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Pablo Ortellado: Racismo no Carrefour

Conservadores dizem que alegação de racismo em agressão em Porto Alegre é prematura. Estatísticas sugerem racismo estrutural

Até mesmo o torpe assassinato de Beto Freitas em um supermercado em Porto Alegre foi capturado pelas guerras culturais, com vozes conservadoras acusando os progressistas de enxergar racismo onde não havia e dividir uma sociedade racialmente integrada.

A principal crítica desses conservadores tem sido quanto ao emprego do conceito de racismo estrutural. Para eles, o racismo se restringiria apenas àqueles episódios de preconceito e intolerância com motivação racista manifesta.

Seria preciso, então, entender as circunstâncias que levaram à morte de Beto Freitas: se havia algum fato anterior que pudesse justificar o uso excessivo de força e se haveria evidência de motivação racista, como alguma injúria racial que tivesse sido proferida. Sem esses elementos, a alegação de racismo seria prematura e injustificada e mostraria apenas um esforço da esquerda em promover a divisão em uma sociedade conhecida por ter uma integração racial bem-sucedida.

Não é, no entanto, o que dizem as estatísticas. Raça é importante, mesmo quando comparamos índices dentro de uma mesma classe de renda. Entre negros de baixa renda, por exemplo, 42% relatam terem sido desrespeitados pela polícia (contra 34% dos brancos de baixa renda): 35% já receberam agressões verbais e 18% sofreram agressões físicas (contra 27% e 12% dos brancos de baixa renda).

Enquanto 56% da população brasileira é negra ou parda, negros e pardos são 67% dos encarcerados e 76% das vítimas de homicídio. Esses não são números de uma sociedade não racista.

Independentemente das circunstâncias que levaram os seguranças a agredir Beto Freitas, é incontestável que houve uso excessivo de força, já que as agressões foram desproporcionais e não cessaram quando ele foi rendido.

O uso da força pelos seguranças teria chegado a esse grau de excesso e violência se Beto Freitas fosse branco? Quinze pessoas assistiriam passivamente um homem branco ser covardemente espancado e asfixiado por seguranças sem tentar impedi-los? Provavelmente não.

É esse racismo insidioso, não explícito e não manifesto que condiciona as ações individuais e o funcionamento das instituições que vemos atuar em casos como esse. É ele que anui, que consente o exercício de uma violência brutal contra um homem negro que dificilmente seria autorizada contra um homem branco.

É esse racismo furtivo, enfim, que faz com que negros sejam mais interpelados pela polícia, sejam mais encarcerados, sejam mais agredidos e sejam mais assassinados. As estatísticas não são fruto do acaso.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Vinicius Torres Freire: O mimimi das empresas que matam e o Carrefour

Empresas terceirizam responsabilidades para fugir da culpa, na Vale ou no Carrefour

Quando a lama da Samarco matou 19 pessoas em Mariana, em 2015, a Vale disse: "A Vale é apenas uma mera acionista da Samarco, sem nenhuma interferência operacional na administração dessa companhia, de modo direto ou indireto, próximo ou distante".

Era verdade. A Vale tinha "responsabilidade limitada" por lambanças da Samarco, embora essa limitação se torne mais e mais controversa. Já a “responsabilidade social e ambiental” foi logo para o vinagre tinto de sangue. O negócio era pegar a grana de acionista e terceirizar a imundície. Tanto era esse o caso que, em 2019, a Vale largou centenas de pessoas no caminho da lama da morte em Brumadinho.

Terceirizar a imundície é um negócio, na contratação de empresas selvagens de segurança ou de feitores que escravizam imigrantes costureiros de roupa de ricos, mas não só. O Carrefour terceirizou sua segurança para uma empresa de policiais, propriedade ilegal. Um funcionário dessa Vector matou João Alberto Freitas, aos 40 anos.

“Ah, essas empresas são quase todas assim”, talvez de milícias. Sim. Então, bota a boca no trombone, chama a Lava Jato, se vira. Para apoiar governo que sabota a democracia, faz propaganda do vírus, queima floresta e insulta “viado” vocês têm tempo e disposição, certo?

Quando dá besteira, polícia ou morte, executivos de empresas aparecem compungidos, “sofrendo”, tentando sair de fininho, seguindo o roteiro do “gerenciamento de crises”. As mais toscas dizem “não sabíamos”, “a empresa [que fez a porcaria direta] é terceirizada” ou “é caso isolado”, essas burrices sórdidas e insolentes.

