política democrática #48
Revista PD #48: Eu S/A, o sujeito neoliberal
Pierre Dardot, filósofo, e Christian Laval, sociólogo, publicaram A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade Pneoliberal (Boitempo, 2016), obra de esclarecimento político sobre o neoliberalismo, que colheu farta contribuição do seminário “Question Marx”, organizado por eles para discutir o pensamento de Marx e do marxismo. Considerada pela crítica como engenhosa interpretação do capitalismo atual, tem, como referência central, “Nascimento da biopolítica”, curso ministrado por Michel Foucault, no Collège de France, em 1978-1979, editado no Brasil pela Martins Fontes, em 2008.
Por Cláudio Ferreira Lima
Revista Política Democrática #48
Trata-se, portanto, da abordagem do modo de governo, ou seja, do modo de conduzir a conduta dos homens, tanto a conduta que se tem para consigo mesmo quanto para com os outros. Assim, o neoliberalismo é, em essência, “uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados” (p. 17).
A norma de vida neoliberal “impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns com os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo de mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa” (p. 16).
Pois bem, a respeito desse indivíduo-empresa, que se constituipeça-chave na dominação neoliberal, os autores dedicaram o capítulo mais alentado do livro, que se intitula – et pour cause – de “A fábrica do sujeito neoliberal”.
Como se dá então a produção desse sujeito empresarial? Dardot e Laval explicam: “Não estamos mais falando das antigas disciplinas que se destinavam, pela coerção, a adestrar os corpos e a dobrar os espíritos para torná-los mais dóceis – metodologia institucional que se encontrava em crise havia muito tempo. Trata-se agora de governar um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente envolvida na atividade que se exige que ele cumpra” (p. 327).
Este ser é o EU S/A, quer dizer, o neosujeito, o sujeito neoliberal, que não se vê como trabalhador, mas, isto sim, como empresa que vende um serviço no mercado. Em sua gestão de si mesmo, fabrica para si mesmo um eu produtivo. É o homem da competição e do desempenho, que procura maximizar o seu capital humano em todas as direções, o empreendedor de si, feito para “ganhar”, ser bem-sucedido.
Daí, aos quatro ventos, “Uma imensa literatura de revistas, uma enxurrada de programas de televisão, um teatro político e mediático non stop e um imenso discurso publicitário e propagandístico exibem incessantemente o ‘sucesso’ como valor supremo, sejam quais forem os meios para consegui-lo” (p. 361).
A nova norma de si é a realização pessoal: autoconhecimento e autoestima, para chegar lá. Para isso, recebe formação especializada em empresas de si mesmo (coaching), onde ouve, ad nauseam, a conhecida frase de Tom Peters, um dos mais famosos gurus da gestão: “Corra! Bem-vindo à Era EU S/A. Você não é um título ou um cargo em uma empresa. Você é uma marca”.
Seguindo essa orientação, em A era do EU S/A: em busca da imagem profissional de sucesso (Saraiva, 2004), Marlene Theodoro mostra quanto a atuação individualizada, devotada a administrar uma marca, é crucial para o sucesso de qualquer indivíduo nos dias de hoje.
A nova ética do trabalho tem como grande princípio “a ideia de que a conjunção entre as aspirações individuais e os objetivos de excelência da empresa, entre o projeto pessoal e o projeto da empresa, somente é possível se cada indivíduo se tornar uma pequena empresa. Em outras palavras, isso pressupõe conceber a empresa como uma entidade composta de pequenas empresas de si mesmo” (p. 334).
Ora, numa perspectiva patológica, “Quando o sujeito empresarial vincula seu narcisismo ao sucesso de si mesmo conjugado com o da empresa, num clima de guerra concorrencial, o menor ‘revés do destino’ pode ter efeitos extremamente violentos. A gestão neoliberal da empresa, interiorizando a coerção de mercado, introduz a incerteza e a brutalidade da competição e faz os sujeitos assumi-las como um fracasso pessoal, uma vergonha, uma desvalorização” (p. 363).
Ainda nessa mesma perspectiva, “A depressão é, na verdade, o outro lado do desempenho, uma resposta do sujeito à injunção de se realizar e ser responsável por si mesmo, de se superar cada vez mais na aventura empresarial” (p. 366).
Para o sujeito neoliberal, não há quadro estável, carreira previsível e solidez nas relações humanas. A vida profissional é feita de “transações pontuais” (e não de relações sociais), com o mínimo de lealdade e fidelidade. E, como empresa de si mesmo, EU S/A vive, diuturnamente, em risco.
Como ressaltam os autores, “O risco tornou-se um setor comercial, na medida em que se trata de produzir indivíduos que poderão contar cada vez menos com formas de ajuda mútua de seus meios de pertencimento e com os mecanismos públicos de solidariedade. Do mesmo modo e ao mesmo tempo em que se produz o sujeito de risco, produz-se o sujeito de assistência privada. A maneira como os governos reduzem a cobertura socializada dos gastos com doenças e aposentadoria, transferindo a sua gestão para empresas de seguro privado, fundos comuns e associações mutualistas intimados a funcionar segundo uma lógica individualizada, permite estabelecer que se trata de uma verdadeira estratégia” (p. 348).
A norma do risco muda, e ele passa a ser menos “risco social”, assumido pelas políticas públicas, e cada vez mais “risco ligado à existência” (p. 349).
