populismo

Bruno Boghossian: Congresso pode afrouxar caixa dois, improbidade e investigações

Câmara faria um serviço ao país se modernizasse regras, mas ideia cria brecha para retrocessos

Poucas coisas movimentam tanto o Congresso quanto a força-tarefa que tenta mudar as leis que mexem com a vida política dos parlamentares. A ideia é reformar regras ultrapassadas e conter abusos, mas o esforço abre caminho para perdoar o caixa dois, blindar deputados e livrar prefeitos que fazem barbaridades com dinheiro público.

Logo nas primeiras semanas de atividade, os parlamentares lançaram um grupo de trabalho para reformar a legislação eleitoral. O Congresso faria um bem ao país se criasse regras modernas para a propaganda e o financiamento de campanhas. Os deputados, no entanto, também querem discutir retrocessos que interessam principalmente à sua sobrevivência política.

Voltaram ao debate monstrengos como o distritão, que enfraquece os partidos políticos e facilita a eleição de aventureiros para o Legislativo, e a flexibilização da cláusula de barreira, que impediria o enxugamento do número de siglas nanicas.

Segundo os deputados, também podem entrar na pauta mudanças para aliviar punições por caixa dois, um sonho antigo de muitos parlamentares. Além disso, eles estudam mexer na Lei da Ficha Limpa –que tem regras defeituosas, mas pode acabar desfigurada.

Os deputados elaboraram ainda a PEC da imunidade. De um lado, ela acaba com aberrações como a possibilidade de um tribunal de instância inferior afastar um parlamentar do mandato. De outro, dificulta prisões e impõe um excesso de restrições nas investigações contra políticos. Na prática, cria uma blindagem e abre caminho para imitadores do golpista Daniel Silveira.

Na Câmara, já se fala também em liberar o nepotismo e em afrouxar as punições contra políticos por improbidade administrativa. Esta mudança pode fazer a festa de prefeitos interessados em gastar dinheiro público sem prestar contas. A ideia tem o apoio de Jair Bolsonaro, que tenta fortalecer sua base eleitoral nos municípios. “Alguma coisa vai ser mudada, pode deixar”, avisou.


Maria Hermínia Tavares: Não é o que eles dizem: o piso de gastos em educação e saúde e seus críticos

Vinculação de receita é a forma possível de garantir prioridades

Na versão de seu relator, senador Marcio Bittar (MDB-AC), a proposta da emenda emergencial à Constituição, entre várias iniciativas para lidar com o presente aperto fiscal, extingue os pisos obrigatórios do gasto público com saúde e educação, assegurados na Carta de 1988.

A discussão sobre o tema não diz respeito ao reconhecimento das severíssimas limitações daquilo que o governo pode desembolsar sem comprometer sua capacidade política e administrativa ou travar de vez o já trôpego andar da economia. Só os nefelibatas —com ou sem diploma em ciências econômicas— podem imaginar que limites fiscais são perversas invenções do neoliberalismo.

Tampouco se trata de debate sobre liberdade de escolha, em que um imaginário prefeito governaria melhor se pudesse decidir, por conta própria, despender mais com a crescente população idosa do que com escolas de primeiro grau cuja clientela minguou. Só pode achar que esse é o dilema quem se imagina no país de Birgitte Nyborg, a simpática primeira-ministra dinamarquesa da série Borgen, da Netflix.

Não é demais lembrar a maneira pela qual instrumentos tão pesados —toscos, em português claro—, como as vinculações mandatórias, adentraram a Constituição. No texto original, saúde, Previdência e assistência social foram reunidas sob o mesmo princípio do direito universal à seguridade, garantido por um Orçamento único. No percurso da teoria à prática, descobriu-se porém que o cobertor era curto demais: para atender à Previdência, era comum deixar a saúde desassistida --em plena montagem do SUS. Por isso, não por uma perversa maquinação antiliberal, a EC (emenda constitucional) número 29 criou o piso de gasto.

Já a vinculação obrigatória de recursos à educação é anterior aos trabalhos da Constituinte: foi introduzida pelas chamadas emendas Passos Porto (EC 23/83) e João Calmon (EC 24/83), ambas visando assegurar recursos permanentes ao sistema público de ensino, nos três níveis da Federação. Incorporada à Carta, a vinculação foi aprimorada com a criação do Fundef em 1996 e sua transformação em Fundeb, dez anos depois. A meta sempre foi assegurar financiamento adequado e prover estímulos para reduzir o vergonhoso atraso educacional brasileiro.

Os pisos de gasto em saúde e educação destinaram-se a proteger as duas áreas da inevitável disputa por recursos quando as demandas são muitas; os interesses, divergentes; e o dinheiro, curto. Ou seja, uma forma de dizer que aquelas devem ser políticas de Estado, com estabilidade e permanência asseguradas, acima —e apesar— das intenções dos governantes de turno.

*Maria Hermínia Tavares, Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Ribamar Oliveira: O novo marco fiscal da PEC 186

Governo vai perseguir uma trajetória para a dívida pública

Se o substitutivo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186, apresentado pelo senador Marcio Bittar (MDB-AC), for aprovado, o teto de gastos da União, instituído pela emenda 95/2016, terá função complementar e poderá, no futuro, ser suavizado. Na verdade, a proposta institui um novo marco fiscal para a União, no qual o governo federal irá perseguir uma trajetória de convergência do montante da dívida pública para um limite definido em lei.

Um modelo semelhante é utilizado pela Suécia. Lá, o governo adota uma política fiscal que tem um limite para a dívida pública bruta, uma meta de resultado nominal e um teto para gastos de base móvel, que pode ser ajustado depois de um determinado período. Tanto o teto como a meta fiscal são fixados para manter a dívida bruta na trajetória pré-definida. Há uma série de outros detalhes que não cabe aqui especificar.