Na hora de enfiar a faca no pescoço de quem atrapalha os ganhos, certas empresas vão bem. Quando se trata de evitar que enfiem o joelho no pescoço do “crioulo”, dane-se.

Quer conter risco? Até por frio pragmatismo, contrate empresas limpas. O Carrefour tem dinheiro. Faturou R$ 60 bilhões em 2019. Em 2020, está faturando 17% mais. O lucro neste ano já cresceu 49,5%. Os acionistas controladores são o Carrefour France (71,6%) e a holding Península (da família de Abílio Diniz, com 7,7%). Por falar nisso, no dia em que mataram o homem, o Ibovespa caiu e a ação do Carrefour subiu.

Além do mais, faça um contrato draconiano: pisou no pescoço, está fora. Ou, como ouvi no início deste século de um presidente de bancão: “Se o sujeito me perde tantos milhão [sic], a gente chupa o sangue dele”.

“…Queremos gerar uma experiência agradável de compra”, lê-se na introdução do “Relatório Anual de Sustentabilidade” do Carrefour, esses blablás de coach, de relações institucionais e de mendacidades socioambientais. Mas o segurança matou o homem preto.

“…Contribuímos para a inserção deles [“colaboradores”] no mercado de trabalho, priorizando segmentos historicamente discriminados”. O homem preto morreu.

“Nosso objetivo é fazer a diferença nos locais em que atuamos …através de ações de proteção ambiental, da promoção da diversidade e solidariedade”. O homem preto morreu.

Não é a primeira do Carrefour nem de supermercados e shoppings, onde volta e meia há um capanga da segurança da “sustentabilidade” dando um mata-leão em outro alguém do povaréu, tanto faz se tenha furtado um biscoito ou não. Estão preocupados com vidas à beira de uma represa da morte? Com o imigrante ou o terceirizado escravizado? Com o homem negro que morre na loja ou na “sala de massagem” (de tortura)? “Chupa o sangue” de quem barbariza, talvez o seu próprio, ou para de conversinha. Enfim, é preciso rever também a terceirização irresponsável.


Janio de Freitas: 'No Brasil não existe racismo', fala de Mourão, é a mais racista das frases

Considerar que inexiste racismo é dizer que discriminação compõe tratamento correto aplicado pelos brancos e merecido pelos negros

“No Brasil não existe racismo.” Essa é a mais racista das frases entre nós. Seu autor é um general, um dia eleito presidente do Clube Militar como reconhecimento às suas manifestações extremistas. Com a elevação à liderança do radicalismo de direita, no mesmo ano foi indicado pelo comando do Exército para completar a candidatura de Jair Bolsonaro, assim chegando à mais alta condição atual de um militar brasileiro —general-vice-presidente da República.

Considerar que inexiste racismo no Brasil é dizer que toda a discriminação social sofrida pela negritude, sua desvalorização remuneratória, a maior vitimação nas ações policiais, a proporção maior na pobreza, e tanto mais, compõem um tratamento correto aplicado pelos brancos e merecido pelos negros. Em tal caso, o que é racismo, raiz da violência mais disseminada no tempo e no planeta, seria considerado o humanamente normal e o legalmente adequado para os negros. É o que a sentença do general-vice proclama.​

Nos últimos anos, temos convivido com uma forma de poder em que se combinam a anti-ideia, a obturação dos canais da percepção, a disfunção da experiência, a recusa ao conhecimento e à compreensão. Não é exclusividade do Brasil, Trump e metade dos Estados Unidos mostram-se com autenticidade, para engasgo dos que jamais quiseram vê-los como são. Aqui, porém, chega a parecer que os últimos anos cumprem programas perversos para exibir as cruezas da realidade.

É o que faz o batalhão de generais na ativa do governo e adjacências. Caso houvesse um programa para arruinarem a imagem do Exército, não seria diferente do que nos mostram. O Exército que chegou ao governo Bolsonaro era um, outro é o que a opinião pública vê. Bolsonaro, até na volta ao “capitão”, e Exército se entrelaçam. A noção, entre militares, desse dano institucional ficou perceptível em referências à desvinculação entre Exército e governo. Embora sem efeito, que palavras não desfazem esse nó muito cego.