Para Dardot e Laval, a crise mundial é “a crise de um modo de governo das economias e das sociedades baseado na generalização do mercado e da concorrência” (p. 27), que corrói os laços sociais e destrói, conforme Ulrich Beck (Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. 34, 2010), citado pelos autores, a dimensão coletiva da existência, liquidando tanto as estruturas tradicionais, sobretudo a família, quanto as classes sociais.
Mais que nunca, é preciso superar o neoliberalismo, lutar por outra razão do mundo; porém, para tal, como advertem os autores, não se pode “Continuar a acreditar que o neoliberalismo não passa de uma ‘ideologia’, uma ‘crença’, um ‘estado de espírito’ que os fatos objetivos, devidamente observados, bastariam para dissolver, como o sol dissipa a névoa matinal, é travar o combate errado e condenar-se à impotência. O neoliberalismo é um sistema de normas que hoje estão profundamente inscritas nas práticas governamentais, nas políticas institucionais, nos estilos gerenciais” (p. 30).
É preciso estar bem consciente de que “é mais fácil fugir de uma prisão do que sair de uma racionalidade, porque isso significa livrar-se de um sistema de normas instaurado por meio de todo um trabalho de interiorização. Isso vale em particular para a racionalidade neoliberal, na medida em que esta tende a trancar o sujeito na pequena ‘jaula de aço’ que ele próprio construiu para si. Assim, a questão é, primeiro e acima de tudo, como preparar o caminho para tal saída, isto é, como resistir aqui e agora à racionalidade dominante. O único caminho provável é promover, desde já, formas de subjetivação alternativas ao modelo da empresa em si” (p. 396).
A nova razão do mundo sustenta-se no que Dardot e Laval chamam de “o princípio do comum, que emana hoje dos movimentos, das lutas e das experiências [e] remete a um sistema de práticas diretamente contrárias à racionalidade neoliberal e capazes de revolucionar o conjunto das relações sociais” (p. 9).
Para eles, “Cabe a nós permitir que um novo sentido do possível abra caminho. O governo dos homens pode alinhar-se a outros horizontes, além daqueles da maximização do desempenho, da produção ilimitada, do controle generalizado. Ele pode sustentarse num governo de si mesmo que leva a outras relações com os outros, além daquelas da concorrência entre ‘atores autoempreendedores’. As práticas de ‘comunização’ do saber, de assistência mútua, de trabalho cooperativo podem indicar os traços de outra razão do mundo . Não saberíamos designar melhor essa razão alternativa senão pela razão do comum” (p. 402).
Esta nova razão, conforme os autores, “faz prevalecer o uso comum sobre a propriedade privada exclusiva, o autogoverno democrático sobre o comando hierárquico e, acima de tudo, torna a coatividade indissociável da codecisão” (p. 9). Enfim, como diz Caetano: “Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem/ Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem Juízo Final”.
* Cláudio Ferreira Lima é economista, ex-secretário adjunto do Desenvolvimento Econômico do Estado do Ceará
Revista PD#48: Reforma Política e Governo Representativo
A reforma política é um tema que recusa ser esquecido, apesar da má vontade da classe política e de muitos intelectuais. De chofre, reaparece como uma artimanha das cúpulas partidárias emaranhadas nas teias da Lava-Jato. Seja como for, precisa ser enfrentada com seriedade e não sutilmente escanteada por meio do abuso ao senso-comum antipartidário dominante no país – atavismo da inadaptação nacional à democracia, como bem observara Sérgio Buarque de Holanda na primeira metade do século passado.
Por Hamilton Garcia de Lima
Revista Política Democrática #48
Um dos focos principais desse senso-comum se dirige contra a adoção da lista fechada no sistema proporcional, sob o argumento de que ela enfraqueceria o vínculo entre eleitores e candidatos, levando "à ditadura das cúpulas partidárias" em detrimento do direito de escolha do eleitor.
A crítica é fraca e falsa sob variados aspectos; vejamos alguns. Uma das razões para que a reforma política não saia da agenda do país é precisamente o fato de que o modelo vigente (lista aberta) levou, ao longo das últimas três décadas, o vínculo entre representantes e eleitores aos piores patamares da história republicana – não obstante o juízo de muitas autoridades acadêmicas que, nos anos 1990-2000, prognosticavam o amadurecimento do modelo.
Os motivos para essa deterioração crescente são muitos, mas deve-se destacar, em particular, a opacidade do método de distribuição das cadeiras legislativas pelo coeficiente partidário-coligacional, que faz a "mágica", aos olhos da sociedade, de eleger candidatos com os votos dos não eleitos, de tal modo que nem os políticos, em sua esmagadora maioria, sabem exatamente de onde vem os votos que efetivamente os elegem, nem os eleitores a quem seus votos efetivamente consagram, pois a grande maioria votou em candidatos que não se elegeram.
Não bastasse isso – em si, suficiente para explicar o estranhamento do eleitor em face de "seu" representante e o descompromisso desse em relação àquele –, a ideologia liberal reforça a alienação recíproca ao propalar uma abstrata primazia do eleitor que, supostamente, como vimos, escolhe o candidato usando para tal do discernimento natural. A fábula de uma razão descolada de contextos (interesses), estruturas (instituições) e tradições (cultura), só serve aqui para encobrir a farsa do sistema atual de escolha do eleitor.