O fato é que os elementos básicos desse modelo estão presentes na PEC 186. O inciso VIII do artigo 163, que está sendo acrescentado na Constituição pela PEC, estabelece que uma lei complementar definirá a trajetória de convergência do montante da dívida com limites especificados em legislação. Não esclarece, no entanto, se o conceito a ser utilizado é o da dívida bruta ou líquida.

É importante observar que o modelo não propõe a fixação de um limite para a dívida da União. Um limite está previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (lei complementar 101/2000), mas nunca foi definido pelo Senado, pois o governo federal sempre foi contrário à ideia. Só há limites para Estados e municípios.

A PEC 186 estabelece que o governo vai propor uma trajetória para a dívida pública a ser alcançada durante um certo período de tempo. A trajetória terá que ser aprovada pelo Congresso Nacional. Acreditava-se, na área técnica, antes da pandemia da covid-19, que a dívida bruta do setor público brasileiro deveria convergir para 50% do Produto Interno Bruto (PIB). Naquela época, ela estava próxima de 74% do PIB. No pós-pandemia, a meta pode ser, por exemplo, 60% do PIB, que seria alcançada em um determinado período de tempo.

O Brasil poderá adotar um sistema de bandas de flutuação para a dívida, com um limite superior e outro inferior, semelhante ao adotado no regime de metas de inflação utilizado pelo Banco Central. Na Suécia, se a dívida se desviar, para cima ou para baixo da trajetória definida, mais de cinco pontos percentuais do PIB, o governo é obrigado a apresentar uma comunicação ao Parlamento, explicando a causa do desvio e apresentando um plano de como pretende retornar a dívida para o patamar determinado.

A meta de resultado primário das contas públicas terá que ser compatível com a trajetória para a dívida, prevê a PEC 186. Talvez o resultado possa ser fixado para vários anos, como ocorre na Suécia. Assim, o Brasil poderia fazer um planejamento de médio prazo de suas contas.

A lei complementar que vai regulamentar esta questão poderá definir medidas de ajuste fiscal, suspensões e vedações para que a trajetória da dívida seja alcançada. A PEC diz que a União, os Estados e os municípios devem conduzir suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis que assegurem sua sustentabilidade. E que a elaboração e execução de planos e orçamentos devem refletir a compatibilidade dos indicadores fiscais com a sustentabilidade da dívida.

Para a União, a PEC cria dois gatilhos que disparam as medidas de ajuste fiscal, com o objetivo de preservar o teto de gastos. Em situação normal, o governo pode adotar medidas de contenção toda vez que a despesa obrigatória primária, submetida ao teto de gastos, superar 95% da despesa primária total. Em situação de calamidade pública, reconhecida pelo Congresso, o ajuste deve ser realizado para compensar os gastos extras do período.

Se a PEC 186 for aprovada e o novo marco fiscal for colocado em prática, ficará mais fácil para o próximo governo adotar um teto de gasto mais flexível. A Suécia, por exemplo, define um teto para um período de quatro anos, sendo que o valor fixado para o terceiro ano é considerado impositivo. Para o quarto ano, o valor é apenas indicativo. Os novos cenários econômicos são anualmente analisados e, com base neles, o governo define o teto de gastos para outro período de quatro anos.

Outro ponto da PEC está relacionado com a sustentabilidade da dívida. Pela primeira vez será inscrito no texto constitucional que, na promoção e na efetivação dos direitos sociais, deve ser observado “o equilíbrio fiscal intergeracional”. A preocupação aqui, ao que parece, está relacionada com as decisões do Poder Judiciário, quando julga questões relativas a direitos individuais e coletivos.QuestionamentosA PEC determina que o presidente da República encaminhe, em até seis meses após a promulgação da emenda constitucional, um plano de redução gradual e linear de incentivos e benefícios de natureza tributária. Há, pelo menos, três questionamentos que precisam ser feitos.

O primeiro é saber por que o senador Bittar manteve este comando na PEC 186, uma vez que, neste momento, o Congresso discute a reforma tributária. Existe, inclusive, uma proposta do governo de unificação do PIS e da Cofins, com a criação da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS). Até aqui a estratégia do governo era deixar a redução dos incentivos para depois da reforma, mesmo porque a mudança dos tributos iria permitir a eliminação de vários deles. A manutenção deste artigo na PEC pode indicar que o governo tenha desistido da reforma.

A segunda questão é que o substitutivo de Bittar fala em “redução linear” dos incentivos e benefícios. É difícil imaginar como isso poderá ser feito. O terceiro questionamento é a PEC excluir da redução os incentivos à Zona Franca de Manaus, a desoneração da cesta básica e os benefícios tributários às micro e pequenas empresas, por meio do Simples Nacional, que é responsável pelo maior volume do gasto tributário. Não dá para reduzir o gasto de 4% para 2% do PIB com o que sobra, como dispõe a PEC.


Celso Ming: Estratégia populista e falso liberalismo

A intervenção de Bolsonaro na Petrobrás é mais uma das inúmeras demonstrações de que seu objetivo é ganhar as eleições de 2022

Algumas decisões do presidente Jair Bolsonaro podem passar a impressão de que a estratégia continua sendo de política econômica liberal. Mas é grave engano.

A intervenção desastrada do presidente na Petrobrás produziu enormes estragos. A principal divergência de Bolsonaro com o presidente da Petrobrás, Roberto Castello Branco, talvez não tenha sido a questão dos preços dos combustíveis nem a política adotada, mas de falta de afinidade visceral, do tipo “não vou com tua cara, e pronto”. Mesmo se fosse por aí, não seria preciso tanta truculência. 

A substituição do presidente da Petrobrás poderia ter sido feita com jeito. Afinal, o mandato de Castello Branco terminaria em março. Se o chefe dos acionistas majoritários quisesse trocar o comando da Petrobrás, como se viu que quis, teria bastado acionar os mecanismos ordinários previstos para isso sem a turbulência que se viu depois.

