rebeca andrade
O Brasil que vale ouro
Olimpíadas evidenciaram um país de gente miscigenada, talentosa, simples, obstinada e resiliente, que dá duro para conquistar seu espaço
Ana Cristina Rosa / Folha de S. Paulo
Acompanhei os resultados do Brasil nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 com empolgação. Não só porque o país fez a melhor campanha olímpica de todos os tempos, com a conquista de 21 medalhas, mas especialmente pelo fato de boa parte dessas condecorações carregar enorme simbolismo.
O Brasil que vale ouro é um país de gente miscigenada, talentosa, simples, obstinada e resiliente, que dá duro para conquistar seu espaço. É diverso, criativo, cativante e não se cansa de perseguir a realização de sonhos —sejam eles tingidos de dourado, de prata ou de bronze.
O Brasil que vale ouro respeita as regras do jogo, aceita derrotas e insiste em contradizer a falácia da meritocracia porque sabe que mérito e oportunidade precisam andar juntos.
Nesse quesito, a ginasta Rebeca Andrade é inspiração. A jovem que caminhava duas horas para ir ao treino quando a mãe não tinha dinheiro para passagem emocionou e fez história.
Ao conquistar a primeira medalha do país na ginástica artística feminina em olimpíadas, com a prata no individual geral, e o primeiro ouro da modalidade, no salto, tornou-se também exemplo de que meninas negras podem ser o que quiserem, subvertendo a lógica perversa do racismo sistêmico.
Como lembrou com propriedade, em lágrimas, a ex-ginasta Daiane dos Santos após o ouro de Rebeca, “durante muito tempo, disseram que as pessoas negras não poderiam fazer alguns esportes.” O absurdo não poderia ter sido desmascarado de maneira mais primorosa, unindo técnica e graça.
Para um país que não investe na formação esportiva, os resultados da delegação brasileira foram excelentes. E até quem não conquistou medalha está de parabéns. Afinal, nenhum atleta de alto rendimento deveria ter de treinar num terreno baldio.
Se foi possível obter resultados positivos a partir de casos individuais de superação, do que o Brasil seria capaz se o esporte fosse incentivado e tratado como ferramenta de inclusão social no país.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ana-cristina-rosa/2021/08/o-brasil-que-vale-ouro.shtml
Rebeca Andrade, a exceção em um país que desvaloriza o esporte
Ginasta que conquistou ouro e prata na Olimpíada de Tóquio e virou representante do Brasil no encerramento dos Jogos se consagrou graças a treinadores engajados e a um projeto público eficaz
As lembranças de quem viu a ginasta Rebeca Andrade dar seus primeiros saltos são de uma menina “sempre alegre”, de “uma criança muito feliz” que não sofria as oscilações de humor que muitos atletas acabam passando. “O que vimos nos últimos dias é o jeito dela. Sempre foi natural, não é forçado”, explica Oscar Fagundes de Oliveira Júnior, de 56 anos, professor de ginástica artística de Rebeca em 2009. “Ela acabava de almoçar e ficava brincando aqui, nunca parava”, completa. Mas por traz dessa leveza que deu a Rebeca a medalha de ouro no salto e a prata no individual nos Jogos Olímpicos de Tóquio está uma história de muito esforço pessoal e superação, marcas de um país desigual e com poucas oportunidades, mas também de uma política pública que funcionou e guiou a ginasta até o pódio.
