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Wilson Gomes: Precisamos falar sobre o “lugar de fala”

Ferramentas conceituais na luta política

Em política, cada lado se dota das ferramentas conceituais que consegue imaginar, desde que funcionem com eficiência. “Funcionar”, no caso, significa servir a propósitos que favoreçam quem o emprega: aglutinar os seus, reforçar laços identitários, constranger oponentes, oferecer justificativa moral para as pretensões do grupo, atrair simpatia ou compreensão geral, mobilizar para a ação política, dentre outros.

Em política, cada lado tentará convencer todos de que as suas ferramentas conceituais preferidas são teses objetivas sobre o funcionamento do mundo, são evidências incontornáveis sobre fatos e não instrumentos para os propósitos da tribo. É o que a direita fez com “politicamente correto”, ferramenta usada para desqualificar comportamentos que os liberais simplesmente chamaríamos de “respeito e consideração pelos outros”, principalmente por minorias socialmente estigmatizadas. E é o que a extrema-direita agora faz com ferramentas-conceitos como “ideologia de gênero”, “comunismo”, “doutrinação ideológica” e “gayzismo”. Para os partidários, não são o resultado de interpretações discutíveis de fatos, não são hipóteses arriscadas e não testadas, orientadas por preferências e conveniências. Não, são fatos objetivos e incontestáveis, a dura realidade que o outro lado não aceita e não pode aceitar apenas porque iria desmascarar o que ele realmente é.

A esquerda também tem as suas ferramentas conceituais de cunho ideológico, forjadas para os propósitos da luta política. Dentre estas, destaca-se por sua rápida assimilação e extrema adesão, principalmente por parte da assim chamada esquerda identitária, a ideia de “lugar de fala”. A este ponto, importam pouco as intenções originárias do conceito, como crítica às pretensões universalistas dos discursos sociais, como revelação de que todo discurso é situado e traz consigo as marcações, de toda natureza, que configuram a posição social de quem fala. Há pilhas de intuições conceituais dessa natureza abandonadas ou pouco frequentadas por quem estuda ou pensa a sociedade. O conceito foi retirado do uso contido e quase obscuro das pessoas que só frequentam livros e ideias, e se tornou um sucesso de público apenas quando foi transformado em ferramenta da luta política. O que realmente importa, portanto, é o seu emprego como parte dos recursos ideológicos de um dos lados da disputa política.

Nesse sentido, falar de deturpação ou distorção do conceito por aqueles que o empregam faz pouco sentido, vez que dificilmente se pode separar significado de uso. Filosoficamente, não faz sentido opor conceito e uso. No máximo, podemos dizer que o conceito original de “lugar de falar” foi em sua maior parte reconfigurado como um novo conceito, este, sim, de amplo uso e enorme gama de aplicação na luta política.

E “lugar de fala” tem sido uma ferramenta largamente usada nos últimos tempos, tanto para reforçar os vínculos identitários de certos estratos da esquerda quanto para mobilizar e engajar para a luta política, tanto para orientar a ação política dos mobilizados e engajados como para oferecer justificativas de superioridade moral para ação praticada. Nestes ambientes, “lugar de fala” é tanto um discurso sobre direitos de autorrepresentação por parte de minorias (“nós podemos falar em nosso nome e de nossas coisas”), quanto uma reivindicação de reconhecimento da autoridade de uma determinada minoria para falar sobre determinados temas e “protagonizar” determinadas ações. Mas, da reivindicação de falar por si mesmos, de não ser reduzidos perenemente à condição de objeto ou assunto, chegou-se rapidamente à reivindicação de superioridade absoluta da autorrepresentação, à interdição da fala que não se situa na minoria e à inspeção constante para verificar se essas duas premissas são integralmente cumpridas em todas as formas de expressão artísticas, científicas e políticas. Como tão bem formulou o professor Luis Felipe Miguel esta semana em seu perfil no Facebook, “nos combates políticos, ‘lugar de fala’ surge casado com a percepção extrema de um privilégio epistêmico dos dominados. (…) O acesso à verdade depende da posição social e de nada mais”.