De todo modo, Bolsonaro parece ter sentido a necessidade de olhar para o outro prato da balança. Primeiramente, tratou de afagar a cabeça do ministro da EconomiaPaulo Guedes, que vinha sendo ignorado. Na terça-feira, trabalhou para dar andamento no projeto de privatização da Eletrobrás – outro item da agenda liberal. 

Nesta quarta-feira, além de sancionar a lei de autonomia do Banco Central, pleito que não pode ser considerado populista, o governo também encaminhou ao Congresso o projeto de privatização dos Correios. 

Há alguns meses, o governo mudou sua política em relação à China. A hostilidade ostensiva aos produtos chineses, manifestada inicialmente na definição das regras da conexão 5G, foi trocada por atitude mais pragmática.

vacina Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac, teve há alguns meses o veto do presidente por ser “vacina da China e do governador João Doria”.  Mas, diante da necessidade de iniciar a vacinação contra a covid-19 no País, o Ministério da Saúde acabou autorizado a comprá-la. Pesaram nessa mudança de postura os interesses do agronegócio, o setor mais dinâmico da economia brasileira.

Mas essa aparente correção de rotas não significa reconversão a uma política econômica de equilíbrio fiscal e de apoio às reformas, onde prevalecessem a racionalidade das decisões e os princípios da livre concorrência.

Bolsonaro deu inúmeras demonstrações de que seu objetivo é ganhar as eleições de 2022, custe o que custar. Para isso, ele precisa que a economia supere o atual marasmo e os 14 milhões de desempregados. Depois de ter feito os acordos já conhecidos com o Centrão, pretende conseguir a virada da economia com distribuição de auxílios sociais sem contrapartida de corte de despesas, com desoneração dos combustíveis também sem contrapartida fiscal, com preços artificiais da energia elétrica e com uma espécie de bolsa subsidiada aos caminhoneiros.

Ele também afirma que o dólar acima de R$ 4,50 não atende a seus objetivos. Mas não disse como conseguiria derrubá-lo dos níveis atuais. Será esse seu próximo alvo?


Adriana Fernandes: O 'assopra' do presidente a Guedes tem tudo para virar um 'morde' logo mais

Ministro recebeu elogios e afagos do presidente por dois dias, mas não apoio efetivo com resultados práticos

O presidente Jair Bolsonaro elevou de patamar o jogo de morde e assopra com o ministro da EconomiaPaulo Guedes, após o estopim provocado pela demissão do presidente da Petrobrás, as ameaças de mais intervenção na economia e o impacto de tudo isso no mercado financeiro.

Guedes recebeu elogios e afagos do presidente por dois dias, mas não apoio efetivo com resultados práticos. Segue, portanto, pressionado pelo Palácio do Planalto, ministros próximos do presidente e pelos aliados no Congresso.

O Ministério da Economia pode até dizer que o Guedes fez do limão uma limonada ao conseguir que o presidente fosse com ele numa caravana até o Congresso para entregar o texto da MP de privatização da Eletrobrás numa estratégia bem encenada que recebeu “aplausos” do mercado financeiro após o “combo” que levou ao tombo das ações da Petrobrás, Eletrobrás, Banco do Brasil, alta de juros, perda de confiança e disparada do dólar.

Esse é um jogo em que ninguém é enganado, muito menos o mercado que passa a mão na cabeça no governo e ajuda a desorganizar as coisas. O Congresso não é lugar de "protocolo" de projetos, em que se tem uma resposta passados X dias úteis. Lá, o governo precisa trabalhar pela aprovação de suas propostas.

O teste final do apoio a Guedes não será com a Eletrobrás. Tampouco com a privatização ou abertura de capital dos Correios, que entrou novamente em cena como resposta aos desdobramentos da troca na Petrobrás.

A prova de fogo para o ministro no cargo também pode até não ser a votação da PEC fiscal para a concessão do auxílio emergencial, que foi apresentada com medidas fiscais.

A equipe do Ministério da Economia não abre mão desse reforço no controle dos gastos públicos e sobe o tom nos bastidores para impedir o fatiamento do texto no Senado, que quer aprovar apenas a parte do auxílio na proposta. “Não vamos ceder a isso”, afirmam em coro. A Câmara também quer o mesmo, como revelou reportagem do Estadão.

A tendência, porém, é de aprovação de uma PEC desidratada porque os parlamentares alegam urgência para o auxílio. Um movimento esperado diante do fato de que a equipe econômica quer colocar um conjunto de medidas muito grande, além do bode na sala do fim do piso constitucional para aplicação de recursos orçamentários em saúde e educação. Não passa, mas serve para desviar a atenção.  

A valentia da equipe econômica em não querer ceder na PEC mostra resiliência, mas o seu sucesso dependerá de até onde o presidente Jair Bolsonaro estará disposto, na prática, a dar apoio à PEC “cheia”: auxílio mais contrapartidas fiscais.

Bolsonaro defendeu o auxílio, mas até esse momento não deu uma palavra contundente em defesa da aprovação das contrapartidas fiscais que lotaram o parecer do senador Márcio Bittar. Nesta quarta-feira, repetiu que é preciso ter responsabilidade fiscal. Sem ação, de nada valem essas palavras.

Se o presidente não entrar em campo, mesmo que só nos bastidores, o ministro vai perder mais essa parada e terá que apostar num compromisso dos parlamentares de aprovar uma segunda PEC até o final do segundo semestre com o resto das medidas.

Essa segunda PEC foi defendida por lideranças antes da divulgação do parecer de Bittar, mas Guedes e sua equipe apostaram no tudo ou nada com o temor de repetir o que ocorreu com a PEC paralela, resultado da divisão da reforma da Previdência no Senado e que foi abandonada mais tarde. A inclusão na PEC de medidas polêmicas, jabutis e afins só dificultou ainda mais a tramitação. Não dá para querer abarcar o mundo numa situação de emergência.

