quarentena

Demétrio Magnoli: As sociedades não podem ser reduzidas a curvas de gráficos epidemiológicos

No Brasil, como em tantos países atravessados por fundas desigualdades e severas restrições fiscais, quarentenas esbarram em limites estreitos

No feriado natalino, 20 cidades amotinaram-se contra a determinação estadual que colocou São Paulo na “fase vermelha”.

Simultaneamente, manifestações de comerciantes em Manaus obrigaram o Governo do Amazonas a cancelar o decreto de fechamento dos setores “não essenciais” e, dias antes, em Búzios (RJ), verificaram-se protestos populares contra a decisão judicial de fechar o município aos turistas.

Milhões tomaram o rumo das praias no Réveillon. As quarentenas vergam, aos poucos, sob o peso conjugado da tensão social e da anomia política.

No começo de tudo, delineou-se uma corrente de epidemiologistas que, hipnotizados por modelos estatísticos, preconizaram estritas quarentenas sem fim, até o extermínio do vírus.

Depois, quando desistiram do sonho impossível, alguns deles clamaram por rígidos lockdowns de um mês, garantindo que o congelamento absoluto interromperia a pandemia, uma profecia desmentida pelas experiências práticas de inúmeros países. Hoje, ainda imunes às lições recentes, mas imitados por hordas de “influenciadores digitais” fantasiados de santos, lamentam terem sido ignorados e retomam o antigo discurso.

O Brasil, segundo país com maior número de óbitos contabilizados pela Covid-19, ocupa o 22º lugar na lista da taxa de óbitos, atrás de países como a Itália, a Espanha, o Reino Unido, a França e a Argentina, que fizeram lockdowns radicais. Todos os países ocidentais nos quais o vírus se espraiou antes de março exibem elevadas taxas de mortalidade.

A exceção notável é a Ásia oriental, um mistério cuja explicação talvez se encontre na relativa imunidade conferida por intensos contatos prévios com outros coronavírus. Nada disso exime de culpa o negacionismo místico do governo federal, mas inscreve na moldura correta o impasse atual.

As sociedades não podem ser reduzidas a pontos e curvas de gráficos epidemiológicos. No Brasil, como em tantos países atravessados por fundas desigualdades e severas restrições fiscais, quarentenas esbarram em limites estreitos.

comportamento dos jovens, aqui ou na Europa, só pode ser alterado por períodos relativamente curtos. Jornalistas que apontam o dedo acusador para aglomerações de ambulantes, pancadões da periferia ou praias lotadas fugiram das aulas de sociologia.

A pandemia é o teste de fogo das lideranças políticas. Bolsonaro não é Merkel e nem mesmo Trump, que ao menos deflagrou a corrida pela vacina. Nosso governo apostou no vírus —isto é, na polarização política, na guerra contra moinhos de vento, na sabotagem perene das medidas indispensáveis de restrição sanitária. A ironia é que, dez meses depois, Bolsonaro está vencendo —e não só graças aos efeitos mágicos do cheque emergencial.

Os contágios disseminam-se, principalmente no transporte público, na economia informal, nos bares festivos, em farras de bacanas ou bailes dos pobres. Mas as ferramentas restritivas dos governadores miram outro alvo: o comércio e os serviços formais, que já esgotaram suas reservas econômicas e sua capacidade de resistência.

Para surpresa dos que praticam o esporte do trabalho remoto ou recebem salários do Estado, desata-se um conflito que se esparrama pelas ruas e encurrala os prefeitos. Sua implicação epidemiológica é a desmoralização das quarentenas e seu fruto político é a conversão dos setores da população mais afetados em neobolsonaristas. O fim do auxílio emergencial tende a acelerar a dupla crise.

Na Europa, onde a pandemia foi enfrentada por um sólido consenso político, a parede das quarentenas começa a fissurar. No Brasil, que elegeu Bolsonaro, ela desaba em câmera lenta. Inexistem soluções simples para o impasse, mas o ponto de partida é reconhecer sua natureza, que não é epidemiológica.

A vacinação em massa tardará. Os governadores que negam o negacionismo precisam formular novas estratégias.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Zeina Latif: Governo em quarentena

A inoperância do governo federal transborda e agrava o sofrimento social. Alguns ministérios cuja ação seria essencial pegaram a covid-19 e estão em isolamento por tempo indeterminado

Repetitivo lembrar que o plano nacional de imunização não tem vacinas ou mesmo seringas. E ainda aguardamos as deliberações do comitê de crise, sob comando da Casa Civil.

Do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, nada se ouve falar, apesar do estresse vivido pelas famílias por conta da crise no mercado de trabalho, do confinamento social em moradias precárias, dos problemas de saúde e das escolas fechadas.

Não podemos nos enganar com os números de queda expressiva na violência doméstica (-27%), na ameaça contra a mulher (-33%) e na violência contra vulneráveis (-50%), entre março e maio em relação ao ano passado. Há grande subnotificação de casos por conta do isolamento social combinado à falta de acesso digital aos canais de denúncia.