Nascida em Guarulhos, Rebeca é uma dos sete filhos de Rosa Santos, que trabalhava de empregada doméstica e os criou sozinha. Quando tinha seis anos, foi levada por uma tia ao ginásio municipal Bonifácio Cardoso, onde a Prefeitura de Guarulhos possui um programa voltado para a formação de novos ginastas. “Cida trabalhava aqui na cozinha e havia trazido Rebeca para brincar. Mas pediu que eu desse uma olhada nela porque achava que tinha jeito”, recorda Mônica Barroso dos Anjos, de 49 anos, técnica da equipe de ginástica de Guarulhos e árbitra internacional. Era o período de inscrição para teste de novos atletas. Mônica logo viu futuro na menina “magra e forte, com a musculatura já definida”. Pediu para ela correr, ir para a barra, dar estrelinha... Era “a futura Daiane dos Santos”.PUBLICIDADE
Rebeca então passou a fazer parte do programa de Iniciação Esportiva da Prefeitura, que atende gratuitamente cerca de 5.000 jovens entre 6 e 17 anos em diversas modalidades. E Mônica tornou-se a primeira treinadora da “Daianinha de Guarulhos“, que teve de mudar o horário da escola para se adaptar à rotina de treinamento. Foi assim no primeiro ano e meio, até que a pequena, aos 8 anos, fosse encaminhada para a equipe de alto rendimento.
A família se mobilizou para fazer o sonho da ginasta acontecer. Como morava em um bairro afastado do ginásio, Mônica conta que um dos irmãos de Rebeca andava com ela por cerca de duas horas até o local dos treinos e ficava esperando até o fim. Depois, comprou uma bicicleta para levá-la. Traços de um país em que a população mais pobre precisa fazer um esforço extraordinário para agarrar as poucas oportunidades disponíveis. “A mãe foi um fator chave na vida dela. Essa dificuldade de classe faz com que as pessoas superem esses desafios e isso foi muito importante na vida da Rebeca”, explica o técnico Oscar, conhecido apenas como Júnior.
Rebeca ainda contou com o apoio irrestrito de professores engajados, como o próprio Júnior, que a acompanhou em Cuba para um torneio pan-americano, e Mônica. Em determinado momento, quando já estava na equipe de alto rendimento, os professores começaram a se revezar para levar e trazer a menina de casa. Depois, passou a morar na casa da professora Ana Cecília durante a semana. “Pra facilitar a vida dela, ela dormia na Ana, tomava café, ia pra escola, almoçava aqui no ginásio, treinava à tarde e voltava pra casa da Ana para dormir”, recorda Mônica. “A gente sempre fez isso, com o apoio financeiro da Prefeitura. Eu mesma já tive ginastas morando na minha casa. Às vezes elas têm muito potencial e é necessário”, acrescenta a professora.
O Brasil possui algumas ilhas de excelência no esporte, como o vôlei, o futebol, o judô, a vela ou, mais recentemente, o boxe, o skate e a própria ginástica artística. Mas a rotina de muitos atletas brasileiros, diante das políticas públicas ainda tímidas, é de ter que superar a falta de apoio técnico e de patrocínio, público ou privado. Foi assim com o surfista e campeão olímpico Ítalo Ferreira quando ele pegava suas primeiras ondas numa tampa de isopor, em Baía Formosa (RN). Foi também assim com Darlan Romani, do arremesso de peso. Durante a pandemia, ele perdeu patrocínio, ficou sem técnico e sem área pra treinar, precisando apelar para um terreno baldio. Contraiu hérnia e covid-19 nesse período, mas ainda assim ficou em 4º lugar na Olimpíada de Tóquio.
O contraste com os Estados Unidos, um país continental como o Brasil e um dos maiores medalhistas de todos os tempos, fica evidente em algumas situações. Nestes Jogos Olímpicos, mesmo após a estrela Simone Biles ficar de fora de provas de ginástica artística, o país ainda assim conseguiu medalha de ouro no individual geral e no solo, a prata no salto e na geral por equipes, e bronze nas barras assimétricas e na trave. Não precisou se apoiar em sua principal ginasta para conquistar medalhas em todas as categorias da ginástica artística feminina. “O que falta é o Brasil ter um um olhar mais específico para o esporte do país. Quando vejo um quadro de 50 medalhas para os Estados Unidos e 10 para o Brasil, vejo política pública acontecendo lá”, argumenta o servidor público Marcos Camargo, de 51 anos, chefe da divisão técnica de esporte da Prefeitura de Guarulhos.