Como ferramenta ideológica, motiva e justifica, por exemplo, inspeções nas listas de bibliografias para verificar a proporção de autores por seu “lugar de fala”, independentemente de quaisquer outros critérios. Assim como se conhecem fiscalizações desta natureza – com o consequente lavramento de autos de infração e punições instantaneamente aplicadas por meio agressões, bloqueios e impedimentos – em peças de teatro e em debates políticos públicos. A militância do “lugar de fala” tornou-se, crescentemente, bruta, intolerante e agressiva.

Contra o lugar de fala

Nesse contexto, considero que faça sentido os oito argumentos abaixo, contra a ferramenta ideológica do “lugar de fala”:

1-“Lugar de fala” é o novo fundamentalismo político. Refúgio de dogmáticos e intolerantes, que, da forma mais autoindulgente possível, concedem-se prerrogativas de superioridade moral.

2-“Lugar de fala” é um espaço privilegiado de exigência de que os outros calem a boca. É o lugar do “cale-se” aplicado a todos que não são como eu. Lugar de falar é ao mesmo tempo um lugar de calar – eu falo, você cala.

3-“Lugar de fala” é o álibi perfeito para reivindicações de monopólio de fala. Só eu e os meus temos a fala autorizada e os direitos de explorá-la.

4-Como em todo sistema monopolista, o “lugar de fala” provê ao falante certificado um modelo de negócios. Como somos poucos os que têm direito de exploração desse produto, a raridade agrega enorme valor aos biscoitos finos que eu forneço e a, mim, naturalmente, seu fabricante autorizado. Encontrado um bom nicho, pode-se ganhar dinheiro, prestígio ou celebridade com o monopólio da fala autorizada. E há muitos faturando com isso.

5-A artimanha principal das reivindicações do “lugar de fala” consiste em punir ou recompensar indivíduos singulares em virtude da classe de indivíduos em que eles se situam. O seu direito de falar é transferido para mim, porque o coletivo onde você se situa deve historicamente ao coletivo onde me situo. A sua classe oprime a minha, mas quem deve pagar é você, independentemente do que você fale ou seja. A reivindicação de que você deve calar a boca, porque as pessoas da sua espécie já falaram demais, e me deixar falar sozinho, porque as pessoas da minha espécie não tiveram chances históricas de falar, é um truque para disfarçar o meu autoritarismo e a minha intolerância.

6-O argumento em defesa do pluralismo e da consideração pelas diferenças de identidades e pontos de vista não precisa do conceito de “lugar de fala” para ser defendido. Ao contrário, a reivindicação de “lugar de fala” serve hoje principalmente para que os patrulheiros da identidade verifiquem se o seu monopólio está sendo respeitado. Os “fiscais de atendimento às normas sobre monopólio do lugar de fala” são a nova moda na universidade, nos debates públicos e nas artes. A ideologia do “lugar de fala” virou adversária do pluralismo, das diferenças e da tolerância.

7-Alimenta os direitos de reivindicação de “lugar de fala” a ideia de que expressar ideias, fazer pesquisa ou discutir problemas sociais são atividades direta e inextrincavelmente ligadas à “representação” de uma espécie ou de um coletivo. Propriedades individuais relacionadas a conhecimento, competência, domínio do assunto, inteligência ou boa-fé são secundárias em face do que realmente importa, que é a que gênero ou espécie identitária você pertence e cujo direito de representar você pode reivindicar. Então, não se trata apenas de representação, mas de autorrepresentação. Só está habilitado a falar quem está autorizado a representar, ficando cancelado todas as outras formas tradicionais de competência.

8-A esquerda criou e alimentou as teses fundamentais do “lugar de fala” e ainda cerca os reivindicadores do monopólio do falar e do mandar calar com extrema complacência. Paradoxalmente, o “lugar de fala” é usado de forma eficiente apenas contra a esquerda. A extrema-direita, que agora a sitia política e socialmente, é imune aos constrangimentos das reivindicações do lugar de falar e, antes, usam tais reivindicações para as ridicularizar e para reforçar o próprio ponto de vista. O “lugar de fala” se transformou em mais uma das formas com que a esquerda se autodevora.

WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


Alvaro Bianchi: O Maquiavel de Mussolini

No início do século 20, as correntes nacionalistas italianas que depois confluiriam no fascismo procuraram reivindicar as ideias de Nicolau Maquiavel

Como um expoente da cultura nacional e um teórico do Estado-força. O intelectual que deu forma a essa operação foi Francesco Ercole, futuro reitor da Universidade de Palermo e ministro da Educação da Itália fascista. Em seu livro de 1917, Lo Stato nel pensiero di Niccolò Machiavelli [O Estado no pensamento de Nicolau Maquiavel], Ercole inseria as ideias do secretário florentino no próprio processo de construção do Estado italiano, apresentando-o, desse modo, como um precursor do elitismo e do nacionalismo.

A chave dessa primeira leitura de Ercole estava na redução que promovia do conceito maquiaveliano de virtù à energia da vontade e à força, consideradas substâncias vivas do Estado. O futuro professor de Palermo achava, entretanto, necessário distinguir uma virtù passiva, capaz de fundar e reordenar o Estado, de uma virtù ativa, a qual dá forma ao povo e à coletividade, permitindo, desse modo, manter o Estado. De acordo com Ercole, essa virtù ativa não seria atributo coletivo, e sim individual, “isto é, de apenas um indivíduo, ou, no máximo de um número restrito de indivíduos”.

O caráter fortemente elitista e autoritário desse discurso ficaria evidente nos escritos que Ercole publicou na década de 1920 na revista Politica, dirigida pelos fascistas Alfredo Rocco e Francesco Coppola, depois reunidos no livro La politica di Machiavelli, de 1926. Nesses textos, Maquiavel era mobilizado para combater o liberalismo individualista e alinhar-se com uma concepção orgânica da política na qual os interesses individuais e egoístas seriam subordinados a uma vontade moral encarnada no Estado.

Os artigos de Ercole influenciaram diretamente Benito Mussolini, o qual desejou escrever uma tese de láurea que deveria ser apresentada durante uma planejada homenagem na qual receberia o título de doutor honoris causa da Universidade de Bolonha. Ao encontrar Ercole, então reitor da Universidade de Palermo, em maio de 1924, il duce o abraçou e contou seu projeto: “Estou estudando os escritos sobre Maquiavel que você publicou na Rivista Politica. São muito úteis para a tese que estou preparando”. Muito embora o chefe de governo tivesse pensado até no título – Vademecum per l’uomo di governo [Vademecum para o homem de governo] –, a tese não foi finalizada.

Seu prefácio, entretanto, foi publicado pela revista Gerarchia em abril de 1924, com o título Preludio al Machiavelli. Mussolini pretendia encontrar em Maquiavel um contemporâneo e um conselheiro do fascismo htttps://revistacult.uol.com.br/home/tag/fascismo). Do florentino, il duce destacava sua forte percepção negativa a respeito da natureza humana: “homens, segundo Maquiavel, são tristes, mais afeiçoados às coisas que ao próprio sangue, prontos a mudar sentimentos e paixões”. Essa natureza egoísta tornaria o povo incapaz de produzir uma ordem política. Mussolini lia Maquiavel com os olhos de Gustave Le Bon, para quem a multidão de indivíduos “inconscientes e brutais” é capaz de destruir civilizações mas não de construir uma. Esse juízo, para o autor do Preludio, continuaria válido contemporaneamente.

Desse diagnóstico da natureza humana, Mussolini deduzia uma oposição entre o povo e o príncipe, os indivíduos e o Estado. Se uma multidão de indivíduos submetidos às próprias paixões produziria a desordem e o caos, caberia ao Estado promover a ordem e acabar com a anarquia. Os indivíduos tenderiam “a desobedecer às leis, a não pagar os impostos, a não fazer a guerra”. O Estado deveria obrigá-los a agir de modo adequado. O conceito de política que organizava o Preludio inspirava-se nas ideias de Francesco Ercole e não ocultava seu caráter autoritário: “política é a arte de governar os homens, isto é, de orientar, utilizar, educar suas paixões, seus egoísmos, seus interesses, em vista de questões de ordem geral”, escrevia il duce. Para Mussolini, a ideia de que o poder do Estado é uma emanação livre da vontade do povo, pedra angular do liberalismo, não passava de ficção e ilusão. Sem o Estado, nem sequer existiria esse ente denominado povo, apenas uma multidão de indivíduos.