Na verdade, ao contrário do que propõe essa ideologia, nosso eleitor encontra-se perdido num cipoal de siglas e nomes que pouco explicam/significam e que o impede de ter a visibilidade mínima para qualquer escolha razoável em termos, mesmo que apenas, de seu interesse individual. Sendo obrigado a votar em condições tão nebulosas, o cidadão acaba sendo naturalmente atraído pelos elementos mais visíveis no jogo: os candidatos-singulares, que se destacam pela capacidade ou acúmulo comunicativo, em meio ao mar de nulidades políticas individuais, ou pela oferta de alguma materialidade imediata, individualmente significativa, como vantagens pecuniárias ou acesso ao poder, tudo isso sem maiores considerações acerca dos efeitos colaterais de tais opções sobre a administração e o interesse público.
Na cabeça de significativos segmentos do nosso eleitorado – e até mesmo para alguns de nossos intelectuais ingurgitados de Lattes –, a oferta de serviços públicos por canais privados de clientela eleitoral, que oferecem privilégios em troca de voto, em nada se relaciona com a má qualidade do serviço público, em geral, sendo apenas uma forma supostamente inofensiva de remediá-la.
Descaminho
Mas, esse descaminho do Estado pelo sistema democrático de votação – sintetizada por uma liderança comunitária do Farol, em Campos dos Goytacazes/RJ, em 2007, nos seguintes termos: "o voto no Brasil corrompe" –, não produz efeitos apenas sobre as políticas públicas por ele impactadas, mas igualmente sobre o âmago do processo democrático, atingindo mortalmente a soberania do eleitor, sem que a abordagem liberal disso tenha a menor ideia.
Para muitos em nosso país – e isso não se limita aos pobres –,a soberania do voto se transformou numa relação fetichizada que, à semelhança do fetiche da mercadoria discutido por Marx em O Capital, transforma, em nosso caso por meio da gratidão ou ambição, o eleitor de portador da soberania do voto em tutelado por um patrono que lhe concede, sob a forma de favor, aquilo que formalmente está estabelecido como direito, distorção esta que, ao contrário daquela ensejada pelo poder econômico privado e seus enlaces de privilégios e superfaturamentos com a administração pública, não pode ser combatida por nenhuma Operação Lava-Jato.
Toda esta realidade, que fere de morte o direito de escolha do eleitor nas eleições proporcionais e subverte a essência do sistema democrático, transcorre sob a chancela da fetichista lista aberta, que, apesar de todas as evidências em contrário, continua sendo defendida pelos liberais programáticos como "garantia da liberdade de escolha do eleitor".
Não é por outro motivo que os antídotos às doenças da alienação eleitoral e da perversão democrática , insistem em voltar ao centro do tabuleiro político quando o tema da reforma política emerge, mesmo em meio à grossa neblina lançada ao vento pelos apóstolos da liberdade abstratamente concebida; me refiro ao sistema de lista fechada e ao voto distrital, que podem ser aplicados isoladamente ou combinadamente, com ou sem financiamento público de campanha.
Ambos têm uma qualidade cuja falta corrói nosso sistema político: a de responsabilizar os partidos pelos mandatos conquistados em seu nome, ao mesmo tempo que reforça os vínculos dos candidatos com seus partidos, já que ambas as fórmulas ensejam disputas internas reais pelas vagas de candidato ou sua ordenação na lista, com impactos importantes sobre a vida das agremiações políticas. De outro lado, elas também tornam transparentes ao eleitor/representante o destino/fonte de seu poder, criando condições efetivas para a sinergia político-programática entre o eleitor e o eleito. Em síntese, eleitores, eleitos e elites partidárias se tornam corresponsáveis pelo resultado dos mandatos conquistados e ninguém pode fugir às suas responsabilidades em caso de fracasso das apostas – o que, no caso do eleitor, implica seu deslocamento na direção de outra opção partidária.
Oligarquias
O efeito colateral criticado nesses remédios é o fortalecimento das oligarquias partidárias, embora ele já se manifeste patologicamente na ausência de sua administração, no sistema hoje vigente. Ao contrário de oligarquias, o que os medicamentos em tela poderão propiciar é o aparecimento de novas elites com base no pressuposto da transparência que deverá surgir no processo de construção de candidaturas, que hoje se instituem (fetichistamente) órfãs de pai e mãe, fruto de interesses escusos articulados em convenções anômalas, marcadas por um anonimato que apenas se rompe, pontualmente, com as escolhas de candidaturas no âmbito majoritário, sobretudo para o Executivo. Nas novas condições criadas pela reforma aqui discutida, os partidos oligarquizados terão que se abrir em alguma medida à sociedade, sob pena de ficarem exclusivamente dependentes dos velhos métodos de compra de votos e cooptação, mais fáceis de serem penalizados em face da brutal simplificação eleitoral propiciada pela lista fechada e o voto distrital.
Por fim, a manutenção da proporcionalidade, na modalidade lista fechada, trará uma vantagem importante em relação ao sistema distrital: o sistema de responsabilização/simplificação das eleições poderá ocorrer sem a perda da pluralidade política-ideológica duramente conquistada nas lutas pela redemocratização dos anos 1970-80. Ademais, a lista fechada tem um aspecto pedagógico não desprezível ao promover o fortalecimento da disputa programática entre os partidos em detrimento das personalidades.