Apesar de todas essas questões, Rebeca e seus treinadores mostram que é possível alcançar o pódio com investimento ao longo de muitos anos. “O Brasil é muito rico em material humano”, afirma a treinadora Mônica, de Guarulhos. O imenso ginásio municipal Bonifácio Cardoso, aonde trabalha, é um dos mais bem equipados do país e celeiro de ginastas, professores e árbitros da ginástica artística. Ele é fruto de um projeto idealizado em 1979 pela professora Rose Cerqueira e foi ganhando músculo nos anos seguintes, em várias gestões de vários partidos políticos, culminando na construção do ginásio em 1992. Hoje são sete treinadores concursados, mas há também um intercâmbio constante de professores de outros lugares e países. Por exemplo, por 10 anos o técnico russo Wladimir Cheiko ajudou a formar o trabalho de excelência que é feito ali. Também passou por lá, entre 2006 e 2009, o professor Francisco Porath Neto, o Chico, técnico de Rebeca até hoje. Foi ele quem levou a ginasta para a Curitiba em 2010 e, um ano depois, ao Flamengo para alçar voos mais altos.
“Com esse potencial, imagina se o país inteiro conseguisse fazer esse trabalho. Seríamos uma potência, brigaríamos com os Estados Unidos, a Rússia e a China tranquilamente”, afirma Mônica. Ela explica que Rebeca virou um ícone, mas que o trabalho feito ali deu oportunidade para muitas outras crianças que seguiram outras carreiras dentro da ginástica. A própria treinadora é um exemplo disso, já que entrou como aluna aos 12 anos. Outro exemplo é Marcos Goto, técnico do ginasta Arthur Zanetti, ouro em Londres 2012 e prata na Rio 2016 nas argolas. “Não é só esporte de alto rendimento, essas meninas e meninos vão ter outros caminhos, e isso foi fomentado aqui dentro”, explica a professora. “O esporte vira um meio para que tenham uma vida melhor no futuro. Isso é política pública.”
Além de oferecer e manter essa estrutura, a Prefeitura ainda paga cerca de 40.000 reais em taxas federativas e confederativas da ginástica artística. Dentro deste valor estão taxa de anuidade, filiação de atletas e técnicos novos, renovação de carteirinhas, arbitragem, premiação, renovação de técnicos e atletas antigos e inscrição individual e por equipe às competições. A gestão municipal ainda concede 90 bolsas de estudo em universidades para seus atletas. A ginástica artística é o carro-chefe do programa de Iniciação Esportiva, mas ainda há modalidades como futsal, vôlei, basquete, futebol, handebol e natação, entre outras.
Com o duplo pódio em Tóquio, o ginásio vem recebendo uma enxurrada de busca por vagas. “Agora tem esse fenômeno Rebeca, mas, olhando para trás, parece que foi tudo tão natural e que passou tão rápido”, afirma o técnico Júnior. Sentados no tablado por onde Rebeca passou, ele e Mônica recordam de alguns momentos de sua trajetória. “Aqui no ginásio acontecem muitos treinos ao mesmo tempo. Na hora de perfilar as meninas para começar o aquecimento, cadê a Rebeca? Estava lá na outra ponta olhando as meninas fazendo séries de solo com coreografia”, conta Mônica. “E ela lá dançando. Isso era quase todo dia. Essa menina ficava com os olhos brilhando e eu pensava ‘ela deve estar se imaginando num campeonato, numa Olimpíada’”. Rebeca agora deixa Tóquio duplamente consagrada, com o nome escrito na história do esporte e escolhida para representar o país na cerimônia de encerramento dos Jogos deste domingo. “É um sonho”, declarou, antes de sua temporária despedida dos holofotes.
