palacio do planalto

Pedro Fernando Nery: Novo IDH verde expõe hipocrisia dos países ricos

É justo que haja clareza sobre o quanto do desenvolvimento dos países ricos se baseia na destruição do planeta

Esta é a semana do Dia da Terra: vale aproveitar a ocasião para conhecer o novo IDH, que ajusta o tradicional índice de desenvolvimento humano para “pressões planetárias” (IDHP). Assim, além de informações sobre renda, educação e saúde, o novo IDH contempla a emissão de carbono e a pegada ecológica por habitante. Mensura então o quanto o desenvolvimento de um país pressiona a Terra, expondo vários países ricos – que despencam no ranking do IDH.

Peguemos o exemplo da Noruega, diversas vezes considerado o país de maior qualidade de vida, número 1 na classificação do indicador. As ruas de suas cidades têm ciclovias e estações para carregamento de carros elétricos. Sua política externa é preocupada com a mudança climática, sendo marcante o episódio da suspensão das doações ao Fundo Amazônia com o aumento do desmatamento no governo Bolsonaro. O novo IDH a constrange.

É que a Noruega perde nada menos do que 15 posições no indicador com os ajustes feitos pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Não deve voltar ao topo do ranking tão cedo: em parte porque o país é um grande produtor de petróleo. Digamos que os painéis solares de Oslo são viabilizados pela riqueza de suas exportações, que vira por exemplo combustível fóssil queimado em outros países.

Dessa forma, o novo IDH expõe de forma clara uma certa hipocrisia que já era criticada. Sobre a convivência da agenda verde dos noruegueses com a venda de petróleo de suas gigantescas reservas para o resto do mundo, o jornalista Michael Booth comparou a Noruega ao “traficante de drogas que não usa seus produtos”.

O vexame também é de outros países, o que talvez explique a baixa cobertura da imprensa internacional para o novo IDH, ou a tímida divulgação do próprio Pnud (que embora disponibilize os dados, optou por não divulgar o ranking reclassificado). O rico que mais perde é Luxemburgo, caindo mais de 130 posições.

Brasil ganha dez posições no novo IDH, menos do que vários países latino-americanos, muitos dos quais são os que mais ganham posições no IDHP entre países do mundo todo. Vários vizinhos nossos ganham mais que 20 posições. Seriam, para usar a definição oficial, países cujo desenvolvimento humano atual não pressiona o planeta e a desigualdade entre gerações. Segundo a ONU, esse IDH verde “deve ser visto como um incentivo para transformação. Em um cenário ideal, em que não houvesse pressões no planeta, o IDHP seria igual ao IDH”.

Vale frisar que o novo indicador, como o tradicional, tem limitações. Pode-se alegar que medidas sintéticas perdem a utilidade quando incorporam informações demais. E sempre haverá informações a incorporar. Por exemplo, a nova número um é a Irlanda, cuja prosperidade está em algum grau associada ao seu papel cada vez mais relevante de paraíso fiscal – em prejuízo de outros países. 

Assumidamente experimental, o novo IDH verde gera um ranking com curiosidades. Quando a sustentabilidade entra na conta, o Brasil é considerado mais desenvolvido que a Austrália, o México desbanca os Estados Unidos, o Sri Lanka ultrapassa a Coreia do Sul. A Costa Rica, que mais ganhou posições, supera em desenvolvimento humano a IslândiaPortugal ganha da Finlândia. E o Panamá surge na frente do Canadá no novo IDH.

A diplomacia dos países desenvolvidos poderia ser desafiada com a nova abordagem. Além da Noruega, os Estados Unidos é outro país que cai muito na reclassificação. Por mais desastrosa que seja a atual política ambiental brasileira, por que deveria se dar tanto status às críticas de países cuja emissão por habitante é, respectivamente, quatro vezes ou oito vezes maiores que a nossa? 

O IDH verde poderia ser um trunfo então para os países mais pobres, que deram menos causa à mudança climática e podem sofrer mais com ela (por conta dos efeitos na agricultura, por exemplo). Se vão ter seu crescimento econômico limitado pelos esforços de mitigação nos próximos anos, é justo que haja clareza sobre o quanto do desenvolvimento dos países ricos se baseia na destruição do planeta.

*DOUTOR EM ECONOMIA 


Monica de Bolle: Pensar o Brasil é largar os corrimões

Visto de longe e de perto, o Brasil dos economistas e da imprensa tradicional permanece preso a dogmas

O título desse artigo serve para o mundo: para dar conta do mundo, é preciso soltar os corrimões. Pensar sem corrimões é das imagens de Hannah Arendt que mais gosto, embora, como outras metáforas e conceitos da autora, tenha se tornado um pouco banal nos nossos tempos. O ato de pensar, isto é, de refletir com distanciamento, mas também com sensibilidade, precisa ser livre. Se não for livre, caso precise de muletas ou de limites pré-estabelecidos, não será pensamento. O pensamento precisa da liberdade porque, ao pensar, nós nos movemos. Há muito me debato com os limites do pensamento no Brasil. O livre pensar não parece ser do gosto nacional. As pessoas exercitam algo que não é bem pensamento, mas reflexões circunscritas, que têm lugar dentro de espaços convenientes e coniventes. Vozes são uníssonas e debate não há.