Infelizmente, estamos forçados em nossa reforma política a realizar uma pauta novecentista: criar laços mais efetivos e duradouros dos partidos com a sociedade, por meio da formação de elites políticas genuinamente ligadas aos interesses sociais, que pudessem lastrear, como indicava Weber no início do século passado, os governos e as disputas que constituem a alma da democracia parlamentar.
O desafio não é pequeno. Em nosso caso, trata-se não apenas de um programa de reforma institucional (legal), mas de recuperarmos aquilo que se perdeu no naufrágio da democracia de 1946: uma cultura de poder que restaure a sociedade como a base do governo representativo.
* Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense - UENF
** Texto originalmente publicado na Revista Política Democrática #48
PD #48: Interrogações sobre o fator Janot e o desfecho do governo Temer
Por Paulo Fábio Dantas Neto
O balanço dos 44 anos durante os quais a política tem sido o centro das minhas atenções, antes de militante e político, depois de estudioso e professor, permite-me o recurso luxuoso à nostalgia. Por outro lado, recusa-me o direito à ingenuidade. Por essa razão não compartilho celebrações (nem as de boa-fé) que se fazem diante dos fatos e factoides que vieram a público no a meu ver factualmente obscuro e politicamente obscurantista dia 17 de maio de 2017, data de uma operação de ataque cujo alvo foi o presidente Michel Temer e os protagonistas (os visíveis a olho nu), o comando do MPF, a PF e um empresário que vinha sendo investigado pelos dois primeiros.
Pessoas e grupos crentes no advento de uma nova era, isenta de corrupção política, que já se deixavam somar (por apoliticismo mais do que por afinidade), num mesmo polo político, a outras pessoas e grupos nostálgicos da ditadura, em protestos de rua e nas redes sociais desde 2014/2015, hoje já concordam, pontualmente, na rejeição ao governo Temer, com o polo político ao qual se opunham, quer dizer, aquelas pessoas e grupos esperançosos de um retorno ao status quo político superado pelo impeachment de Dilma Roussef. Formou-se, por acidente – ou não tanto assim –, curiosa coalizão de veto ao esforço pacificador do governo de transição. Na hora em que este governo parece balançar e, a princípio, migra, de súbito, de um momento de consolidação para uma crise que pode até ser terminal, afinidades eletivas entre os dois polos da escalada de radicalização política que persiste há três anos no país fazem ecoar o “Fora Temer” como se fosse um clamor nacional.
Clamam estridentemente os que na esquerda gostariam de revogar a Lava-Jato, mesmo sabendo que a queda do governo, se ocorrer, será obra, não da oposição de esquerda ou de movimentos sociais, mas da força daquela operação. Alimentam o mesmo bordão, embora com menos alarido e convicção, antipetistas e antilulistas seguidores exaltados da Lava-Jato, mesmo vendo que a queda do governo abre brecha para os “inimigos” voltarem ao jogo do poder que lhes parecia inalcançável após as últimas eleições municipais e delações das primeiras semanas de maio último meio agosto.
Na contramão desse coro excêntrico, persuade-me a ideia de que o virtual fim do governo parlamentar, se realizado, expressará uma derrota da política. Como tal representará, para além da queda de um governo impopular, um obstáculo à reconstrução do centro político democrático, obra complexa que seguia curso sinuoso desde o ano passado, após sua destruição durante a guerra pelo controle do Estado, travada a partir da eleição presidencial de 2014.
Tornou-se lugar comum dizer que a sociedade brasileira está dividida de modo radical entre duas posições políticas, como numa disputa entre torcidas fanáticas. Para alguns mais ligados em jargões teórico-políticos, é direita x esquerda, elite x povo ou neoliberalismo x política social. Em redes sociais há traduções ainda mais simplórias dessa narrativa, como confronto indigesto entre “coxinhas” e “mortadelas”, ou duelo pessoal entre Moro e Lula. Estes modos de exprimir a mesma coisa refletem um “modo de pensar” de claques mais ou menos organizadas e de pessoas fidelizadas por algum tipo de dogma, carisma, ou tabu. Identifi- car isso com a percepção do povo, ou mesmo do eleitorado é, no mínimo, um exagero e, no fundo, uma mistificação. Quem usa de boa vontade para olhar e escutar além do seu redor, de prudência para avaliar o que vê e ouve e de autonomia para pensar com a própria cabeça repara que enquanto as brigas de torcida se acir- ram, mais pessoas “comuns” delas tomam distância e anseiam por uma solução conciliadora da crise política. Este tipo de saída permite tratar de problemas públicos sem comprometer, como se tem feito, relações profissionais, de vizinhança e amizade e até o convívio em ambientes familiares. A recusa ao espírito de claque não é uma atitude política “alienada”. Compartilham-na pessoas que possuem variados níveis de instrução formal, informação e compromisso político. Penso que é o terreno social sobre o qual se pode reconstruir um centro democrático no Brasil.