Provavelmente, o problema é maior no Brasil, a julgar pela experiência mundial. Por exemplo, a Colômbia, com boletins semanais, registrou aumento de 92% nas chamadas de denúncia de violência contra a mulher entre abril e início de dezembro. Na Argentina, o aumento foi de 25% entre abril e outubro. A propósito, o cuidado em coletar e divulgar as estatísticas atualizadas já diz muito dos governos.

A elevada subnotificação aqui revela não apenas problemas de exclusão digital, mas certamente a falta de empenho para ampliar os canais de denúncia, como fizeram outros países. Os canais criados para encontrar os “invisíveis” e conceder o auxílio emergencial poderiam ter sido utilizados também para esse fim.

Os países lidaram com o problema do aumento da violência contra mulheres e vulneráveis, durante a pandemia, ampliando tempestivamente os serviços públicos em várias frentes, como o reforço no disque-denúncia, atendimento pelo WhatsApp em tempo integral, garantia de renda para mulheres em vulnerabilidade, campanhas de conscientização, ampliação de vagas em abrigo e parcerias com a sociedade civil. Argentina, Uruguai, Colômbia e Chile adotaram políticas dessa natureza. Não faltou esforço. Na Argentina, onde já começou a vacinação, foi feito o programa Barbijo Rojo, em que atendentes de farmácias, ao ouvirem o pedido por “máscara vermelha”, ajudam a vítima, colocando-a em contato com o disque-ajuda.

Não faltaram alertas de especialistas e recursos financeiros. Mesmo assim, o MMFDH é inoperante. A lista de medidas é extensa, mas inócua. O silêncio da ministra em meio aos casos recentes de feminicídio diz tudo.

Na Educação, o ministro Milton Ribeiro se exime de qualquer responsabilidade pelo desastre do ano letivo perdido, que, para ele, é assunto de Estados e municípios. Em entrevista ao Estadão, afirmou que a pasta deve apenas repassar recursos e divulgar protocolo de segurança. Se a família não tem acesso à internet, isso é “para um outro departamento”.

A crise na educação amplia o abismo entre os estudantes pobres e ricos, enquanto a interrupção de atividades que dependem de fluxo de pessoas aumentou a desigualdade, por conta do desemprego dos trabalhadores pouco qualificados, principalmente os jovens que têm nessas atividades a porta de entrada no mercado de trabalho.

Mesmo passada a pandemia, haverá provavelmente aumento da evasão escolar, com graves consequências no desenvolvimento e empregabilidade desses indivíduos. Pode-se esperar também um aumento do número de jovens “nem-nem” (nem trabalha, nem estuda). Eram 22% das pessoas entre 15 e 29 anos em 2019; 32% para mulheres pretas ou pardas. Quase 72% deste grupo estavam nos 40% mais pobre da população.

A falta de perspectivas dos jovens alimenta a maternidade prematura e a entrada no mundo do crime. O desalento de jovens não parece preocupar Ribeiro e Damares.

Uma triste lição desta crise é que a máquina pública, com poucas e importantes exceções, funcionou mal. A estabilidade do funcionalismo não blindou o País do governo inepto e omisso. 

Vamos encarar nossas fraquezas para construirmos um futuro melhor.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Cristina Serra: A morte como commodity

É preciso admitir a barbárie para salvar a democracia

Nos meses de quarentena, o Brasil conseguiu combinar duas catástrofes: uma das piores conduções mundiais do combate à pandemia, que resultou em massacre evitável de brasileiros, e o descontrole da epidemia de violência, que matou mais cidadãos e policiais no primeiro semestre deste ano que no mesmo período de 2019.

Pesquisa do Monitor da Violência e do site G1 aponta que, mesmo com o isolamento social, 3.148 pessoas foram mortas por policiais em 2020, 7% a mais que em 2019. E 103 policiais foram assassinados contra 83, aumento de 24%. Esses números estão em linha com o crescimento de assassinatos em geral: 6% a mais neste ano.

Como explicar essa doença social? O pesquisador Adilson Paes de Souza acaba de defender na USP a tese de doutorado "O policial que mata: um estudo sobre a letalidade praticada por policiais militares do estado de São Paulo". Para o estudioso, "a base do sistema de segurança pública no Brasil foi gestada na ditadura e a Constituição de 1988 não mudou isso. As PMs foram organizadas nos marcos da Doutrina de Segurança Nacional, que tem como meta a eliminação do inimigo interno para acabar com o comunismo".

Há outras razões para a enfermidade. "A morte violenta tornou-se uma commodity. Ganha-se muito dinheiro com a insegurança. Fabricantes de armas e munições, empresas que vendem sistemas de segurança, rastreamento, blindagem de carro, funerárias. A lógica é: o Estado não provê segurança, cada um se arma e se defende como pode e alguns enriquecem", avalia.

Bolsonaro, um devoto da violência, age dentro dessa lógica. Tem facilitado o acesso às armas de fogo e dificultado seu rastreamento. "Quanto mais armas no sistema legal, mais fácil armar milícias no campo e nas cidades. São as milícias que poderão, eventualmente, dar suporte a uma ruptura institucional", afirma Souza. É preciso admitir a barbárie para salvar a democracia.