Eliane Brum: Rebeca aterrissa nas tripas de Borba Gato
A superação é a narrativa da Casa-Grande para encobrir a falta de políticas públicas para aqueles que o Brasil mantém na Senzala
Eliane Brum / El País
Rebeca é linda e, além de linda, Rebeca voa. Evocou o melhor do Brasil num momento em que o Brasil exibe todas as suas tripas em praça pública, a começar por Jair Bolsonaro, nascido e criado nos intestinos do país que mais longe levou a escravidão e o genocídio continuado dos pretos e dos indígenas. Me alegro com Rebeca e tudo o que ela representa: a menina negra criada na favela por uma mãe solo que alcançou a medalha olímpica ao som de funk, apesar de ter toda a estrutura de um país contra ela. E fez tudo isso no momento em que o Brasil que tem vergonha —tem vergonha de si mesmo. É maravilhoso e precisamos muito de beleza. Mas sinto incômodo com a narrativa da “superação” e sobre como a “glória” de Rebeca pode estar sendo usada, em muitos casos com boa intenção, para encobrir as tripas. Ou para encobrir que o Brasil ainda é muito mais de Borba Gato do que de Rebeca. Enquanto Rebeca voava como exceção, a violência corria solta na senzala que o Brasil nunca deixou de ser e, com Jair Messias Bolsonaro, ampliou o sangue no chão.
De modo algum quero reduzir a realização de Rebeca. Ela fez uma enormidade. E ter uma menina preta da favela fazendo enormidades é uma mensagem poderosa para outras meninas pretas e um recado certeiro para o Brasil escravagista. Mas a narrativa de superação é prima-irmã da narrativa da meritocracia. Ela enaltece o indivíduo que teria conseguido por seu próprio esforço pessoal um feito extraordinário, uma espécie de milagre individual do herói, no caso a heroína, que vence todas as adversidades por uma extraordinária força de vontade. Em mais de 30 anos como jornalista, nunca vi nenhum ser humano assim, nem mesmo os considerados gênios. É claro que há méritos pessoais, mas eles só se realizam porque por algum caminho houve oportunidades. Certamente um perfil à altura da vida de Rebeca, de sua família e de seu país vai mostrar as oportunidades e encontros decisivos que Rebeca teve na vida e contextualizar sua realização no campo do coletivo e da partilha, da comunidade e dos (escassos) programas de Governos.
O que quero dizer é que não acredito em superação, acredito em políticas públicas. Sempre que se louva o indivíduo como produto de si mesmo, se enaltece o capitalismo que produz uma desigualdade tão abissal que nega à maioria das meninas negras a chance até mesmo de se alimentar de forma saudável. A narrativa da superação comete ainda uma violência adicional contra os já tão violentados, a de que poderiam ter sido Rebeca se tivessem se esforçado mais, a de que mães sozinhas, às voltas com o sustento e os filhos, aviltadas de tantas formas, teriam “produzido” Rebecas se tivessem se dedicado mais. Também por Rebeca e por tudo o que ela representa, porque representa, essa narrativa feita seguidamente em nome do bem precisa ser colocada abaixo como as estátuas dos assassinos. Não devemos usar Rebeca contra todas as Rebecas. Nem mesmo quando precisamos muito de boas notícias e de redenção.
E, assim, obrigatoriamente, precisamos falar da estátua de Borba Gato. Apenas alguns dias antes do salto de Rebeca, Paulo Lima, conhecido como Galo, e outros ativistas botaram fogo na estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo. Realizaram o ato em nome da “Revolução Periférica”, duas palavras que colocadas juntas assustam bastante a minoria mais rica do Brasil. Galo é a liderança mais interessante surgida no Brasil urbano do centro-sul nos últimos anos. Articulador do movimento dos entregadores antifascistas, “preto e pobre”, Galo representa os mais aviltados entre os aviltados pelo capitalismo contemporâneo, que assumiram particular protagonismo no momento em que fizeram a ponte entre aqueles que podiam fazer home office, durante a pandemia, e os supermercados, as lojas, as farmácias, os restaurantes etc., cortando as cidades e arriscando-se nas ruas e avenidas infectadas pela covid-19 como um exército de escravos de um mundo distópico. São também eles a fazer o corte entre a suposta redenção tecnológica dos apps e mostrar que ela nada mais é do que uma nova fase da exploração do corpo dos trabalhadores. Além de todo o conteúdo político do movimento, esse grupo de motoboys colocou-se frontalmente contra o fascismo no Brasil.