Pensamento Político
Ocorre que há uma representação do modo maniqueísta de pensar o momento político que, ao contrário das que listei acima, parece ter mais conexão com a percepção das pessoas comuns: a luta do “Santo Guerreiro” (a Lava-Jato) contra o “Dragão da Maldade”, o sistema político. Ela sugere que estaríamos no limiar de uma vitória do bem, com a submissão da imperfeita democracia mundana e dos seus malditos corpos representativos a desígnios e ritos sumários de uma suposta “vontade geral”. Esta, por sua vez, seria guiada, além de pela fé, pela economia política ligeira de formadores de opinião para os quais violência urbana, caos na saúde e educação, inflação, recessão e desemprego seriam meros efeitos colaterais da corrupção. Daí que, como pontificam os arautos da faxina, uma assepsia radical no sistema político teria efeitos demiúrgicos. A antevisão de um quase paraíso moral e social, alcançado pela vitória do combate sem tréguas à corrupção, “doa a quem doer”, legitima meios excepcionais de investigação e punição, assim como justifica sacrifícios para pagamento à vista de todos os preços sociais, inclusive o de estancar uma incipiente recuperação econômica ao implodir o “malévolo” sistema político que, bem ou mal, pode viabilizá-la, numa democracia.
O eco (momentâneo, espero) desta perversa fantasia no imaginário de ampla parte da sociedade esconde, sob aparências de novidade, a reiteração extremada de um velho modo de pensar que está na base de aventuras jacobinas, autoritárias, ou fundamentalistas que, na história política brasileira, afirmaram querer revogar o pragmatismo conciliador de nossas elites políticas. Quando, por vezes, conquistaram o poder do Estado ou de governo agiram para exercer tutela e/ou para angariar clientela onde reinava a conciliação.
O pragmatismo conservador e liberal (não fundamentalismos doutrinários, como o neoliberal) deu-nos à luz como Estado e nação, conciliando o Estado e a representação política – que civilizaram a sociedade – com o ethos comunitário a um só tempo rude e cordial desta última, vindo da experiência de nossa formação social. Tal elitismo civil, que se conservava moderadamente atento aos temas de reforma social sem contrapô-los às instituições liberais, quando exposto ao contexto virtuoso que ligou a luta democrática dos anos 70 e 80 à Carta de 1988 achou, na nova feição do Ministério Público, um de seus modos de conversão à condição de uma força democrática. Decerto não foi o MPF a única instituição desenhada na Carta para controlar as variadas modalidades empíricas de exercício arbitrário ou criminoso do poder político. Mas nenhuma melhor do que ela exibe a inédita possibilidade de fazê-lo em proveito, não de outros particularismos, de corporações ou grupos políticos que se achem em eventual colisão com os governos, mas em proveito dos cidadãos de uma República definida como um Estado Democrático de Direito, definição que já registra a ultrapassagem das concepções elitistas da política e do direito e projeta esta ultrapassagem como processo aberto ao que vier no futuro.
Esta nobre instituição ameaça desviar-se de seu mister republicano e democrático – que vem honrando com zelo e eficácia, durante as últimas décadas – pelo modo corporativista e obscuro de sua ação ao conduzir a delação prodigamente premiada de proprietários de uma corporação empresarial que se fez gigante em tempo recorde, graças, além de agressividade nas relações de mercado, também ao auxílio de irresponsabilidade e corrupção estatais.
O inusitado modo de agir do MPF nesse episódio surpreende e suscita perguntas que não querem calar. Por que o uso, nesse caso específico que envolvia o presidente da República, de um rito mais sumário para viabilizar a delação, quando o senso de responsabilidade institucional recomendava justamente que se usasse o mais cauteloso? Por que uma operação que se autodenomina “controlada” foi tão meticulosa e certeira para viabilizar flagrantes e tão descuidada na checagem posterior da gravação suposta- mente mais comprometedora, conforme a própria PGR admitiu depois de já feito o estrago político e institucional? Como aceitar a explicação de que a incúria se deveu ao intento de preservar o sigilo da operação se, na prática, o sigilo já não havia mais quando o ministro Fachin recebeu o pacote? Nova incúria seguiu-se à primeira e deu lugar ao vazamento? Vazamento, aliás, desta vez duplamente seletivo, do conteúdo e do receptor privilegiado, um jornalista de O Globo que deu o furo não se sabe se por dever do emprego, se por escolha de quem vazou ou se por ter sido gentil ou formalmente aconselhado por quem sabe o caminho das pedras a seguir a máxima futebolística de Gentil Cardoso: “Quem pede, recebe; quem se desloca, tem preferência”.
Nuvens
Estas nuvens já carregam bastante o ambiente, mas ainda têm a companhia de outra, que suscita pergunta adicional, agora sobre o fato de ter a dupla de empresários safos lucrado ao especular no mercado cambial e na bolsa a partir de informações privilegiadas derivadas da condição de delatores que colaboravam com os investigadores em tempo real. Quer dizer, a metodologia adotada implicava em prévio conhecimento dos delatores sobre o momento de deflagração da operação da qual eram participantes e não só informantes. Este privilégio adicional, somado à prodigalidade dos prêmios formais da delação, torna excepcional o caso dos sortudos irmãos Batista e deixa no ar a pergunta arrematadora: vale a ideia de punir corruptos, doa a quem doer, mesmo que para isso se deixe porta aberta também à de que, em certos casos – especialmente naqueles em que todas as partes são mais relevantes – o crime compensa?