Deixei o Brasil em 2014. Naquela época, já escrevia e participava do debate público havia alguns anos. Também já havia ficado claro para mim que vozes dissonantes incomodavam mais do que deveriam, se os discordantes as quisessem ouvir. Nessa época, eu não era uma voz dissonante. Não viria a sê-lo até 2016, quando passei a criticar a política econômica de Temer. Até então, havia criticado a política econômica de Dilma, algo que se encaixava perfeitamente nos limites aceitos pela economia tradicional, tal qual praticada no Brasil. Dessas críticas resultou um livro, Como matar a borboleta azul: uma crônica da era Dilma. Por ter sido publicado em 2016, ano do impeachment, muitos o interpretam equivocadamente até hoje. Não tratei de escrever um livro sobre por que Dilma deveria sofrer impeachment, que considero um dos maiores erros que cometemos. O livro trata das políticas econômicas de seu governo e afirma desde o início que, apesar de bem-intencionadas, elas foram mal pensadas e mal elaboradas. Penso do mesmo modo até hoje e vejo no impeachment algo que tem nos custado muito. A reflexão sobre as políticas econômicas não é incompatível com minha visão sobre a remoção forçada de Dilma, o que na época chamei de “impeachment de coalizão”.

Quando Temer assumiu e apresentou de afogadilho reformas que precisavam de maior aprofundamento para não criar enormes problemas para o país, eu o critiquei. O maior erro cometido no governo Temer – e escrevi vários artigos sobre o assunto em 2016 – foi a criação do teto de gastos. O erro não é pela ideia de teto de gastos. O teto é uma regra fiscal como qualquer outra e há vasta documentação sobre seu uso em diversos países na literatura. O problema do teto aprovado naquele ano é que a medida foi mal desenhada de princípio: jogou o ônus do ajuste para além do governo Temer e instituiu uma regra excessivamente rígida, que ia de encontro às garantias constitucionais das despesas com a saúde e a educação. Nessa época o teto virou fetiche dos economistas de linha tradicional à brasileira, e, como voz dissonante, comecei a ser criticada. Mas eu não tinha muita visibilidade, de modo que ainda há quem acredite que eu tenha sido árdua defensora do teto roto. Paciência.

Em 2017, mantive minhas colunas no Brasil, mas passei a escrever mais sobre o meu trabalho no Peterson Institute for International Economics. Não havia muito o que dizer sobre o Brasil e eu estava mais interessada no que se passava aqui nos Estados Unidos, com a vitória de Donald Trump e as tratativas para o Brexit. Voltei ao debate nacional em 2018 por ocasião da eleição que deu a Presidência a Jair Bolsonaro, uma catástrofe previsível que tantos insistem em negar, talvez por vergonha, talvez por falta dela. Contudo, só fui me envolver mesmo com o Brasil no último ano.

Logo após os primeiros sinais da pandemia comecei a pensar como o Brasil seria afetado e quais seriam as medidas para enfrentar a inevitável crise econômica que sobreviria da crise de saúde pública. Ativei um canal que tinha no YouTube, mas que não usava, para falar sobre economia e saúde e ajudar a orientar as pessoas. Os brasileiros se mostravam bastante perdidos em relação ao que estava acontecendo e desorientados quanto ao que fazer. A partir do conteúdo desenvolvido no canal publiquei um livro chamado Ruptura (Rio de Janeiro: Intrínseca), em meados de 2020.

O livro reúne reflexões variadas e recomendações de política pública. Em sua página 71 algumas recomendações foram resumidas assim: “(a) um suplemento emergencial imediato do benefício do Bolsa Família em pelo menos 50%; (b) a instituição de uma renda básica mensal no valor de R$ 500 para todos os registrados no Cadastro Único que não recebem o Bolsa Família; (c) a abertura de R$ 50 bilhões em créditos extraordinários para a saúde, com a possibilidade de se aumentar esse montante; (d) aprovação do seguro-desemprego com maior flexibilidade e celeridade; (e) recursos emergenciais para os setores mais afetados pela crise no valor de pelo menos R$ 30 bilhões; (f) a abertura de linhas de crédito do BNDES para micro, pequenas, e médias empresas pois são elas as que mais empregam; (g) um programa de infraestrutura para sustentar a economia no médio/longo prazo com a utilização de recursos do BNDES”.

Nos meses subsequentes, em artigos, transmissões no canal, webinários e entrevistas, falei exaustivamente sobre essas medidas, sobre o papel de uma renda básica para complementar os programas de proteção social e sobre o uso dos bancos públicos no combate à crise. Expliquei conceitos básicos de economia, e outros nem tão básicos, entrando em temas áridos como o famoso quantitative easing, a política de compra de títulos do governo pelos bancos centrais. Discorri sobre inflação e deflação, alertei para o fato de que o mundo inevitavelmente passaria por quarentenas intemitentes e que o Brasil teria de aprender a lidar com isso. Nada disso foi dito à toa. Tudo foi pensado e refletido à exaustão depois de muita leitura, mas sem que pudesse me escorar em conhecimentos estabelecidos. Simplesmente não havia respostas à mão.

Aliás, ficou claro para mim desde o início que o conhecimento da minha área de formação, a economia, era um empecilho para pensar o Brasil da pandemia. Houve críticas, houve elogios, mas isso é o de menos. Sinto-me satisfeita por ter me apresentado em hora difícil e cumprido meu papel o melhor que pude. Ao longo do tempo, como estava estudando temas de biomédicas, meus interesses foram migrando cada vez mais para a saúde. Falei de imunologia, virologia, genética, vacinas, e esses são os assuntos que hoje me fascinam. Tomei distância da economia.