Mesmo como todos os reveses, o pior cenário para o ministro poderá se dar mesmo com uma eventual decisão do presidente de demitir secretários especiais da pasta e dividir o ministério na reforma ministerial. Tem muita gente querendo recriar os ministérios do Planejamento, Indústria e Comércio, além de Previdência e Trabalho.

Guedes já disse da boca da fora que “podem ficar com a Previdência porque já teve a reforma”, mas não é bem assim. A gota d'água para ele poderá ser mesmo o fatiamento do Ministério da Economia e a demissão pelo presidente de seus auxiliares.

O que se sabe após o episódio da Petrobrás é que as mudanças não vão parar por aí. É só o começo no que está sendo chamado no Palácio do Planalto como “ajuste de estrutura”. O "assopra" agora do presidente, que disse que Guedes é uma âncora para o governo, tem tudo para virar um "morde" logo mais, a depender do que se viu até aqui.


Maria Cristina Fernandes: Populismo fiscal de Bolsonaro embaralha jogo

Bolsonaro não cairá de podre, é o país que pode apodrecer

Ao mergulhar no populismo dos combustíveis e tarifas, o presidente da República faz uma aposta que não apenas o posiciona no jogo de 2022 como desmonta o daqueles que se apresentam para enfrentá-lo.

Na tentativa de forçar a polarização com o PT, Jair Bolsonaro mexeu-se para abraçar a pauta do adversário. E foi por ele abraçado. A ordem é “não importa a cor do gato, o que importa é que mate o rato”.

Nessa linha, os sindicatos de petroleiros comemoraram a derrubada do ex-presidente da Petrobras, Castello Branco, e alimentam expectativas, correntes também nos meios militares, de que a BR Distribuidora venha a ser reestatizada e a venda de refinarias, suspensa

O tom com o qual Jair Bolsonaro queixou-se publicamente do trabalho remoto de Castello Branco, não se diferencia muito daquele que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem usado, internamente, para se queixar dos dirigentes sindicais que evitam se expor às aglomerações da pandemia.

Se Bolsonaro se move para roubar a bandeira do populismo fiscal, como se diferenciaria do PT? Com seu programa “Armas para Todos” e com uma pauta radicalizada nos costumes, acelerando a volta do Brasil ao estágio pré-civilizatório.

O jogo é um campo minado para todo o resto. Um aumento médio de 30% nos combustíveis em menos de dois meses do ano afeta não apenas a base bolsonarista de caminhoneiros e produtores rurais, mas precarizados de toda ordem que hoje ganham a vida em aplicativos de transporte. É discurso para o campo e a cidade.

Não é à toa que o enfrentamento deste discurso desnorteie a oposição. Abraçar uma política de preços 100% ditada pelo mercado é um suicídio eleitoral. Atacá-la à la Bolsonaro também o é. Uma coisa é endividar o país quando se tem o poder nas mãos de implementar políticas que gerem crescimento capaz de pagar essa dívida.

Outra coisa é defender uma política de preços que passe por endividamento acelerado quando não se tem o poder nas mãos. Cenário que se agrava quando o presidente de plantão não tem compromisso com resultados, só com a tentativa. E piora em proporções estratosféricas quando o sócio majoritário é o Centrão.

O bloco quer acomodar esse avanço populista de Bolsonaro desamarrando os limites fiscais e destruindo não apenas as vinculações orçamentárias que garantem alguma chance de resgate da dívida social do país, como é o caso dos recursos da saúde e da educação.

O Congresso avança também para desmantelar o próprio Estado, como é o caso da desvinculação dos recursos que garantem a autonomia da Receita, contida no substitutivo da PEC emergencial. Sem verba vinculada, os auditores teriam que negociar todos os anos com o Congresso. Quais serão as próximas vítimas, o Judiciário, a Polícia Federal? Vão fazer fila para pedir dinheiro àqueles a quem devem vigiar?

O Centrão, como o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), deixou claro na “Live do Valor “, avança até para a intermediação dos recursos para as prefeituras. Quer eliminar a Caixa Econômica Federal, onde os critérios de liberação são mais rígidos, como agente dessa intermediação.

O ideal para o Centrão é que as transferências sejam feitas diretamente dos ministérios para as prefeituras, como aconteceu no repasse de emendas que marcou a eleição das Mesas. É um mecanismo por onde fica mais fácil operar as rachadinhas entre prefeitos e parlamentares.

É um golpe por dentro das instituições que ameaça desmontar a Constituição. E conta, no Judiciário, com atores bem postos para prestar serviços à sociedade Bolsonaro-Centrão, como se viu na invalidação das provas contra o senador Flávio Bolsonaro, mas não apenas.

As tentativas do presidente do Supremo, Luiz Fux, de estabelecer pontes com o Senado que lhe permitissem furar o cerco que lhe é imposto pela trinca Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, esbarraram na eleição do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) para a presidência da Comissão de Constituição e Justiça da Casa.

O ensaio de aproximação entre Fux e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) fracassou pela determinação deste em delegar integralmente as questões relativas ao sistema de justiça ao presidente da CCJ.

Sem pontes com o Congresso, os ministros que ainda buscam preservar os alicerces do controle da corrupção podem se tornar cada vez mais reféns das investidas do desmonte da Lava-Jato. Há expectativas de que, a requisição de informações do TCU sobre o registro de ligações de integrantes da operação, encontre ministros do Supremo do outro lado da linha.

A sociedade entre Bolsonaro, Centrão e Judiciário é o que faz com que o populismo fiscal do atual presidente seja muito mais grave do que aquele observado no governo Dilma Rousseff. A ex-presidente foi derrubada pela aliança de um mercado incomodado com a gastança e um Centrão/Supremo reativo à inação do governo frente ao avanço do programa “Lama para Todos”, patrocinado por juízes, procuradores e policiais federais.

