi “alternativa”, que erros é preciso reconhecer? De comunicação?!

Enquanto a esquerda não desapegar de Lula e reconhecer que o mensalão e o petrolão foram monstruosidades e que a política econômica petista foi catastrófica, não haverá “frente democrática, progressista e antifascista”.

A presunção do PT e de suas linhas auxiliares — como o PSOL, onde está Chico — é a principal responsável pela eleição de Bolsonaro. Que, com esse tipo de “autocrítica”, será reeleito. O capitão agradece.

*Ricardo Rangel, hoje sem partido, foi candidato a deputado federal pelo Partido Novo em 2018


Ricardo Rangel: Banzai! Banzai! Banzai!

É bom Eduardo pacificar o partido rapidamente: se Joice e Waldir depuserem na fúria em que estão, o estrago pode ser grande

‘A crise viajou”, dizia FHC quando Sarney saía do país. Hoje o presidente viaja, mas deixa os filhos, e leva o twitter, de modo que a balbúrdia no PSL prossegue. Do outro lado do mundo, Bolsonaro virou o jogo e emplacou o filho líder do partido. No dia seguinte, bradou “Banzai! Banzai! Banzai!” num tuíte.

“Banzai” é uma interjeição que significa “dez mil anos” e costuma ser usada como saudação ao imperador ou como grito de guerra desesperado — como faziam os kamikazes na Segunda Guerra. Não ficou claro por que Bolsonaro a empregou três vezes. Talvez, além de saudar Naruhito, tenha declarado dois ataques desesperados, a Luciano Bivar e ao peixe cru.

O peixe cru venceu, e o presidente retirou-se, derrotado, para comer miojo no quarto do hotel. A saudação a Naruhito foi pelo ralo depois de Bolsonaro contar que preferiu miojo ao banquete (a vingança nipônica foi instantânea como o macarrão: miojo, uma versão vagabunda, para quem não tem dinheiro nem paladar, do “lamen”, é invenção de japonês). Quanto a Bivar, ninguém sabe no que vai dar.

Ou, vai ver, Bolsonaro confundiu “Banzai!” com “Tora! Tora! Tora!”, o código usado pelos japoneses para avisar do sucesso do traiçoeiro bombardeio a Pearl Harbor (“tora” significa “ataque relâmpago”), e estava comemorando o ataque relâmpago e traiçoeiro (segundo os bivaristas) que instalou Zero Três na liderança. Jair revelou que a tarefa do herdeiro é “pacificar” o PSL.

“Para o bem do povo e felicidade geral da nação, diga ao povo que fico”, anunciou, da tribuna, o príncipe-regente, digo, deputado. Magnânimo, Eduardo abriu mão da mais alta colocação diplomática do país para tornar-se líder do PSL — posto que, como se sabe, é importantíssimo para a República.

Conciliador, Zero Três anunciou que não haverá retaliação, e iniciou a pacificação destituindo 12 vice-líderes. Explicou que vai apenas retomar o status quo — aprendeu o significado de “status quo” com o Marechal Lott, que, em 1955, devolveu o país “aos quadros constitucionais vigentes”. Ou com o documentário em que diz ter estudado o papel da Princesa Isabel na Independência. Indagado sobre a marca de sua gestão, respondeu que será a paz. Pelo jeito, a paz dos cemitérios.

Abordado pela imprensa após a primeira reunião (entrou mudo, saiu calado) como líder, Zero Três demonstrou que tem preparo e fôlego para o cargo: correu, desesperado, três anexos com obstáculos. Rocha Loures correu para esconder o dinheiro; Witzel, para comemorar a morte do terrorista; Eduardo, para ocultar suas ideias (ou a falta delas): as personagens mudam, as corridas insólitas permanecem.

A oposição enfim acordou e convidou Joice Hasselmann e o Delegado Waldir para a CPMI das Fake News. Waldir é o ex-líder, deposto por Eduardo, que se referiu a Jair Bolsonaro como “vabagundo” e “essa porra”, afirmou ter uma gravação capaz de derrubá-lo e informou que não se subordina a “nenhum presidente”. Ao ouvir o áudio do Queiroz (que diz ainda ter influência com os Bolsonaro e será convidado para a CPMI também), Waldir entendeu que “em nenhum momento a rachadinha parou” e disparou: “ao fingir que a corrupção não ocorre, é visível que ele (Bolsonaro) se afastou das propostas de campanha”.

Ex-líder do PSL no Congresso, Joice foi destituída pelo presidente, e o acusa de ingrato. Diz que Eduardo é canalha, picareta, moleque e zero à esquerda (Eduardo é zero à esquerda e três à direita), e assinou pedido para destituí-lo do comando do PSL de São Paulo. Afirma que os filhos de Bolsonaro controlam “milícias digitais” com 1.500 perfis falsos para difamar e disseminar notícias falsas, e que se produz material “dentro do gabinete do presidente”. Promete dar detalhes na CPMI.

É bom Eduardo pacificar o partido rápido: se Joice e Waldir depuserem na fúria em que estão, o estrago pode ser grande. Melhor Jair se preparando para bradar “Banzai!” novamente.

E, enquanto isso, o Supremo Tribunal Federal vai demonstrando que Stefan Zweig, que disse que o Brasil é o país do futuro, estava certo, mas que mais certo estava De Gaulle, que esclareceu que continuaremos sendo o país do futuro indefinidamente. “Dez mil anos!”, diria Naruhito.

*Ricardo Rangel é empresário