protecionismo

Míriam Leitão: Protecionismo primitivo

O livre comércio é uma utopia, mas existem formas mais sofisticadas de criar barreiras do que as escolhidas pelo governo Donald Trump. Ele é primitivo também nisso. Ao criar cotas para a exportação brasileira de semi-acabados, está tirando matéria-prima da sua própria indústria, ao barrar o produto brasileiro pode diminuir a exportação do carvão americano. Trump não entendeu o básico.

Amaneira como se encerrou a negociação da indústria brasileira de aço e alumínio exibe a truculência do governo americano. O Brasil estava negociando com argumentos e dados. A tese era a de que nós não ameaçamos a segurança nacional americana com nossas exportações. Até que na quinta-feira à noite, o Brasil foi comunicado de que as condições seriam impostas.

Para o aço, o volume máximo permitido será a média dos últimos três anos. E com um redutor de 30% quando for produto acabado, ou seja, com maior valor agregado. É aceitar ou pagar 25% de sobretaxa. A indústria considerou que esse valor faria o país perder o mercado americano e aceitou as cotas. A exigência de cotas é uma ilegalidade do ponto de vista da Organização Mundial do Comércio, mas tudo o que acontecerá se o governo brasileiro se queixar à OMC é um longo painel, ouvindo as partes, e por fim, o direito de retaliar. No caso do alumínio, o setor aceitou a sobretaxa de 10%.

Há uma integração entre Brasil e Estados Unidos em carvão e aço. O Brasil importa US$ 1 bilhão por ano de carvão dos Estados Unidos. E, do que exporta, 80% são produtos semi-acabados, ou seja, matéria-prima para a siderurgia americana. Se o governo Trump quer que a siderurgia dos Estados Unidos cresça mais, terá que importar o aço não comprado no Brasil, de outro país. Do contrário, a sua indústria ficará com limitação de produção.

O protecionismo, ao barrar as correntes de comércio, reduz a atividade econômica nos países. A ideia de que “importação é prejuízo” e que “exportação é lucro” é uma visão antiga. O Brasil poderia considerar que está tendo um enorme prejuízo com o comércio com os Estados Unidos. O governo calcula que, nos bens e serviços, o país acumulou em 10 anos déficit de US$ 250 bilhões com os americanos. Na balança comercial, o Brasil tinha grandes saldos positivos no início da década passada, mas o desempenho foi minguando no governo Lula até inverter, em 2009. De lá para cá, a balança acumula déficit de US$ 46,3 bi com os EUA, mesmo após o superávit de US$ 2 bi em 2017.

O protecionismo no comércio de aço sempre existiu, e o arsenal tem tarifas, cotas, sobretaxas, salvaguardas. Mas desta vez o governo americano nem fez esforço para dar ares de legalidade ao processo. Em agosto do ano passado, os EUA comunicaram que estavam iniciando uma investigação com base na seção 232 do acordo internacional de comércio, para verificar a existência de dano à indústria local. Daí partiu para dizer que, excluindo-se o Canadá e o México, todos os países teriam barreiras ao comércio. Incluiu o Brasil numa lista de 11 países que estariam fazendo triangulação de produtos da China. O Brasil provou que não está fazendo esse repasse do aço chinês. Foi então colocado na lista dos países como Argentina, Austrália, Coreia do Sul e União Europeia, com os quais eles negociariam. E mostrou que deveria ter um tratamento diferenciado por todos aqueles argumentos, mas na quintafeira os EUA avisaram que estavam encerrando unilateralmente a negociação.

O mundo está com um grande excedente de capacidade de produção, de mais de 600 milhões de toneladas, e para o Brasil manter o nível de ocupação, que está em 68% da capacidade, tem que aceitar a limitação. Até porque os Estados Unidos recebem um terço de tudo o que o Brasil exporta.

Diante da dificuldade, a indústria começou a pedir o que sempre quis, algum subsídio através do programa chamado Reintegra. Essa não é a solução, principalmente num momento de penúria nos cofres públicos e depois da grande alta das transferências de recursos fiscais para empresas. Os exportadores alegam que o Reintegra não é subsídio e sim a devolução de impostos remanescentes na cadeia produtiva. É um grande e ocioso debate. No ano passado, antes de tudo isso acontecer, o setor já pedia um aumento do Reintegra.