O que torna a situação de hoje mais grave não é a rouquidão do 'Fora Bolsonaro'. Pior é a interdição de alianças que projetem alternativas competitivas para 2022, a começar pela aproximação entre esquerda e centro

Trata-se de uma corrida de obstáculos. A começar pela modulação programática. A esquerda se sente desobrigada de fazer concessões liberais ante um mercado que jogou na retranca quando seus presidentes estiveram no poder.

E ainda investe, ao lado do Centrão, na desidratação das instituições de controle. Justifica-se com o argumento de que, ao longo de seus governos, atuou para fortalecê-las e recebeu, como retribuição, atuações desmedidas contra suas lideranças.

Entre as lideranças de centro, a visão não é menos embaçada. Consumidos na fulanização de suas vaidades, estão mais interessados em comer pelas beiradas a aliança de Bolsonaro com o Centrão do que em lançar pontes com a esquerda.

Entre aqueles que têm chances de projetar um futuro para o país, no centro e à esquerda, a crença majoritária ainda é que o bolsonarismo cairá de podre. Não dá sinais de que cairá. Antes disso, é o país que corre o risco de apodrecer.


Marcus Pestana: Controles, corrupção e eficiência

Para cumprir seus objetivos, os governos erguem uma estrutura burocrática, leis e normas, processos, instrumentos de gestão. Projetos e programas são implantados combinando recursos humanos, orçamentários, físicos, tecnológicos e parcerias.

É um grave equívoco comparar linearmente a gestão privada e a pública. Na esfera de mercado, os recursos envolvidos são privados, e o empresário pode escolher livremente a aplicação de seus fundos financeiros, e, em caso de ineficiência, ser punido pela falta de competitividade, podendo ser excluído do mercado através de concordata e falência. No setor público é diferente. Os recursos orçamentários são de toda a sociedade que os prove através do pagamento de tributos. O gestor público enfrenta uma série de restrições e limites para que os recursos sejam bem aplicados. Daí a necessidade de concursos públicos, licitações, transparência e controles internos e externos.

A corrupção existe desde que o primeiro balcão público foi montado na Grécia Antiga ou no Império Romano. No Brasil, chegou a limite insuportável como demonstraram recentes acontecimentos. Isso impõe a necessidade de boas práticas administrativas, de transparência total e acompanhamento dos órgãos de controle internos e externos. Devemos ter tolerância zero com a corrupção. Mas hoje, estou convicto, a administração pública brasileira está sufocada na sua criatividade, capacidade inovadora e eficiência pelo excesso de controles exercido pelos tribunais de contas, controladorias e ministério público. Os servidores públicos tendem a ficar inertes, não ousar, não produzir, com receio de no futuro responder a processos com repercussões financeiras e pessoais muito além de sua capacidade de resposta. O conceito de improbidade ficou elástico. Há estudos que indicam que 95% dos processos nos tribunais de contas não envolvem dolo, prejuízo ao erário ou enriquecimento ilícito.

Vamos à vida como ela é. Fui por 16 anos gestor público. Em 05/01/2020 paguei uma multa de quase três mil reais aplicada pelo TCE/MG por emissão do ato de nomeação das comissões de inventário fora do prazo, falhas na gestão do patrimônio da secretaria de saúde e ausência de formalização dos procedimentos no gerenciamento de almoxarifados. Não fui ouvido e recebi o boleto para pagamento da multa. Paguei, já que contratar um advogado ficaria mais caro. Imagina um secretário de saúde que lidera milhares de servidores em centenas de estruturas setoriais, conseguir “abraçar o mundo com as pernas” e cuidar do detalhe do detalhe. Só se for um super-homem.

Recentemente, recebi outro comunicado do TCE/MG sobre um novo processo relativo a convênio com um consórcio intermunicipal do norte de Minas dentro do reconhecido e premiado programa de Transporte Sanitário, cuja prestação de contas não foi feita, embora a secretaria tenha cobrado e aberto tomada de contas especial. Valor histórico, R$ 250 mil, isto 13 anos atrás. Eram milhares de convênios e parcerias, ao secretário estadual de saúde caberia conferir recibos e notas fiscais de cada parceria empreendida para melhorar a saúde da população?

A auditoria do Ministério da Saúde também nos notificou para devolvermos 8 milhões de reais de um convênio de 2005 para fornecimento de equipamentos a vários hospitais de Minas Gerais, por, principalmente, não localizarem os equipamentos. Isto, dez ou doze anos depois dos fatos. Ao verificarmos o item de maior valor (R$ 1.298.000,00), um tomógrafo para o Hospital São João de Deus, de Divinópolis, obtivemos toda a documentação de que o aparelho foi entregue em 28/04/2010 e prestou excelentes serviços ao SUS no centro-oeste mineiro.

São apenas três em dezenas de casos. Orgulho-me da equipe que liderei e que construiu uma das mais admiradas experiências de gestão regional do SUS. Hoje ninguém mais, honesto e movido pelo interesse público, quer aceitar cargos. Os salários são baixos e os riscos enormes. Se não acharmos um novo ponto de equilíbrio vamos matar a administração pública. Tenho ex-assessores honestos, dedicados, excelentes servidores, modestos, que tiveram suas vidas arrasadas, sua imagem comprometida, problemas financeiros inacreditáveis e também de saúde, pelos múltiplos processos que enfrentaram. A eles dedico este artigo como pequena forma de homenagem. 

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Adriana Fernandes: Discurso de Bolsonaro de que não haveria intervenção na Petrobrás cai por terra

Que país quebrado pode abdicar desse dinheiro e com tanto a fazer na pandemia?

Foi pelo Facebook que o presidente Jair Bolsonaro demitiu Roberto Castello Branco do comando da Petrobrás, com a indicação do general Joaquim Silva e Luna como novo presidente da companhia.