Pouco altera, para o que vai ser adiante analisado, o ultimatum do MPF à JBS fixando condições pecuniárias duras para que se celebre um acordo de leniência. Mesmo veraz, ela não remediará o estrago político causado pelo tratamento voluntarista e heterodoxo, para dizer o mínimo, que o comando da instituição deu à delação premiada dos seus proprietários. Assim como não anula o tratamento privilegiado e comparativamente injusto, em termos econômicos e de abstenção penal, concedido a tais delato- res. Bois gordos foram postos à frente do carro da política, de modo a levá-lo a parar e ter sua rota a seguir desviada, rumo a um pasto ignorado. À parte as controvérsias habituais sobre intenções e motivações, bem como sobre a validade ética e a eficácia prática de tais ou quais técnicas de investigação policial, o timming e a metodologia da operação levaram a ação da Procuradoria-Geral da República a assumir, objetivamente, o risco de provocar uma virtual queda de um governo de transição constitucional que naquele momento atuava, a duras penas, nos limites permitidos por circunstâncias herdadas e novas e nos da precária qualidade dos valores morais da elite política que acessou o poder dentro, também, dos marcos constitucionais. Tal governo, de manifesto caráter parlamentar, impôs-se as missões de restabelecer a governabilidade política em interlocução com o Congresso e de reverter a recessão econômica e o desemprego que se radicalizaram quando essa overnabilidade faltou, a partir de 2015. O cumpri- mento até então exitoso da primeira missão e os ainda tímidos e ambíguos sinais de encaminhamento da segunda foram suspensos, quem sabe revertidos, pelo uso inédito de um bisturi mais cortante, cujo manejo deve estar, constitucionalmente, condicionado ao escrutínio do Poder Judiciário.
Em vez de acolher a hipótese de inflexão também na conduta até aqui sóbria do ministro Fachin, prefiro pensar que o STF foi, mais uma vez, colocado diante do fato incontornável de que não poderia deliberar livremente sobre a homologação da delação relâmpago, dado o mais que provável e, afinal, consumado vaza- mento do conteúdo das informações para veiculação por medias ávidos por acessá-las para antecipadamente julgar, mais do que para informar. Mas ainda não se sabe ao certo se e como o STF deu consentimento prévio ao até então inédito script procedimental adotado pelo MPF para a obtenção de provas nesse caso. Mais intrigante ainda é que, no cumprimento da agenda do ministro-relator, o levantamento do sigilo de um processo que continha fatos que já haviam virado notícia levou mais tempo do que a grave decisão de autorizar a investigação formal da pessoa do presidente da República. É intuitiva a conclusão de que a parte da opinião pública que pede assepsia para já, além de pautar, via mídia, os movimentos do Ministério Público, também exerce influência sobre decisões toma- das no âmbito do STF, mesmo quando estão em jogo delicadas relações institucionais. O STF não transpareceu na cena com o protagonismo supremo que dele se espera em situações nas quais uma deliberação sua repercute fortemente na grande política.
O lastro social para tão espaçosa e perigosa incursão do MPF e da Polícia Federal no âmago da grande política provém da recente legitimação social da vocação de órgãos policiais para ocupar o lugar de justiceiros e da também recente adesão do comando do MPF à imagem do santo guerreiro, que já era aberta- mente assumida pelos mais conspícuos membros da corporação no âmbito da Lava-Jato. À diferença do juiz Sergio Moro, cuja moderação judicial aprimora-se à medida em que a operação entra num momento que exige também maiores sensibilidade e responsabilidade políticas, os procuradores de Curitiba seguem pregando, obstinadamente, com retórica plebiscitária, o reconhecimento da Lava-Jato como guardiã plenipotenciária da ética republicana e, como tal, ocupante do lugar de mais relevante e virtuosa instituição nacional. A este figurino e a este programa adapta-se, paulatinamente, a conduta prática do procurador-geral da República, por decisão própria ou por livre e espontânea pres- são exercida por setores de um quadro corporativo que ele parece não liderar a contento.
Bateu, levou
O chefe do MPF agiu à base do bateu/levou, método que já vinha testando, sem que outras autoridades da República se expusessem ao risco de serem censuradas pelo senso comum por apontarem em público e interpelarem, republicanamente, a ousada esgrima praticada em final de mandato pelo mais alto prócer de uma instituição relevante. Houve, é claro, a conspícua exceção do ministro Gilmar Mendes. Porém, suspeito de parcialidade pelos imparciais e odiado por ambas as turmas que se digladiam em redes sociais, não pôde se fazer ouvir o bastante na República emparedada pelo maniqueísmo. Parece estar perdendo a parada, no STF e fora dele.
O dr. Janot moveu-se como um Deodoro sem farda. Que ordem política se espera ver brotar dos escombros da atual, se a queda do governo Temer for mesmo o desfecho deste grave momento crítico? Se assim for, o presumido drible no Poder Judiciário (ou a insólita cooptação de quadros seus), bem como o desmonte de um Executivo que agia construtivamente em consórcio com o Legislativo imobilizariam, na prática, os poderes moderadores reais de que se dispõe para levar o país a um porto mais seguro até as eleições de 2018. Nada é certo, pois é missão da política desmanchar pratos feitos e achar soluções quando parece sofrer xeque-mate. Mas, no mínimo, fomos mergulhados, de novo, na incerteza e, se a pinguela cair, a disputa do poder tornado mais provisório queimará nas mãos de um Legislativo solteiro e alvo de contestação pública. Entendimentos de bastidores que, logicamente, seriam necessários para cumprir a tarefa levariam a uma solução melhor, em termos de confiabilidade social e eficácia política, do que a do arranjo montado para o governo Temer? Suspeito que não.