Ao tomar distância da economia, também fui tomando distância do Brasil. Visto de longe e de perto, o Brasil dos economistas e da imprensa tradicional permanece preso a seus dogmas – o do teto, o da responsabilidade fiscal, o do medo inflacionário, e tantos outros – e me parece tornar cativa a sociedade. Esse país dogmático não me interessa, pois não há mais nada a pensar. A minha prática sempre foi a de deixar para trás o que já não serve. Já não serve falar de economia no Brasil e já não serve ter canal no YouTube, com tantas coisas que quero ler e estudar. Essa coluna passará a tratar desses temas, assuntos de natureza global e da saúde pública. Aos que me leem, aos que me acompanharam no último ano, desejo que aprendam a pensar sem corrimões.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia na Georgetown University.


Carlos Andreazza: Breve roteiro para a CPI

Participei, ontem, do podcast “O assunto”, comandado por Renata Lo Prete. O tema: a CPI da Covid no Senado. Mais precisamente: as questões a serem investigadas na CPI. São muitas. E merecem desenvolvimento em texto; sobretudo porque clareiam um padrão.

Começo com o caos em Manaus. Está documentado que o Ministério da Saúde fez escolhas ali. Nada a ver com lentidão em dar respostas. Escolhas consistentes com o conjunto de posições que tomou ante a pandemia; conjunto com que o governo Bolsonaro opera — o padrão — para prolongar a permanência do vírus entre nós, o que garantirá as condições de desordem radical em que o bolsonarismo prospera.

Escolhas. Por exemplo: mesmo informado de que faltaria oxigênio, promoveu, às vésperas da desgraça, uma caravana pela cidade para difundir a adoção de tratamento precoce. E, no dia mesmo do colapso, mandou 120 mil comprimidos de hidroxicloroquina ao Amazonas. (Os responsáveis por essa ode a um medicamento ineficaz continuam no ministério; razão mais que suficiente para que Marcelo Queiroga também seja ouvido na CPI.)

Sobre cloroquina/hidroxicloroquina, precisa ser chamado o general Fernando Azevedo e Silva, então ministro da Defesa, para esclarecer a produção de milhões de comprimidos, com recursos para enfrentamento à peste, pelo laboratório do Exército.

Outra escolha do governo em Manaus: só transferir internados a outras cidades se “em situação extremamente crítica” — esta sendo aquela em que, segundo uma servidora do Ministério da Saúde, os hospitais estivessem “todos superlotados”, com “pacientes dentro de ambulâncias, indo a óbito”. Isso compõe apenas modesta porção dos motivos para inquirir Pazuello, embora não me possa esquecer das acusações — sem nome — que fez ao se despedir. Quem seria a liderança política cujos pedidos não republicanos teria se negado a atender?

Tão importante quanto investigar as escolhas do governo ante a barbárie em Manaus será analisar as várias versões oficiais — informadas e remendadas, inclusive ao Supremo — sobre as datas em que o ministério teria sido notificado sobre a crise iminente. Alguém mentiu. Há um vaivém inaceitável, que sugere trabalho para apagar rastros que comprovariam negligência.

Também será relevante apurar por que chegamos à falta de medicamentos para entubação se havia notificações formais projetando essa escassez desde maio de 2020. E se sabemos que o ministério cancelou, em agosto do ano passado, uma importação desses insumos, mesmo alertado pelo CNS sobre a projeção de insuficiência. Nada se fez. Até a situação atual.

Há as perguntas óbvias: por que o governo se negou, entre agosto e setembro de 2020, a assinar um contrato que teria nos valido doses de vacina já em dezembro, três milhões até março de 2021? Três milhões a mais de doses até o primeiro trimestre deste ano; e isso no momento em que (ainda) dependemos de Fiocruz e Butantan; e isso quando sabemos que o ministério — tendo, afinal, assinado com a Pfizer — há pouco comemorou a antecipação da entrega de um lote do imunizante outrora desprezado. Para maio...

Poderíamos ter três milhões de doses até março, mas ora celebramos um fração disso prevista para o mês que vem. Não me esqueço da justificativa para a recusa: o Brasil não aceitava uma cláusula por meio da qual o laboratório não se responsabilizaria por eventuais efeitos colaterais da vacina; dispositivo idêntico, porém, não tendo sido problema quando do acordo com AstraZeneca/Oxford.

No ano passado, o governo se jactava do que seria sua estratégia para a aquisição de imunizantes: fechar convênios bilaterais (apesar de só ter fechado um em 2020). Não havia estratégia, mas postura contaminada pela pregação ideológica contra o tal globalismo. Razão por que o Brasil, podendo contratar cobertura vacinal para 50% de sua população, optaria por aderir ao consórcio multilateral Covax, liderado pela OMS globalista, com a cota mínima, de 10%. (Convoque-se Ernesto Araújo.)

Há também o episódio CoronaVac, vacina que, até este abril, respondia por mais de 70% das aplicações no Brasil. Um imunizante atacado pelo próprio presidente. A desculpa: o brasileiro não seria cobaia nem teria o seu dinheiro posto na frente por uma vacina ainda não certificada pela Anvisa; e isso como se alguém defendesse vacinar cidadãos antes do aval da agência, e como se o contrato obrigasse pagamento anterior à certificação sanitária do imunizante.