A troca abre mais uma crise e consolida um movimento de forte intervenção do presidente na estatal para segurar, na marra, o preço dos combustíveis. Reforça também a política de populismo fiscal para a qual seu governo caminha a passos largos, para garantir a sua reeleição em 2022.

O discurso do presidente de que não haveria intervenção nos preços da Petrobrás, feito há uma semana, quando anunciou um projeto de lei para alterar a tributação do ICMS dos governadores e que tanto agradou o mercado financeiro, cai por terra.

De forma traumática, o ministro da EconomiaPaulo Guedes, perde mais um expoente do grupo que arregimentou e que estava ao seu lado durante a eleição do presidente e na transição de governo no final de 2018. Castello Branco foi indicação do ministro, de quem é amigo de décadas.

O ministro perde Castello Branco na equipe e perde também mais um alicerce da política econômica que se comprometeu a fazer e que previa carta branca para a companhia atuar, sem intervenção nos preços, prática que Guedes tanto condenou no governo Dilma Rousseff.

A decisão do presidente de zerar os tributos federais no diesel e levar a Receita Federal a perder mais de R$ 3 bilhões de arrecadação em apenas dois meses desmonta também a bandeira de ajuste fiscal de Guedes pregada no Congresso.

A equipe econômica exige corte de despesas como contrapartida para renovar o auxílio emergencial nessa nova fase mais aguda da pandemia da covid-19. Enquanto o presidente, na base da canetada, mandou reduzir a tributação do diesel e quer segurar na marra o preço do combustível pela via das contas públicas para atender os caminhoneiros.

Se já estava muito difícil conseguir aprovar no Congresso uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) com essas contrapartidas fiscais, agora o cenário fica mais turvo.

Que país quebrado, como assim classificou o próprio presidente, pode abdicar desse dinheiro em apenas 60 dias e com tanto a fazer na pandemia? Não faz nenhum sentido o acordo do ministro com o presidente diante desse cenário atual de negociação no Congresso. Não há coerência. 

O mais complicado é o governo permanecer calado, sem apontar o caminho de como implementará a medida. Não respondeu à mais simples das perguntas: afinal, quem pagará a conta?

Não há detalhes porque, a depender da vontade do presidente, a desoneração de tributos pode ser feita passando um trator por cima da Lei de Responsabilidade Fiscal, que exige compensação para a perda de arrecadação, via aumento de impostos ou corte de despesas. Tratorar a LRF é o que quer o presidente.

A área jurídica está quebrando a cabeça para entregar esse modelito ao presidente. E os técnicos do Ministério da Economia tentando encontrar um jeito para atender Bolsonaro sem ferir a LRF. Ou seja, fazendo a compensação.

Se não fizer essa compensação e passar por cima da LRF, Guedes vai perder integrantes da sua própria equipe no Ministério da Economia.

O problema da alta dos preços dos combustíveis que tanto incomoda o presidente Bolsonaro não é muito diferente do enfrentado pelos últimos presidentes. 

Em artigo recente, o economista Manoel Pires, do Ibre,  aponta que a elevada volatilidade do preço internacional do petróleo desde 2008 acentuou o problema. Pires ressalta que, com a elevada volatilidade, o governo Dilma 2011 iniciou uma política discricionária de reajustes e, em 2012, zerou a Cide Combustíveis para reduzir a defasagem do preço. A desoneração custou R$ 5 bilhões por ano.

O pacote dos caminhoneiros de Temer teve um custo total de R$ 13,5 bilhões. Houve ainda uma tentativa frustrada de tabelar o valor do frete que parou no Supremo.

"O que esses episódios estão mostrando é que esse problema virou um tema de política econômica e deve ser tratado como tal", diz o economista do Ibre. Não cabe mais improviso toda hora que os caminhoneiros ameaçam parar o País, boa parte deles apoiadores de Bolsonaro.


Bolívar Lamounier: Tentando enxergar o que está à vista

E o que está à vista não é o Jardim do Éden, mas a guerra de todos contra todos de ‘O Leviatã’

Onde estarão dentro de 25 anos os meninos que vão nascer na presente década? É cabível supor que muitas delas vão se conhecer revirando lixo em algum aterro. Algumas estarão distribuindo drogas nos bairros ricos, a serviço de traficantes. Muitas estarão cometendo assaltos e outras tantas estarão atrás das grades.

Projeções macabras fazem mal tanto à alma de quem as escreve como à de quem as lê. Mas são úteis como alerta, sobretudo quando o alerta de que se trata diz respeito simplesmente à necessidade de tentarmos enxergar o que está à nossa volta.

É bem singela a constatação que me leva a aborrecer os leitores com essa previsão macabra. Não, caro leitor, não vou falar da pandemia; a realidade que tenho em mente estava aqui muito antes dela. Somos, como os economistas não se cansam de repetir, um país aprisionado na chamada “armadilha da renda média”. Chegamos até com certa facilidade a uma renda per capita de US$ 10 mil por ano, mas quem afirmar que conseguiremos dobrá-la num horizonte de 20 a 30 anos o faz por sua conta e risco. E não nos esqueçamos de que esse será ainda um resultado medíocre. A renda per capita, como todos sabemos, é apenas uma fórmula, um resumo aritmético de uma infinidade de condições sociais. Neste ano da graça de 2021, há na área educacional uma experiência bem simples que o leitor pode fazer sem grande esforço. Vá a uma escola da periferia e convide a garotada a fazer alguns exercícios de tabuada. No trajeto de volta ao centro, ligue o rádio e tente se informar sobre o que o Ministério da Educação anda fazendo. Ou pelo menos adivinhar o nome do atual ministro. Seja paciente.