Ou será que a solução passaria por apagar as luzes dos basti- dores congressuais e transferir a disputa para urnas também carentes de luzes e premidas pelas urgências da crise? Ela tem chance de se resolver numa eleição direta travada sob desordem econômica refundada e sabe-se lá que casuísmos políticos de urgência? Será como montar arenas para claques movidas a ódio e para raposas e/ou outsiders movidos a demagogia, quando o encontro da solução requer uma racionalidade política e econômica que só medra quando conflitos são mediados, condição que há três anos não temos plenamente, mas da qual voltamos agora a nos distanciar mais.
Fora dessas hipóteses, há a do aumento do protagonismo judiciário, não à toa a preferida das organizações Globo, mas também até mais benigna, do ponto de vista de evitar, a curtíssimo prazo, um esgarçamento ainda maior das instituições democráticas para o qual a campanha de desestabilização da mesma Globo já contribui bastante. Mas o que esta solução supostamente moderada nos apontaria, como ponte para 2018? No mínimo a perda mais acentuada, pelo Judiciário, do seu já arranhado papel como instância arbitral, em face do envolvimento direto de alguém seu na gestão do governo em período de crise e pré-eleitoral. O prejuízo institucional só não seria maior que o desastroso uso simbólico da Justiça por um quadro dela migrado para o âmago de uma política demagógica que não ousa dizer seu nome.
Opção menos insólita e menos radical – embora se constitua também em precedente perigoso – seria o protagonismo judiciário ater-se a assegurar uma curtíssima interinidade para convocar o processo de busca de solução para o mandato tampão, em caso do Congresso a ela renunciar por se ver impedido de exercer esta sua prerrogativa constitucional pela força dos argumentos e dos veículos de pressão da suposta “vontade geral”. Mas se essa vontade geral/global tivesse o poder de vetar os políticos até como articuladores da solução, por que motivo aceitaria que fossem, eles próprios, a solução?
Mesmo que totalitários sejam muito poucos entre os adeptos da faxina, não é provável que estes últimos, sendo vencedores na operação contra Temer, permitam, depois dele, uma solução que revigore a Weimar tropical que denunciam e desestabilizam. É mais provável que o processo político, se se render ao monitoramento pela lógica investigativa e midiática, permita o assassinato serial de toda e qualquer alternativa política que surgir, desde que, entre mortos e feridos, garanta-se a continuidade da política econômica e promova- se, talvez, uma reformatação da reforma previdenciária, para não pô-la em colisão com interesses de algumas (poucas, é claro) corpo- rações do Estado. Em compensação, no quadro de um novo governo tampão com tais características, as corporações menos afortunadas do setor público terão saudade do deputado Artur Maia e até do quase unanimemente rechaçado PMDB.
Hipóteses
Como visto, há várias hipóteses para o desfecho A (queda de Temer). Mas qual cenário emergirá se porventura se der o desfecho B, a manutenção do presidente? Nem precisaremos da ajuda da TV Globo para admitir que se temos vivido tempos bicudos, os que viriam o seriam ainda mais. A começar pela hipótese de mais gente comum migrar da rejeição massiva e passiva ao governo, registrada em pesquisas de opinião, para uma participação em eventos organizados pela oposição política e por seus braços sindicais e nos movimentos sociais. O adensamento desse tipo de manifestação poderia ser suportado sem abalos graves, mas não a sua conversão em manifestações de massa, como as enfrenta- das pelo governo Dilma. Para evitar essa conversão, um Temer firme, enfático e agressivo, mas sem perder a elegância, como o que se mostra em declarações nesses dias de acuamento, teria que voltar às telas mais vezes para conversas mais diretas com a massa do eleitorado. Teria pendor e meios para isso se permanecesse sem um acordo ainda que provisório, com os canais de expressão da vontade geral/global?
Outro jeito não haveria senão tentar, pois a olímpica versão de que não se importa com impopularidade, se já não cabia bem em qualquer situação vivida por um presidente de um país democrático, em caso de um governo Temer II teria que ser abandonada completamente. O governo provavelmente não seria mais tão forte no Congresso, pois algumas das defecções, como a do PSB, não parecem reversíveis, a curto prazo. Tenderiam a aumentar os problemas internos em cada bancada partidária, o que forçaria o governo a fazer uso mais pródigo da caneta administrativa para abrir mais espaços a velhos e novos aliados e da tesoura política para abrandar ainda mais a reforma de Previdência. Surgiria aí uma nuvem: até que ponto o ministro Meireles sustentaria o apoio de agentes econômicos a um recuo relevante nessa área? Mais um fator que aconselharia a tentar um armistício com a suposta vontade geral. Por outro lado, um maior abrandamento da reforma previdenciária poderia desarmar parte do petardo armado contra o governo no último dia 17 de maio. Mesmo se a PF seguisse inflexível, talvez o bateu/levou perdesse adeptos no interior do MP. Ainda mais se incluída na pauta de negociações a troca do seu comando.