O Preludio al Machiavelli era um prefácio à fascistização do regime político italiano, o que de fato ocorreria poucos meses depois. A abertura do texto já expunha seu argumento. Mussolini narrava ter conhecido uma pessoa das legiões negras de Ímola, a qual possuía uma espada com um dístico atribuído a Maquiavel: “Com palavras não se mantêm os Estados”. A oposição entre o povo e o Estado encontraria solução apenas no uso da força e da coerção: “É, portanto, imanente […] o dissídio entre a força organizada do Estado e a fragmentação dos indivíduos e dos grupos. Regimes exclusivamente consensuais nunca existiram, não existem, provavelmente nunca existirão”.

A consolidação do fascismo
O Preludio mussoliniano reabriu a polêmica sobre o legado de Maquiavel na Itália. A qualidade da literatura produzida nesse contexto variou muito. Giuseppe Prezzolini, por exemplo, concluiu seu livro Vita di Nicolò Machiavelli fiorentino (1927), transformando seu personagem principal em um contemporâneo, o qual teria procurado “dar bons conselhos a [Francesco] Crispi, do qual gostava de seu espírito autoritário e de seus lances arriscados, mas por quem nem sempre foi ouvido.

Preparou para [Antonio] Salandra a declaração de guerra contra a Áustria e acompanhou [Benito] Mussolini em sua Marcha sobre Roma”. No mesmo ano, Luigi Russo escreveu duas notas sobre Maquiavel, nas quais, embora não citasse Mussolini, criticava explicitamente as interpretações dos fascistas Giovanni Gentile e Francesco Ercole. Em 1931, foi a vez de Russo publicar seus Prolegomeni a Machiavelli e uma antologia de escritos maquiavelianos que organizou. O sucesso editorial dos textos de Russo despertou a ira das autoridades fascistas e o próprio Francesco Ercole, na época ministro da Educação, proibiu a divulgação daquela antologia nas escolas italianas.

Nesse ínterim que vai do Preludio de Mussolini aos Prolegomeni de Russo, o regime fascista havia se consolidado. Em 10 de junho de 1924, o deputado socialista Giacomo Matteotti foi sequestrado e assassinado por uma squadra fascista. Seu corpo foi encontrado apenas em 16 de agosto. O envolvimento de Mussolini no episódio era evidente. Seguiu-se uma grave crise política, que pôs o governo fascista em sério risco. Em meio à intensa polêmica que envolveu o chamado delitto Matteotti, Mussolini acabou por rejeitar o título de honoris causa. Todas as solenidades já haviam sido, entretanto, preparadas pelas autoridades universitárias e o diploma emitido, mas ele nunca foi assinado nem entregue ao homenageado.

Apenas a partir de 3 de janeiro de 1925, com seu discurso no Parlamento, Mussolini retomou o controle da situação e lançou a contraofensiva, encerrando a crise política que se arrastava desde o assassinato de Matteotti. Mais tarde, com as chamadas “leis fascistíssimas” de 1925 e 1926, promoveu uma enorme restrição das liberdades políticas e civis, consolidando um novo regime fascista e mandando para a cadeia seus opositores. Com o novo regime, realizava-se a virtù ativa, preconizada por Ercole, e a multidão de indivíduos era finalmente submetida à força do chefe de Estado.

A ideia de um Maquiavel fascista é evidentemente anacrônica. A ideia de estados (stati, no original, com letra minúscula), que abre O príncipe, é fortemente pré-moderna e muito mais ambígua do que Mussolini dá a entender. E, se o florentino em vários momentos de sua obra identificou o estado com o príncipe, ele também o identificou com o povo que governa na República – em especial com o povo que governava sua amada Florença, antes de os Medici a subjugarem. Mas o Maquiavel de Mussolini não poderia ser popular. Para tornar-se partidário do fascismo, antes foi preciso que ele fosse convertido à força em elitista autoritário.

*Alvaro Bianchi é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor livre-docente da mesma instituição.