Se 60% ou 70% dos nossos jovens se deparam com dificuldades quase insuperáveis nas matemáticas, nas ciências e até no simples manejo do idioma, é forçoso inferir que, hoje, muitos deles já são fortes candidatos ao desemprego e à pobreza. Não resvalar para o crime já é um belo feito. No mundo quase totalmente urbano e crescentemente automatizado em que estamos entrando, cuja agricultura já quase não cria empregos, o que está à nossa vista não é o Jardim do Éden. É muito mais um cenário como o pintado por Thomas Hobbes em O Leviatã (1651): uma “guerra de todos contra todos”. Mas eis aqui um possível paradoxo. Hobbes ao menos discernia a possibilidade de alguma ordem se todos se submetessem a uma autocracia férrea, no pressuposto de que preservar a vida, sob quaisquer condições, seria um quadro aceitável em comparação com a guerra generalizada. Viver sob ditaduras será, então, a nossa salvação? Dobrando ou não a nossa anêmica renda per capita, viveremos sob uma robusta segurança garantida pelo Estado, vale dizer, por aqueles, anjos ou bandidos, que o controlarão?

Suscitar essa indagação no presente momento é a pior ideia que nos poderia ocorrer. Hoje o inquilino do Planalto é simplesmente o mais despreparado dos presidentes que nos foi dado ter desde o marechal Deodoro. Jair Bolsonaro não é apenas iletrado, é irascível e ignorante. Deixemos de lado sua atuação no combate à pandemia, sabidamente insensível e irresponsável, levando a extremos inconcebíveis suas chances de sabotar o trabalho dos agentes de saúde. Se Sua Excelência compreendesse que sua missão só pode ser sanar as cicatrizes da eleição de 2018, buscando a convergência e a pacificação, já seria alguma coisa. Mas, para o capitão presidente, seu papel deve ser justamente o oposto disso. Seu objetivo é a reeleição em 2022, e salta aos olhos que ele a vê como favas contadas, bastando-lhe para tanto manter e estimular a radicalização.

Claro, não creio que Jair Bolsonaro tenha poderes demiúrgicos. Sozinho, não é capaz de produzir nem o bem nem o mal em escala superlativa. Vez por outra deixa escapar uma aspiração ditatorial, mas ditadura, sobretudo num país populoso e diversificado como o Brasil, só existe com a colaboração das Forças Armadas, e estas servem ao Estado, não a um caudilho qualquer – missão que começaram a definir já nos anos 1930, sob a influência predominante do general Góes Monteiro. Seus timoneiros nem sempre acertaram o curso, mas a identidade da organização militar é essa.

Derrocamento dessa ordem, nem os outros dois Poderes me parecem capazes de causar. O que eles podem fazer – e inequivocamente insistem em fazer – é dificultar as reformas sem as quais permaneceremos por 30 anos ou mais no sufoco da “renda média”. Na Câmara, por exemplo, os óbices chegam ao disparate de às vezes se tentar desfazer alguns avanços que a duras penas logramos implantar na esfera da reforma política – entre os quais devemos destacar o fim das coligações partidárias nas eleições legislativas. Dias atrás o novo presidente da Casa, deputado Arthur Lira (PP-AL), manifestou a intenção de restaurar aquela excrescência, responsável direta pela cacofonia partidária em que temos vivido.

Eis aí uma clara ilustração de que nosso problema como país ainda não é tentar enxergar mais longe. É tentar enxergar o que nos queima diariamente os olhos.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultora, é membro das academias paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Hélio Schwartsman: O caso Silveira

Se esses grupos são um perigo, o STF erra por ainda não tê-los desmantelado

"Eu desaprovo o que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo". A frase é creditada a Voltaire, mas ele nunca a escreveu. O aforismo, porém, resume o pensamento do filósofo em relação à liberdade de expressão: ela precisa valer independentemente de concordarmos com o conteúdo do que é dito.

Eu discordo de cada palavra proferida pelo deputado federal Daniel Silveira e não tenho dúvida de que, ao atacar os ministros do STF, ele cometeu crimes contra a honra dos magistrados (se está coberto pela imunidade parlamentar é uma bela discussão jurídica).

Silveira pode também ter comedido delitos mais graves, tipificados na famigerada Lei de Segurança Nacional, mas é aí que a porca torce o rabo. Penso que não basta falar mal da democracia e das instituições para caracterizar esses crimes. Se bastasse, teríamos de banir Platão das bibliotecas. Para que uma fala antidemocrática constitua ilícito, é preciso que ela ocorra em um contexto em que ponha a democracia em risco real e iminente.

Se esses grupos ultrabolsonaristas são um perigo, o STF erra por ainda não tê-los desmantelado. Se não são, as sandices proferidas por Silveira não constituem razão suficiente para a cadeia.

Até entendo a reação dos ministros ao ver alguns de seus membros sordidamente xingados e ameaçados, mas, se há alguma instituição que precisa ser capaz de despir-se do "esprit de corps" e agir tecnicamente, é a corte suprema. As controvérsias jurídicas em torno da prisão não são pequenas e, fosse a vítima do ataque qualquer outra que não próprio tribunal, dificilmente veríamos um placar de 11 a 0 pelo encarceramento.

Quanto a Bolsonaro, seu silêncio sobre o caso completa o "grand slam" das traições a seu eleitorado mais fiel. Numa metáfora castrense, ele abandonou ao inimigo um companheiro ferido, o que, na ética militar, é a coisa mais vil e covarde que alguém pode fazer.


Evandro Milet: A espiral do silêncio sufoca o centro moderado e racional

Em meados da década de 70, a cientista política Elisabeth Noelle-Neumann formulou a Teoria da Espiral do Silêncio, após análise das pesquisas eleitorais na Alemanha. A ideia central é que as pessoas omitem sua opinião quando conflitantes com a opinião dominante devido ao medo do isolamento, da crítica, da zombaria, ou do que se chama hoje de cancelamento. O silêncio enfraquece ainda mais a opinião minoritária, e fortalece a opinião que parece prevalecer.