A repercussão ao incêndio da estátua de Borba Gato tirou a máscara mesmo de quem a usou corretamente durante a pandemia e revelou todo o conservadorismo das elites brasileiras, mesmo as intelectuais. E de várias maneiras, das mais explícitas às mais sutis. Anunciar-se como antirracista, sim, mas botar fogo numa estátua, mesmo que a estátua homenageie, na figura de Borba Gato, os bandeirantes que destruíram, escravizaram e mataram negros e indígenas a partir do século 16, isso não. Não porque é arte, não porque seria o mesmo que negar a história, não porque supostamente colocaria pessoas em risco, todos esses argumentos foram enfileirados de forma elegante. Não porque tudo isso precisaria ser discutido publicamente, como se vários grupos e parlamentares não estivessem tentando fazer isso há anos, sem sucesso. Não pelas mais variadas razões. E, como de hábito, houve quem afirmasse que os ativistas não entendem nada de história porque Borba Gato nem seria tão ruim assim. O último argumento a ser lançado como pedra é sempre o da ignorância dos protagonistas que ousaram agir sem pedir autorização ou consultoria a quem realmente entende de História, assim, com “H” maiúsculo.
O espanto não deveria ser provocado pelo ato de incendiar a estátua de Borba Gato, mas pelo fato de que ela continua lá, depois de tudo. Antes de seguir, preciso dizer algo sobre o fogo. Na Amazônia, o fogo é instrumento dos destruidores. O fogo criminoso queima a floresta, incinerou grande parte do Pantanal, incendiou as casas e as ilhas de ribeirinhos expulsos pela hidrelétrica de Belo Monte e, neste momento, tem incendiado as casas de lideranças indígenas e camponesas, ateado pelas milícias armadas dos grileiros, base de Bolsonaro na floresta. Não gostamos do fogo que queimou o Museu da Língua Portuguesa (agora finalmente reinaugurado) nem do fogo que queimou o Museu Nacional nem do fogo que há pouco queimou a Cinemateca, estes sim incêndios criminosos, patrimônio público deixado para queimar. Não gostamos de fogo, mas não serei eu a dizer como aqueles que têm a história gravada a ferro —e fogo— no corpo devem lutar. O que quero dizer é que, na Amazônia, sabemos muito bem que, no fogo contra fogo, é sempre o mesmo lado que acaba queimado porque, no Brasil, a matéria morta das estátuas vale mais do que a carne viva dos negros e dos indígenas.
Este é outro ponto do nó. Borba Gato pegou fogo, mas quem queimou foi Galo. Ele assumiu a autoria do ato e foi preso. Sua mulher, que estava em casa quando a manifestação política foi realizada, chegou a ser presa e só depois foi libertada. A prisão é agora uma violência a mais em seu corpo preto. No momento em que este texto é publicado, Galo segue preso. O clamor para que Galo seja solto é muito menor do que deveria porque a maioria dos que costumam se declarar antirracistas querem que aqueles que lutem o façam com boas maneiras. Queimar estátuas seria de mau gosto porque, em alguma camada subconsciente, quem tem privilégios tem medo de até onde pode chegar o fogo. Então, por favor, vamos discutir tudo isso ao redor de uma mesa enquanto você segue arriscando o seu corpo e eu o compenso com uma boa gorjeta.