Concluída a digressão sobre cenários tateados na penumbra atual, voltemos ao MP e ao fator Janot. A mesma penumbra não permite que já se saiba agora se a instituição sairá desgastada ou fortalecida, após a arriscada operação em que a meteram. Se aparentemente faltam ao procurador-geral da República (como de resto aos seus até aqui explícitos parceiros de operação) pretensões jacobinas, o que então o animou a tanto? Talvez não caiba, por inútil, essa especulação, típica de redes sociais e que nos levaria aos limites do insondável, ou do insólito, como a de supor que ele tivesse a veleidade de oferecer, no curso ainda do seu mandato, ocasião para um bombástico grand finale da Lava-Jato: a entrega da cabeça de Temer e seu governo para o regozijo de madalenas que desejem ver inerte a geni apedrejada e com isso se contentem. E também para o sossego de agentes econômicos que receiam o tipo de impacto que vinha sendo previsto a respeito da delação do ex-ministro Palocci. Mas ainda que quisesse, a cúpula da PGR poderia dar essa pirueta só em acerto com os veículos da vontade geral/global e sem combinar isso em sua casa e também com Moro, Fachin e o STF? Não se negue a esses interlocutores institucionais um derradeiro voto de confiança.
Uma vacina contra teorias conspiratórias agiria no sentido de considerar que, tanto ou mais que a vontade dos atores, mesmo dos mais poderosos e influentes, estão envolvidas nessa operação, por mais heterodoxa que ela tenha sido, razões de legítima natu- reza institucional. Mas o exercício especulativo sobre o que moveu a ousadia e a agressividade do procurador-geral (ou a de quem ele chancelou) pode se deter também em hipóteses mais prosaicas, ligadas à luta interna da própria corporação.
Diz quem conhece o MPF (não é meu caso) que a comunidade de procuradores não se perfila, sem nuances e mesmo objeções, à cartilha dos missionários do MP em Curitiba. As razões estariam em diferentes conceitos e concepções normativas sobre a práxis da instituição e também em contendas por posições de poder, sensíveis, por exemplo, à prisão de um procurador na esteira da operação que ora comentamos. Esta cena colateral ao escândalo, nas palavras do dr. Janot, colocou gosto amargo na vitória que para ele a instituição ali obteve. O doce e o amargo propiciados pela ocupação do mais alto posto de comando da instituição decerto não são irrelevantes e podem fazer pensar que a instalação de um novo governo possibilitaria, ao atual chefe do MPF, influir no rumo de sua sucessão em grau maior do que aquele possível no atual governo. Esta miragem pode tanto se remeter a um governo sem Temer como a eventual governo Temer II, saldo do enfrentamento seguido por negociação com quem for preciso.
Conduta
Se inútil ou afoito for especular em qualquer dessas direções, é relevante registrar a relação da conduta da PGR com sua condição de ser, entre as instituições mais relevantes da República (incluindo seus Poderes), a única que não teve mudança de comando do fim da era petista para cá. Observando alterações de conduta derivadas da sucessão de Dilma Rousseff por Michel Temer; de Ricardo Lewandowski por Carmem Lúcia; de Renan Calheiros por Eunício de Oliveira e de Eduardo Cunha por Rodrigo Maia, o impulso corporativo ou personalista cedeu claramente lugar ao da concertação. Por isso tivemos (vínhamos tendo), o fim da paralisia dos poderes governativos e a consequente moderação da escalada de protagonismo político do Judiciário, sem prejuízo do seu pleno funcionamento e das demais instituições de controle nas esferas que privativamente lhe competem. Entre vantagens democráticas dessa convergência republicana há a maior proteção comum dos Poderes do Estado face à exposição de cada um, isoladamente, a pressões de corporações privadas e às relações perigosas sempre possíveis nesse circuito.
Há (ou havia) razões para supor, pelo andar da carruagem, que a sucessão na PGR, em setembro, dar-se-ia (mesóclise acidental) em sintonia com essa lógica política que retoma tradições cultivadas nos melhores dias dos nossos poderes civis, geralmente esquecidas em tempos de normalidade e retomadas quando nas crises se aguça o seu instinto de sobrevivência. Como ficará este jogo agora, se Temer cair? O Ministério Público emprestará sua colaboração de instituição republicana a uma concertação que preserve o Estado Democrático de Direito e fortaleça a Constituição para que a justiça republicana possa trabalhar em terreno político simpático a um permanente e sustentável combate à corrupção? Ou manterá performance sollo, surfando na fantasia faxineira? Caso consiga, com ajuda de veículos eficazes de formação de opinião, persuadir imediatamente a sociedade, essa promessa vã faria do Estado Democrático de Direito e da Carta de 1988 vítimas, a médio e longo prazos, de capturas corporativas por interesses privados ocultos em embalagens demiúrgicas difundidas por uma instituição de vocação democrática instrumentalizada em troca de tolerância ao seu corporativismo.
Se a pinguela realmente cair, torçamos para que quem torceu ou contribuiu para a sua queda – seja por vingança política ou por achar que valia a pena para denunciar a corrupção – saiba chegar a um bom porto nadando em águas turbulentas, pois estão de volta as que quase nos afogam no ano passado. E torçamos, principalmente, para que às águas turbulentas não sucedam águas turvas, como as de um passado autoritário e também corrupto que nós e nossos filhos não merecemos que volte para nos afogar de verdade e não só nas narrativas dos que chamam de golpe, ou de crime continuado, o ensaio de transição desse último ano. Ele deu lugar a que espíritos politicamente informa- dos e animados, mas não contaminados pela lógica binária que nos afundou na crise, vislumbrassem, nas idas e vindas do ensaio, o possível retorno da política por vocação, a que cultua valores mas, realista, também se dirige ao público como nas palavras de Max Weber: “eis-me aqui, não posso fazer de outro modo.”
* Artigo publicado originalmente na Revista Política Democrática #48