A propaganda política(e as redes, robôs e fake news) tenta então convencer que determinadas opiniões são majoritárias na sociedade para abafar a opinião contrária, o que nem sempre é verdade. As pessoas que concordariam com os que se calam  ficam constrangidas  e intimidadas e evitam se manifestar, em um crescendo nessa espiral do silêncio. Isso fica perceptível no Facebook em likes discretos que não se transformam em comentários. Há até uma expressão própria para essa síndrome, cunhada pelo psicólogo americano Michael Gervais: chama-se FOPO (“fear of other people’s opinion” ou medo das opiniões alheias)”. 

Durante muitos anos no Brasil, esse silêncio acontecia na direita, sem canais para se manifestar, principalmente nos costumes, onde a Rede Globo despontava com uma pauta civilizatória de avanços, engolida a contragosto por essa ala. O crescimento do número de evangélicos e a violência descontrolada, que desaguaram na eleição de Bolsonaro, desnudou esse pensamento, cujos simpatizantes se acharam maioria e passaram a cancelar o pensamento contrário. O duelo de cancelamentos fez com que a espiral do silêncio atingisse duramente o pensamento de centro, ora classificado como isentão, ora acusado de petista por um lado. Do outro lado, era culpado de ter apoiado o suposto golpe contra Dilma e ter permitido a eleição de Bolsonaro ao deixar de votar no professor Haddad, como se o PT merecesse ser votado, apesar do partido ter comandado o maior roubo da história.

A espiral do silêncio que atinge as posições de centro nas redes sociais libera cada vez mais uma espiral de sandices pouco contestadas, onde mesmo as manifestações mais absurdas sobre terraplanismo, remédios ineficazes, teorias da conspiração e mentiras são propagadas e defendidas vigorosamente. Ao mesmo tempo, o desastre que acontece nas áreas da saúde, educação, cultura, meio ambiente, relações exteriores, ciência e tecnologia e direitos humanos é solenemente ignorado ou justificado. Do outro lado prevalece a espiral da amnésia seletiva e a falta de autocrítica das lideranças petistas, mesmo diante do imenso volume de recursos devolvidos a partir de delações que colocavam tesoureiros do partido recolhendo percentuais de propinas em mochilas.

A suposta atual maioria, que as pesquisas de opinião restringem a no máximo 25%, são turbinadas por uma malha de propagadores, humanos e robôs, centralmente alimentadas. Amigos advertem amigos sobre postagens contra o governo como se não fossem patriotas ou avisam que “está ficando feio”, falando de dentro da sua bolha, supostamente majoritária. A espiral do silêncio provoca também o voto envergonhado que desmoraliza pesquisas ou o voto em quem se imagina que vá ganhar, para “não perder o voto”.

O centro democrático tem o defeito de ser moderado e racional em uma época que valoriza os extremos populistas, os discursos radicais e o ringue do “nós contra eles”. Que 2022 devolva a voz ao centro com a moderação, o racionalismo, o iluminismo, o desarmamento de espíritos para que o país possa crescer forte, com menos desigualdade e mais pacificado.


Pablo Ortellado: Um populista em ascensão

O deputado André Janones (Avante-MG) é o político mais popular sobre quem você não leu nos jornais — até agora. Embora seja o único político que consegue rivalizar em audiência e engajamento nas mídias sociais com o presidente Jair Bolsonaro, Janones é o que se poderia chamar de um deputado do baixo clero.

Seus números nas mídias sociais são impressionantes. Ele tem mais visualizações, mais compartilhamentos e mais engajamentos no Facebook do que Lula, Haddad, Ciro ou Doria. Só perde nesses quesitos para o presidente da República. Uma live que fez em 26 de março do ano passado explicando como acessar o auxílio emergencial teve 19 milhões de visualizações, aproximadamente 13% do eleitorado brasileiro.

Nada disso impediu que sua candidatura independente a presidente da Câmara tivesse apenas 3 votos. Antes, em 2019, sofreu um processo de cassação no Conselho de Ética por quebra de decoro, após dizer que seus colegas no Congresso eram “bandidos, corruptos e ladrões”. Sua live conclamando os apoiadores a defendê-lo teve 38 milhões de visualizações, surpreendentes 27% de todo o eleitorado.

Embora jovem (37 anos), Janones tem uma longa trajetória política, que passa pela UNE, uma militância em defesa dos direitos dos usuários do SUS no Triângulo Mineiro (“o Celso Russomanno da saúde”), até despontar como liderança do movimento dos caminhoneiros em 2018 e conseguir se eleger deputado federal. Foi filiado ao PT na juventude, passou pelo PSC e hoje está no Avante (antigo PTdoB).

Sua forma de fazer política, com uma carregada retórica anticorrupção e antissistema, além de uma conexão direta com os eleitores, dispensando a mediação dos partidos ou da imprensa, configura o que os cientistas políticos chamam de populismo —termo que, na sua acepção técnica, ele reconhece e adota.

Janones tem, porém, uma particularidade que o distingue de outros populistas brasileiros: tem uma agenda social forte. Ele votou contra a reforma da Previdência, defendeu as vítimas de Brumadinho contra os abusos da Vale e foi o mais aguerrido paladino do auxílio emergencial.

A combinação de uma pauta social com um discurso anticorrupção punitivista, embora muito comum entre os eleitores, é muito incomum no meio político brasileiro. Janones diz que prefere ser coerente com o povo do que com os políticos.

Essa postura lhe permite tomar equidistância tanto de Lula como de Bolsonaro, tentando escapar da polarização política e ampliar sua base de apoio. Essa tentativa de evitar a polarização se manifesta mais em independência política do que na adoção de uma agenda centrista.

O deputado tem também evitado os temas divisivos das guerras culturais, como ideologia de gênero, escola sem partido e armamento da população civil.

O esforço em não se definir como esquerda ou direita, como lulista ou bolsonarista, e em não tomar partido nas guerras culturais permite que se identifique apenas com o “povo”, esse termo vago e indefinido que o teórico político Ernesto Laclau chamava de um “significante vazio”.