No lado oposto, também há um problema. Como posso dizer a Galo o quanto seu gesto foi extraordinário se não é o meu corpo que está em risco, mas sim o dele. Penso que é necessário ter cuidado quando quem vai preso é o outro. Se vou dizer a ele que, sim, que gesto histórico ele fez, preciso estar disposta a botar meu corpo ao lado do dele, a dividir a prisão com ele. E a questão é que, sendo branca de classe média, isso jamais vai acontecer. Ou jamais vai acontecer como acontece com ele. O meu risco é infinitamente menor do que o de Galo. Então, não basta bater palmas a ele. Se é para de fato se colocar ao lado de Galo na luta contra os Borbas Gatos contemporâneos, num estado em que a sede do Governo se chama Palácio dos Bandeirantes, é preciso que estejamos dispostos a pagar o preço de protegê-lo das arbitrariedades que virão. O que quero dizer é que não dá para fazer rebelião com o corpo dos outros.
Um dia antes de Rebeca Andrade ganhar a primeira medalha de prata olímpica da ginástica artista brasileira nasceu Suzi, uma menina também preta. Ela foi arrancada dos seios de sua mãe preta logo que saiu do útero, no Hospital Universitário, em Florianópolis, porque o Conselho Tutelar decidiu que Andrielle Amanda dos Santos não tem condições de criá-la. Adrielle tem apenas um ano a menos que Rebeca, chegou a viver na rua e usar drogas, perdeu uma filha ainda bebê e perdeu a tutela de duas outras. Segundo reportagem do portal Catarinas, ela foi humilhada durante o parto e impedida de seguir amamentando Suzi, que seguirá para uma instituição. Quando tentou vê-la, disseram que as visitas estavam proibidas. Também os avós paternos foram impedidos de registrar o bebê. “Na senzala, levavam as nossas crianças. Daí, os nossos seios, cheios de leite, foram romantizados, e vejam só, nos chamaram de mães de leite, de mães pretas, apesar das nossas crianças ancestrais terem sido vendidas, sequestradas”, escreveu em suas redes sociais a professora e intelectual Jeruse Romão. A retirada da filha dos braços da mãe é considerada por movimentos sociais que apoiam Andrielle como um sequestro pelo Estado baseado em racismo institucional.
No domingo em que Rebeca fez o salto que a colocou no ponto mais alto do pódio olímpico, Galo estava na prisão por queimar uma estátua que celebra a escravidão e o extermínio dos corpos dos ancestrais de Rebeca, uma estátua que celebra o avanço sobre a natureza em busca de riquezas como o ouro da medalha de Rebeca. Uma estátua que continua lá. Suzi e Andrielle estavam apartadas, a filha preta amputada da mãe preta como nos tempos da senzala. Em vez de políticas públicas para amparar a mãe em dificuldades, sequestro institucional. Sim, o salto de Rebeca é lindo e significa, mas não há nenhuma superação. O Brasil segue esmagando os mesmos corpos, queimando os mesmos corpos, atravessando à bala os mesmos corpos. Não aviltemos Rebeca e seu salto forjando uma mistificação redentora que é só isso mesmo, mistificação. Para cada Rebeca que salta, há milhões de outras agarradas pelas pernas para que não possam saltar e violentadas de várias maneiras, até mesmo quando dão à luz a suas filhas pretas.
Borba Gato não é estátua à toa. Ela segue lá porque representa. Quem está na cadeia não são seus sucessores contemporâneos, mas aquele que, em legítima defesa, reagiu a tudo o que os bandeirantes e a exaltação a eles representam. Quem está na cadeia são os que sempre estiveram na cadeia. Quem está morrendo é quem sempre foi assassinado. Borba Gato está tão vivo quanto sempre e sua mais mal acabada versão é hoje presidente do Brasil. Se Rebeca conseguiu saltar é por representar séculos de resistência contra todas as formas de morte promovidas e apoiadas pelo Estado brasileiro e suas elites. Não há redenção. Não há superação. Não há meritocracia. Há luta. E há luto. E o luto tem a cor de Rebeca.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de sete livros, entre eles ‘Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago).
Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-08-03/rebeca-aterrissa-nas-tripas-de-borba-gato.html