Em 2021, porém, o critério mudou; e se passou a fazer o certo: firmar convênios com laboratórios variados, antecipando-se à avaliação da Anvisa, de modo a ter previsibilidade e ganhar tempo. Foi assim com o imunizante Sputnik V, para cuja aquisição o governo de repente se esqueceu daquele antigo rigor; sendo mesmo o caso de apurar se o lobby da farmacêutica que o fabricará aqui não teria colaborado para a postura expedita.

Registre-se que a representação — que a chegada — desse imunizante no país coincide com a campanha parlamentar, promovida pela base do governo, e sem que Bolsonaro voltasse a temer pelo uso de seu povo como cobaia, para que a Anvisa amolecesse seus controles ou fosse mesmo tornada prescindível; o que também coincide com o projeto para que empresas privadas pudessem comprar vacinas.

Ah, são tantas as questões... Espero ter ajudado.


Andrea Jubé: 'Deus poupou-me do sentimento do medo'

Centro já descartou Huck e Moro como presidenciáveis

Vamos tratar aqui de três presidentes: pela ordem, Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves, e Jair Bolsonaro. Este passou recibo, com firma reconhecida, de que sentiu a mão fria do “impeachment” roçar-lhe as costas na semana passada, quando o colegiado pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) desferiu-lhe duas bordoadas: confirmou a ordem de instalação da CPI da pandemia, e o restabelecimento dos direitos políticos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A CPI da pandemia, se não tem o impedimento do presidente como alvo, provocará enxaquecas palacianas. Lula, por sua vez, desponta hoje como a principal ameaça à reeleição de Bolsonaro. Mas, remarque-se que a política muda como as nuvens - ou como o humor presidencial.

Bolsonaro está mal humorado, e deixou o azedume transparecer na “live” de quinta-feira, quando o STF sacramentou a investigação contra seu governo, e a elegibilidade de Lula. “Só Deus me tira da cadeira presidencial, e me tira, obviamente, tirando a minha vida", vociferou.

Em recado velado, porém, audível, ao Congresso, ao STF e à oposição, acrescentou, com ênfase, que salvo a prerrogativa divina, “o que nós estamos vendo acontecer no Brasil não vai se concretizar, mas não vai mesmo. Não vai mesmo, tá ok?” Nesse trecho cifrado, Bolsonaro aludiu à ameaça de “impeachment”.

O temor do impedimento ronda o Planalto há meses, e vai e volta em ondas, como o mar. Ou como a pandemia, para ser exata. A primeira onda deu-se em junho do ano passado, quando Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), foi preso, o que acendeu a luz amarela no Palácio. O episódio teve o condão de suspender a sucessão de atos antidemocráticos pelo fechamento do Congresso e do STF, que Bolsonaro, e sua militância, estimulavam.

A segunda onda se consumou há algumas semanas, quando o Centrão redobrou a pressão pela saída do chanceler Ernesto Araújo, em paralelo ao recrudescimento da pandemia. Para não passar recibo, Bolsonaro improvisou uma ampla reforma, aproveitando-se para se livrar do incômodo ministro da Defesa Fernando Azevedo e dos três comandantes das Forças Armadas, que, pela sua percepção, não o respeitavam como comandante-em-chefe, conforme prescreve a Constituição Federal.

Nessa ampla reforma o medo do “impeachment” ganhou nome e sobrenome: Flávia Arruda, a elegante e discreta ministra da Secretaria de Governo, cuja nomeação selou a aliança de Bolsonaro com o Centrão raiz: o PP de Ciro Nogueira e Arthur Lira, e o PL de Valdemar Costa Neto.

Quando os generais Luiz Eduardo Ramos e Braga Netto decidiram finalmente ceder e entregar a articulação política para o Centrão, uma semana antes do domingo de Páscoa, o primeiro nome lembrado foi o do senador Eduardo Gomes (MDB-TO), que tinha o padrinho mais forte do mercado: o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).

Mas toda a força de Flávio empalidece diante da caneta de Arthur Lira (PP-AL), que despacha os requerimentos de “impeachment”. Por isso, os dois generais concluíram que o novo ministro tinha de ser egresso da Câmara, e abençoado por Lira. Ontem Flávia admitiu em uma “live” promovida pela XP Investimentos, que recebeu o convite de Bolsonaro para assumir o cargo, mas tratou do assunto com Lira, e com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

Com Flávia Arruda, Bolsonaro reforçou a blindagem contra o “impeachment” com uma segunda camada. A primeira camada é o vice-presidente, Hamilton Mourão. Num cenário de instabilidade quase permanente, nenhum deputado ou senador calejado de crises quer apear um ex-deputado do poder para passar a caneta para um general. “Ele não inspira confiança”, reconheceu um cacique do Centrão em conversa com a coluna.

Um cacique do Centrão é categórico ao rechaçar qualquer risco de “impeachment”, a começar porque falta o elementar: povo na rua. “Impeachment” depende de dois motivos: o político e o jurídico. A pandemia complica o elemento “povo na rua”, mas isso não basta para revisar a fórmula basilar dos impedimentos presidenciais: motivo político, primeiro; depois, o jurídico. “O motivo jurídico se arruma, no [Fernando] Collor foi o Fiat Elba, com a Dilma [Rousseff], foram as pedaladas, mas tem que ter o ingrediente da sociedade cobrando”, explica o líder do centro.

Nessa quadra, cresce a corrida pela terceira via capaz de quebrar a iminente polarização entre Lula e Bolsonaro. A novidade é que embora ainda figure nas pesquisas, o nome do apresentador Luciano Huck foi alijado das conversas de bastidores no Centrão. Com Lula no jogo, a convicção unânime é de Huck refugou. Por ora, o ex-juiz Sergio Moro também não é levado a sério como presidenciável, apesar da boa performance nas pesquisas.