Não se combate um mal com outro mal. Um ato explícito de protecionismo não pode ser compensado com uma decisão velha de subsidiar a produção. Ao governo brasileiro resta protestar na OMC. E torcer para que os importadores de produtos brasileiros nos EUA mostrem o quanto estão perdendo.


Tio Sam

Monica De Bolle: Assim começa

“Desse momento em diante, será América primeiro. Todas as decisões sobre o comércio, a tributação, a imigração, assuntos externos, serão tomadas para beneficiar os trabalhadores americanos e as famílias americanas. Temos de proteger nossas fronteiras da devastação que outros países causaram ao produzir nossos produtos, roubar nossas empresas, destruir nossos empregos. Proteção trará maior prosperidade e força (…). América começará a vencer novamente, a vencer como nunca antes (…) E, sim, juntos faremos América great again.”


“Primeiramente, vocês querem empregos, certo? Esse é o único e principal objetivo (…) – trazer empregos para todos. Esse país pertence a nós e temos de lutar para mantê-lo assim. Para que a América seja great again, precisamos que a classe média revolucionária triunfe (…) Temos de purgar o país de todos os elementos e ideias que hoje infestam nosso país. América para os americanos!”


Proponho um desafio aos leitores. Como muitos devem ter acompanhado, a primeira citação é do discurso de posse de Donald Trump. Mas, e a segunda? Seria de algum de seus inúmeros rallies de campanha? Ou talvez do tour da vitória depois das eleições de novembro?

Como era de se esperar, Trump iniciou seu mandato com um discurso populista, nacionalista, protecionista. Quem imaginava que a retórica de campanha era apenas um punhado de palavras vazias enganou-se tanto quanto os que previram derrota Trumpista. Nos últimos dias, muitos comentários vi no Brasil de gente questionando qual o problema de Trump falar, e repetir, que será a América em primeiro lugar – não seria isso, afinal, o que todo líder quer para sua nação, seus interesses primeiro? Sim. E não. Não porque os EUA não são nação qualquer, mas a maior economia do planeta, o país cujo posicionamento geopolítico tem a maior influência sobre a ordem mundial.

Não à toa, todos os presidentes americanos do pós-guerra – todos – salientaram em seus discursos de posse o compromisso com seus aliados mundo afora, com a manutenção da ordem global, com a sustentação da economia mundial como algo que a todos interessa. Trump nada disse sobre a prosperidade global como algo que interessa aos EUA. Trump repudiou o mundo ao acusar a devastação causada por países que destroem empregos e roubam indústrias. Trump disse que proteção trará prosperidade.

Há muito o que dissecar sobre a integração global e seus efeitos nas economias maduras. Há tanto quanto o que dissecar sobre o advento de novas tecnologias e seus efeitos sobre a indústria tradicional, o encolhimento da economia do rust belt americano, o achatamento da classe média nos EUA. Algo, entretanto, está comprovado há tempos: o protecionismo não é o caminho nem para o resgate desses empregos, nem para a prosperidade. Os resultados do isolacionismo brasileiro estão aí para mostrar a falácia desse pensamento simplório. O protecionismo é reducionista, não expansivo. O protecionismo americano propalado por Donald Trump na melhor das hipóteses haverá de piorar as condições de vida dos “homens e mulheres esquecidos”. Na pior das hipóteses – porque o Brasil apequenado não é a América – levará à percepção de que a maior potência do planeta já era. Os vácuos serão preenchidos, aumentando as incertezas sobre os rumos da economia mundial diante da ausência de líderes com visão clara.

Os mercados, até recentemente, acreditavam, não sem alguma ingenuidade, que Trump faria bem para a economia americana, promoveria o crescimento por meio de cortes de impostos e mirabolantes planos de infraestrutura. Ignoraram o protecionismo e o nacionalismo, relegando-os à categoria de meros instrumentos retóricos de campanha. Pois foi sobre o protecionismo e o nacionalismo que Trump discursou em seu primeiro pronunciamento. Nada disse sobre o resto.

Líderes como Trump são velhos conhecidos na América Latina e na literatura. A segunda citação é de Nathanael West, em A Cool Million, romance publicado em 1934. Quem discursa é o líder populista Shagpoke Whipple em um rally de campanha. Whipple, Trump. A vida de fato imita a ficção.