Ao contrário, a coisa até se complica. Como as eleições de agora insinuam. Os resultados suscitam muitas interpretações diferentes, mesmo opostas, e ainda assim não desprezíveis. Está visto que o centrão e a direita tiveram segmentos de ganho, o status do DEM elevou-se e fortaleceu-o bastante. Mas Boulos, Manuela D’Ávila e Marília Arraes, entre outros, revelam recuperação de saúde surpreendente, e promissora, da esquerda. É muito e não é tudo. Só com o segundo turno haverá maior nitidez da nova disposição de forças. Exceto em um caso, que dispensa a espera.

Bolsonaro é o derrotado. O importante, no entanto, é não se tratar só dele, em pessoa. É o dispositivo de que ele é o ativador, nem sabe por quê. O crescimento de partidos como o PSL, o PP e o PSD é de correntes que, apesar de identificações ideológicas, são caras e inconfiáveis. Dos candidatos que apresentaram o sobrenome Bolsonaro, só o filho Carlos se elegeu, em devastadora perda de energia do símbolo no eleitorado. Perdas e inseguranças assim são numerosas.

E outras serão decorrentes.

As perspectivas para 2021 não são simpáticas a soluções dos problemas que crescem. Não o são também, portanto, à rejeição a Bolsonaro, já em 50% em São Paulo, e ao derrotado dispositivo. Lembra o lugar-comum que Bolsonaro passa e o Exército fica. Caso não haja mesmo a recuperação, as perdas não serão iguais para as duas partes enlaçadas. Daí que Exército não deva se ligar a governo, sendo instituição do Estado. Ideia clássica e lembrada agora, com muito aplauso na imprensa, pelo comandante do Exército. Mas não foi na história do Brasil que o general Edson Pujol se baseou.

CO-AUTORIA

O governo do Rio Grande do Sul também é responsável pela monstruosidade que assassinou João Alberto Silveira Freitas. Policial militar temporário é excrescência. Inconstitucional e já repudiada pelo Supremo. Apesar disso, mantida pelo governador Eduardo Leite, para ver agora, na pessoa de um temporário assassino, o resultado de sua própria excrescência.


Elio Gaspari: Há racismo e também demofobia

Desigualdade não explica assassinato de Beto Freitas em Porto Alegre

Só na semana que vem será possível medir o impacto eleitoral do assassinato de João Alberto Silveira Freitas pela milícia formalizada da rede francesa Carrefour em Porto Alegre. No dia 9 de novembro de 1988 uma tropa do Exército matou três operários que ocupavam a usina de Volta Redonda. Seis dias depois, para surpresa geral, a petista Luiza Erundina foi eleita para a Prefeitura de São Paulo.

Como disse o vice-presidente, Hamilton Mourão, João Alberto, o Beto, era uma “pessoa de cor”. Seu assassinato aconteceu no mesmo dia em que o Carrefour anunciava na França sua disposição de boicotar os produtos brasileiros vindos de áreas desmatadas do cerrado. Beleza, em Paris milita-se na defesa das árvores enquanto em Porto Alegre mata-se gente.

Esse tipo de comportamento é velho e disseminado. Em 2001 a milícia formalizada da rede Carrefour prendeu duas mulheres no Rio de Janeiro e entregou-as à milícia informal de traficantes de Cidade de Deus. Foram espancadas, mas os bandidos não cumpriram a ameaça de queimá-las vivas. Quando o caso foi denunciado, o embaixador francês era o professor Alain Rouquié, um conhecido intelectual parisiense. Ele foi ao governador Anthony Garotinho e reclamou do noticiário que prejudicava a imagem internacional do Carrefour.

Pelos critérios americanos do século 19 e sul-africanos do 20, Mourão é uma “pessoa de cor”. A escrava de Thomas Jefferson com quem ele se acasalava era mais branca que o general.

Segundo o vice-presidente e muita gente boa, no Brasil não existe racismo, existe desigualdade. O que pretende ser uma explicação é um agravo. Desigualdade não explica esse tipo de assassinato. Eles são produto da demofobia, onde o racismo tem um papel funcional, pois a cor identifica as pessoas sem direitos. Se Mourão tivesse razão, a coisa funcionaria assim: se você é pobre, ferra-se, se ainda por cima é negro, dana-se. Pelo menos um dos três mortos de Volta Redonda era branco.

Brincando com computadores

O presidente do Conselho Nacional de Justiça, ministro Luiz Fux, anunciou que “nós precisamos nos aprimorar em aspectos tecnológicos, principalmente porque estamos lançando, pelo CNJ, o Juízo 100% Digital.”