Sem Huck e Moro, o nome que mais empolga no momento é o do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, do DEM. Na pesquisa Ipespe realizada no Estado de São Paulo, encomendada pelo Valor, Mandetta alcançou 6% no cenário com o governador Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, disputando, sem João Doria.

Entretanto, o DEM também já colocou no radar de presidenciáveis o nome do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que larga com alguma vantagem em relação ao correligionário: ocupa cargo de visibilidade nacional, e é mineiro, representante do segundo maior colégio eleitoral, berço de presidentes da República, desde a política café-com-leite, até Tancredo neves e Itamar Franco.

Para citar os mineiros, faz falta a Bolsonaro um conselheiro político do quilate de Tancredo Neves, que serviu a Juscelino Kubitschek. Tancredo ajudou o poeta Frederico Schmidt a redigir para JK um pronunciamento que se tornou famoso ao repelir uma rebelião militar. A frase mais forte proclamava: “Deus poupou-me do sentimento do medo”.


Eliane Catanhede: Proliferam não só nomes, mas frentes para um projeto pela democracia, pela vida

Em debate, Ciro, Doria, Haddad, Leite e Huck focam na convergência contra os retrocessos do presidente Jair Bolsonaro, tratado por adjetivos ácidos, puxados pelo já trivial ‘genocida’

O principal recado do debate entre Ciro Gomes, João Doria, Fernando Haddad, Eduardo Leite e Luciano Huck, sábado à noite, foi a civilidade, até gentileza entre eles, ao longo de quase três horas. Deixando as divergências de lado, eles focaram na convergência contra os retrocessos do presidente Jair Bolsonaro, tratado por adjetivos ácidos, puxados pelo já trivial “genocida”.

Há inúmeras frentes para virar a página Bolsonaro e tocar a reconstrução do País, uma espécie de transição à la Itamar Franco pós-Collor. Assim como naquela época, o PT não participa de um projeto de união nacional, mas Haddad compôs bem a mesa, com conhecimento e sobriedade.

Ciro Gomes, ex-candidato três vezes à Presidência, ex-ministro e ex-governador do Ceará, é o que mais impressiona, com seu malabarismo verbal para juntar temas diferentes, amontoar números e produzir uma imagem de experiência e competência. Foi, também, responsável pela maior lista de “atributos” do presidente.

Doria foi Doria, a começar do vídeo e do áudio impecáveis, tudo milimetricamente programado. O governador de São Paulo explorou o fato de ter liderado a guerra pelas vacinas contra a covid no País e deixou o carimbo mais contundente contra Bolsonaro: “mito das mortes”.

Haddad, ex-prefeito de São Paulo, ex-ministro da Educação e ex-adversário de Bolsonaro no segundo turno de 2018, foi menos candidato, mais militante, preocupado em defender os feitos dos governos do PT, enquanto batia duro no “autoritarismo” de Bolsonaro.

Eduardo Leite, o jovem tucano que saiu de uma prefeitura do interior para o governo do Rio Grande do Sul sem passar pelo Legislativo, mediu palavras e fugiu da eloquência e da agressividade dos demais contra o presidente e o governo. Foi bastante crítico, mas num tom abaixo.

Essas impressões são, de certa forma, consensuais, mas quem mais dividiu opiniões foi Huck, celebridade sem passagem pelo setor público. Para uns, incapaz de enfrentar o debate no campo da economia e das políticas públicas. Para outros, foi o que focou nos dois temas do futuro: era digital e desigualdade social. “Mais jovem, mais atualizado”, resumiu uma importante jornalista. Se isso define um bom candidato, é outra história.

No final, o professor Hussein Kalout, que dividia comigo a mediação no encerramento da Brazil Conference, organizada por estudantes brasileiros de Harvard e MIT, lançou um desafio: Bolsonaro fez algo de bom? O primeiro a cair na armadilha foi Ciro: a menor taxa de juros em 30 anos. Leite citou a reforma da Previdência. Huck, o auxílio emergencial.

Na verdade, a reforma veio do governo Temer e o auxílio emergencial foi obra do Congresso. Haddad foi no ponto: todo governo democrático tem qualidades e defeitos, mas os “autoritários” não têm qualidades. E Doria concluiu: o grande feito de Bolsonaro foi transformar o Brasil em pária internacional. Só ele conseguiria isso.

Foram abordados: pandemia, fome, economia, política externa, ambiente, educação, ciência e tecnologia, mas também autoritarismo e investidas sobre polícias estaduais. Ao citar o motim da PM do Ceará, quando seu irmão, senador Cid Gomes, levou dois tiros, Ciro Gomes disse que a intenção de Bolsonaro é “formar uma milícia militar para resistir, de forma armada, à derrota eleitoral”. O temor é generalizado.

Exceto Haddad, os outros já tinham assinado um manifesto pela democracia e novos nomes nessa linha continuam surgindo: Tasso Jereissati, Temer, Luiza Trajano, Luiz Henrique Mandetta... Quem tem tantos nomes é porque não tem nenhum, mas o fundamental é que proliferam frentes para construir um projeto de união nacional pela democracia, pela gestão, pela vida. É assim que tudo começa...


Malu Gaspar: Nas redes bolsonaristas, suposto complô para matar o presidente vira denúncia bombástica

O vídeo em que a jornalista Leda Nagle repercute a postagem de um perfil falso do diretor-geral da Polícia Federal sobre uma suposta conspiração do STF e de Lula no atentado contra Jair Bolsonaro em 2018 incendiou as redes bolsonaristas nesta segunda-feira. 

O vídeo de pouco mais de 2 minutos surgiu nas redes logo pela manhã, quando Leda leu os tuítes da conta falsa de Paulo Maiurino, já suspensa pelo Twitter, em uma live privada. 

"Minha Nossa Senhora do perpétuo socorro (…) Eu não sei o que fazer, fico tão assustada com isso tudo! Porque isso não é política, né? Isso é tudo, menos política", disse a jornalista, depois de ler toda a postagem falsa em nome de Mairuino. 

Imediatamente, foram disparadas mensagens em massa reproduzindo a fake news, e apontando Leda Nagle como a responsável pela suposta apuração.

“A ordem para matar Bolsonaro partiu do STF e Lula! Diretor da Policia Federal Paulo Maiurino fez declaração que pode provocar uma intervenção no país, assistam! Fonte: Jornalista Leda Nagle”, diz um texto replicado em vários grupos.

No início da tarde, Polícia Federal informou que o perfil do diretor, Paulo Maiurino, havia sido falsificado. Leda Nagle chegou a se desculpar publicamente por ter divulgado a informação falsa, mas era tarde.  

A narrativa da conspiração foi multiplicada ao longo de todo dia, acompanhada de memes e reproduções de mensagens com apelos por uma ruptura institucional e ataques críticas ao STF e ao PT.

Numa delas, Adélio Bispo, preso pela facada que deu em Bolsonaro durante a campanha de 2018, aparecia dizendo "eram 11, mas só um deu a ordem". 

“Estamos neste momento em guerra. Conforme o chefe da Polícia Federal, foi o STF quem mandou matar Bolsonaro. Exigimos o fechamento e a prisão de todos os membros do STF que estão por trás desse crime”, escreveu um bolsonarista em caixa alta. 

“As suspeitas de envolvimento do STF na tentativa de assassinato do presidente, se confirmadas, poderão levar a uma reviravolta completa na atual organização política do Estado Brasileiro. E muitas, muitas prisões serão efetuadas”, apostou outro apoiador do presidente, com mais de 10 mil seguidores no Twitter, em publicação replicada em vários grupos do WhatsApp.

No Telegram, um áudio apócrifo contava sobre um suposto relato do senador Roberto Rocha (PSDB-MA) e de um integrante “barra pesada” do Gabinete de Segurança Institucional que "revelava" outros mandantes da falsa conspiração: Jean Wyllys, José Dirceu e Fernando Henrique Cardoso.  

À noite, quando diversas reportagens denunciando as fake news já haviam sido publicadas, o teor das postagens se inverteu.

Aí, o link mais compartilhado era o de uma postagem em um site bolsonarista acusando "gabinete de ódio" da esquerda de “linchar” Leda Nagle e promover fake news a respeito dela.

Em outro vídeo bem popular, o jornalista Alexandre Garcia, também ligado a Bolsonaro, defende a colega. "A ironia disso é que muita gente que está caindo de pau sobre ela inventa notícia todos os dias. Não tem moral para gozar alguém que foi enganada."

Junto com as postagens, uma mensagem bastante reproduzida dizia: "Leda Nagle, o Brasil te Ama". 


Felipe Salto: O governo não viu as emendas do Orçamento virarem um monstrengo?

Executivo precisa cumprir o teto, aumentar emendas e obras, garantir dinheiro para Previdência e para benefícios sociais, mas equação não fecha

A Hidra é um monstro grego que, ao ter a cabeça decepada, ganha duas novas. A gestão das contas públicas transformou o arcabouço fiscal num monstrengo difícil de driblar. O projeto de lei (PLN) n.º 2 altera a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2021 para: a) retirar gastos da meta de resultado primário (receitas menos despesas, exceto juros); e b) aumentar a possibilidade de ajuste dos gastos discricionários (não obrigatórios).

A primeira mudança autoriza gastos por fora da meta legal. O Pronampe (ajuda a empresas), o BEm (medida para manter empregos) e a saúde (restritas ao combate à covid-19) são excluídos da meta de déficit primário. Independentemente da manobra contábil, a dívida será afetada. A alternativa, mais transparente, seria alterar a meta. 

A segunda inovação restringe as alterações orçamentárias ao cumprimento do teto de gastos. Isto é, se as despesas sujeitas ao teto superarem o limite, contingenciamentos terão de ser feitos. No limite, a medida poderá autorizar contenções de emendas aumentadas no processo orçamentário.

Além disso, exclui-se o gasto com custeio da máquina das prioridades de execução. Essa despesa, que é parte da discricionária do Executivo, tem tratamento diferenciado na LDO por corresponder a gastos essenciais ao Estado. O PLN 2 tira a blindagem para permitir cortes maiores nesse grupo. Aumentaria o risco de shutdown.

As emendas de relator-geral (incluídas demandas de parlamentares e do próprio Executivo incluídas) totalizam R$ 29 bilhões. Se forem vetados, no dia 22, cerca de R$ 10 a 12 bilhões, como discutido pela imprensa, e a tesoura do Executivo trouxer mais R$ 9 bilhões das próprias despesas discricionárias (algo como 10%), o corte total ficaria em cerca de R$ 20 bilhões.