Atrás desse nome bonito está a ideia de colocar todos os processos do país numa rede de computadores. Coisa de sonho. Como ensina a cartilha do CNJ: “Os magistrados poderão dar vista às partes para que digam se concordam com a tramitação de ação já distribuída de acordo com o rito do ‘Juízo 100% Digital”.

Entre a ficção de Brasília e a realidade de Pindorama, o projeto perfilhado por Fux equivale a uma cerimônia na qual o prefeito de Macapá anuncia um novo sistema de iluminação pública para a cidade.

O sistema foi exaltado durante a primeira reunião do Comitê de Segurança Cibernética do Poder Judiciário, criado do dia 11 de novembro. A porta havia sido arrombada uma semana antes, quando a rede do Superior Tribunal de Justiça foi invadida e a corte ficou vários dias fora do ar. Quatro dias depois o computador do Tribunal Superior Eleitoral engasgou, atrasando por algumas horas o resultado da eleição de domingo.

O problema seria despiciendo se não tivesse sido precedido por promessas megalomaníacas de pontualidade que chamavam o equipamento de “supercomputador”. Investigado, o acidente revelou-se consequência de um atraso na entrega de máquinas que deveriam ter chegado em março e só vieram em agosto.

Um Judiciário 100% digital é boa ideia, mas precisa de muita transparência e pouca pressa. Essa panela está no fogão do CNJ desde o ano passado e começou a andar depressa em julho, no meio da pandemia.

A iniciativa depende da utilização de um programa de integração das varas, criando um padrão que deverá ser seguido por todos os tribunais. Não se conhece o detalhamento da demanda. É coisa grande e tramita no sistema de reuniões virtuais dos ministros. Felizmente, a ministra Maria Thereza Assis Moura, corregedora nacional de Justiça, pediu que assunto fosse discutido numa reunião presencial. Ela deve se realizar na terça-feira (24).

O escurinho de Brasília já produziu um edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que pretendia torrar R$ 3 bilhões comprando computadores, laptops e notebooks para os alunos da rede pública. A Advocacia-Geral da União mostrou que a licitação estava viciada e que os 255 alunos de uma escola mineira receberiam 30.030 laptops. Até hoje não se sabe quem botou esse jabuti na árvore.

O “Juízo 100% Digital” precisará de software. Sem ameaçar a segurança da rede, o CNJ tem meios para divulgar as exigências técnicas para equipá-lo. Além disso, está embutida na ideia um discutível encanto pelo trabalho remoto.

Fux tem toda razão quando diz que “precisamos nos aprimorar em aspectos tecnológicos”. Quem já comprou um computador ou já contratou um serviço sabe que a melhor maneira para fazer isso é estudar direito as propostas, para cantar vitória depois. Em Brasília cultiva-se outro modelo: havendo um problema, lança-se um novo projeto.

Até tu, OAB?

A Ordem dos Advogados do Brasil se mete em tudo. Agora a Operação Biltre da Polícia Federal bateu em doutores que mexiam com processos do Tribunal de Ética e Disciplina da sua seccional paulista. Segundo as denúncias, a tarifa era de R$ 250 mil.

Diante dos mandados de busca e apreensão a seccional informou que “em razão da investigação a que tivemos notícia nesta data foi determinada a imediata apuração interna sendo que a OAB e o seu Tribunal de Ética e Disciplina estão cooperando com as autoridades competentes”.

Ótimo, mas o uso da expressão “está cooperando” tornou-se uma girafa desde quando foi usada pela Odebrecht.

No caso da Odebrecht, como se viu, o problema estava no fato de que a colaboração só começou quando chegaram os homens da Federal.

Para o bem de todos, a OAB de Raymundo Faoro não deixará essa história sair a preço de custo.

MADAME NATASHA

Natasha não perde uma fala de Bolsonaro e acredita que ele merece uma sugestão astroidiomática. A senhora acredita que deve pensar duas vezes antes de usar diminutivos.

Na metade de março, quando a Covid havia matado menos de dez pessoas, ele falou em “gripezinha” e “resfriadinho”. Na sexta-feira, 13, quando já haviam morrido mais de 160 mil pessoas, ele disse que “agora tem essa conversinha de segunda onda”. Na véspera a pandemia teve um pico, com 908 mortes.

Natasha é supersticiosa e suspeita que os diminutivos do capitão chamam desgraças.