Ocorre que esse valor não evitaria o estouro do teto de gastos. A IFI mostrou que o limite seria rompido em R$ 31,9 bilhões, dados os gastos discricionários inflados, no Orçamento, e as projeções da instituição para as despesas obrigatórias – mais realistas que as do Orçamento.

As emendas de relator-geral só podem ser cortadas se retiradas pelo próprio relator (aliás, um ofício foi enviado ao Executivo nesse sentido) ou por meio do veto presidencial. Mas o PLN 2 manda que todas as alterações orçamentárias sejam limitadas pelo teto. 

Ora, se o veto presidencial incidir sobre apenas R$ 10 a 12 bilhões e isso for insuficiente para resolver o problema do teto, outros gastos terão de ser cortados. Os obrigatórios têm de ser executados, os discricionários do Executivo já teriam sido reduzidos e as emendas individuais e de bancada só podem ser contingenciadas proporcionalmente à redução das discricionárias do Executivo. 

Restaria contingenciar mais um pedaço das emendas de relator. A equação não fecha: cumprir o teto, aumentar emendas, contemplar obras de certas áreas do Executivo, garantir dinheiro para Previdência e para benefícios sociais. O governo não viu o monstrengo se materializar?

*Diretor Executivo da IFI


Maria Cristina Fernandes: O discurso de Guedes aos intocáveis do Executivo

Ao dizer que os salários da alta administração são baixos, o ministro da Economia dá discurso a categorias aquinhoadas que aprofundam a desigualdade no serviço público

“Os salários da alta administração são baixos. Vejo aqui o ministro Bruno Dantas, que em qualquer banco pode ganhar US$ 4 milhões por ano. Vai ser difícil convencê-lo a ficar no TCU [Tribunal de Contas da União]. Ele vai receber muitas propostas. Já levaram o [Nelson] Jobim [ex-ministro do STF, hoje diretor do BTG Pactual]. Vão levar todo mundo…. Estou vendo aqui Ana Carla Abrão, que tentei manter mas foi abduzida pelo Santander. Tá ganhando cinco vezes mais do que ganharia aqui, certo?”.

Errado. Ana Carla Abrão, sócia da consultoria Oliver Wyman, corrigiu educadamente o ministro da Economia. Paulo Guedes entrou e saiu tão de supetão numa “live” promovida na semana passada pelo Instituto de Direito Público (IDP), do ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que confundiu Ana Carla com Ana Paula Vescovi, ex-secretária do Tesouro e hoje economista-chefe do Santander.

O ministro da Economia, que não ouviu a preleção de nenhum dos outros participantes da “live”, nem ficou para o debate depois que acabou de falar, chegou mesmo a dizer que o funcionalismo tinha uma distribuição salarial “quase socialista”. Nos últimos meses, o ministro perdeu vários colaboradores, como o ex-secretário do Tesouro Mansueto de Almeida, hoje economista-chefe do BTG, e o ex-diretor da Secretaria Especial do Ministério da Economia Caio Megale, hoje economista-chefe da XP. A mágoa parece ter enviesado sua visão sobre o tema.

Mal Guedes desapareceu da tela, Ana Carla, uma das economistas de mais longeva militância pela reforma administrativa no país, tomou a palavra e analisou os males da desigualdade no serviço público que o ministro demostrara ali firme disposição em aumentar.

Ana Carla citou pesquisa do economista Ricardo Paes de Barros que, baseado em dados de salários públicos e privados entre 2001 e 2015, concluiu que o coeficiente de Gini (índice de concentração de renda) do setor privado havia caído 0,44 para 0,37. No mesmo período, o Gini do setor público permanecera quase estagnado, passando de 0,48 para 0,46.

O descasamento entre a desigualdade do setor privado e a do setor público aconteceu, principalmente, ao longo dos governos petistas, quando houve a recomposição salarial de carreiras, inclusive na elite do funcionalismo, como a Advocacia-Geral da União, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e a Receita Federal. Esse divórcio, que começou na administração Lula, foi preservado na gestão Temer e encontrou porto mais do que seguro sob Jair Bolsonaro.

O governo que acaba de enviar uma proposta de reforma administrativa com a qual pretende cortar R$ 300 bilhões da máquina pública em dez anos é o mesmo que mandou para o Congresso a regulamentação do bônus de produtividade da Receita e resistiu a limitar o da AGU e da PGFN ao teto constitucional.

Aprovado pelo Congresso no limbo entre os ex-presidentes Dilma Rousseff e Michel Temer, o bônus da Receita foi abraçado pelo ministro Paulo Guedes a despeito de contestações por todos os lados. O bônus já foi contestado pelo Tribunal de Contas da União tanto pela inexistência de previsão orçamentária quanto pela extensão a aposentados, condição em que, por óbvio, o funcionário deixa de ser produtivo para a instituição.

O acórdão do TCU não impediu o governo de enviar para o Congresso uma medida provisória (899) em que embutiu a regulamentação do bônus. A MP foi aprovada pela Câmara e, no Senado, ficou sem o jabuti sob a justificativa de que o bônus poderia levar a um acréscimo de até 80% nos vencimentos de mais de 15 mil funcionários. Salários de R$ 30 mil poderiam vir a ser acrescidos de mais R$ 21 mil, o que estoura o teto constitucional de R$ 39 mil

Enquanto não é regulamentado, os funcionários da Receita continuam a receber “apenas” R$ 3 mil de acréscimo. Desde que começou a ser pago, em 2018, o bônus tem levado a questionamentos sobre a procedência das autuações da Receita, uma vez que, quanto maior o valor cobrado, maior seria a vantagem auferida pelo auditor.

Com o discurso da meritocracia com o qual defende a reforma administrativa, Paulo Guedes pretende aliar o bônus por eficiência da Receita à sua visão de Estado. Sugere convergência ao que é, sobretudo, uma concessão a servidores cujas greves, como a de 2018, paralisou a arrecadação e implantou o caos nas aduanas.

O mesmo se aplica aos honorários de sucumbência que, previstos desde a aprovação do novo Código de Processo Civil, em 2016, acrescentaram, por mês, a mais de 12 mil advogados da União e procuradores da Fazenda, uma média de R$ 6 mil a salários que chegam a R$ 27 mil.

Os honorários reproduzem, para o serviço público, a lógica inerente à advocacia privada, que cobra percentuais sobre causas ganhas. O benefício é de mão única. Não se aplica, com supressão de vencimentos, quando a União perde a causa e é obrigada a pagar à parte que a acionou na Justiça.

No ano passado, uma emenda do Novo à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) fez com que os honorários advocatícios se somassem aos vencimentos dos funcionários para efeito de aplicação do teto constitucional. O presidente Jair Bolsonaro resistiu, mas o Congresso driblou a indisposição do governo e o dispositivo limitante passou a valer a partir de janeiro. Como a LDO só tem validade de um ano, porém, a limitação acaba em dezembro.

Os penduricalhos dessas categorias foram instituídos numa época de baixo desemprego e forte valorização das carreiras públicas nos governos petistas, quando muitos servidores deixaram seus cargos atraídos por uma vaga no Ministério Público ou no Judiciário. A paralisação dos concursos públicos, o congelamento de salários e, principalmente, a crise no mercado de trabalho fez sumir as circunstâncias que, um dia, serviram de justicativa para os penduricalhos.

A proposta do governo os contorna, bem como deixa de lado os vencimentos de carreiras sobre as quais o Executivo pode legislar mas não o faz, como o Ministério Público - graças, em grande parte, ao crédito que o Procurador-Geral da República tem hoje no Palácio do Planalto - e a magistratura.

O argumento de que o Executivo não pode se debruçar sobre essas carreiras não se sustenta. O governo não teve o mesmo “pudor”, diz o consultor legislativo e professor da FGV, Luiz Alberto dos Santos, quando enviou a reforma da Previdência que alterou direitos previdenciários de servidores e magistrados, embora tenha preservado - e ampliado - as prerrogativas dos militares.

Foi por pressão de procuradores e magistrados que o Congresso congelou a proposta que tramita desde 2016 e regulamenta a submissão de todos os servidores públicos do país, de todos os Poderes e entes da Federação, ao teto constitucional dos vencimentos dos ministros do Supremo.

Já há, no entanto, gestões, no entorno do presidente, para que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, coloque em pauta o projeto que acaba com os penduricalhos gerais da nação. A iniciativa tende a indispor o governo e o Congresso com corporações poderosas. No Judiciário, por exemplo, o novo presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, Luiz Fux, um dos dois únicos ministros da Corte que percorreu toda a carreira da magistratura (a outra é a ministra Rosa Weber), foi um baluarte na defesa do auxílio-moradia.

A magistratura, de acordo com Ana Carla Abrão, já rompeu o limite de gastos estabelecidos pelo Orçamento para o Judiciário e, apesar de ter salários médios que ultrapassam o dos ministros do Supremo, não sinaliza disposição de abrir mão de seus benefícios extra-teto.

Nem mesmo os ministros sem vínculos com a corporação, como Dias Toffoli, são capazes de impor uma agenda de enxugamento. No apagar das luzes de sua gestão no colegiado, Toffoli presidiu a sessão que aprovou um benefício equivalente a um terço dos vencimentos dos juízes para aqueles que forem responsáveis por mais de uma comarca. De acordo com o CNJ, a remuneração média dos magistrados brasileiros é de R$ 50 mil, 28% a mais do que o teto constitucional.

Relatora da comissão por onde tramitou a proposta que poda os benefícios extra-teto, a senadora Katia Abreu (MDB-TO) atribui a criação de penduricalhos à fixação de um salário alto para o ingresso em algumas carreiras públicas. A rápida progressão faria com que os funcionários atinjam o topo da remuneração com muitos anos de serviço pela frente, estimulando a busca por indenizações extraordinárias..

Se a desigualdade no serviço público é ainda maior do que aquela do setor privado, os penduricalhos puxam ainda mais o desequilíbrio na Federação. Nas contas de Katia Abreu, dos 11,4 milhões de servidores públicos do país, 57% (6,5 milhões) estão nos municípios, 32% (3,6 milhões) estão nos Estados e 11% (1,1 milhão) estão na União.

Esses servidores consomem R$ 928 bilhões em recursos, sendo que cada instância da Federação abocanha, grosso modo, um terço desse valor. Nas contas da senadora, os servidores municipais têm salários equivalentes aos da iniciativa privada. Os estaduais ganham de 35% a 40% a mais e aqueles da União têm vencimentos 98% superiores aos daquelas funções exercidas no mercado privado.

Todos, a princípio, concordam com a submissão ao teto constitucional, mas unicamente para consumo externo. Se presidente, equipe econômica e Congresso estivessem, de fato, empenhados em "não tirar dos mais pobres para dar para os paupérrimos" já teriam encarado a trama dos privilégios e prerrogativas das carreiras mais aquinhoadas da República.