oxigênio

Ruy Castro: Lambanças de Bolsonaro e Pazuello

Eles deixam muito mal o conceito que os militares fazem de si mesmos

Se Jair Bolsonaro fosse presidente durante a 2ª Guerra e Eduardo Pazuello seu chefe do Estado Maior, os pracinhas mandados pelo Brasil para lutar na Itália teriam ido parar no Congo Belga. Ou a FEB só desembarcaria no famoso teatro de operações depois de a peça terminada —com o que, sob Bolsonaro e Pazuello, o Brasil teria sido protagonista de uma ópera-bufa, não de uma saga de que os militares tanto se orgulham. É como combatem a pandemia.

Mas não são só as trapalhadas. Bolsonaro e Pazuello não gostam de máscaras, e com razão. Elas são desconfortáveis para seus narizes de Pinóquio, mais compridos do que as pernas —suas mentiras têm pernas tão curtas que, todo dia, eles são obrigados a desdizer-se e a negar não só as frases da véspera como suas próprias negações. O que, para eles, não é difícil, porque, sendo Pinocchio um boneco de pau, o nariz e a cara também são.

Como a inteligência militar é binária —uns mandam, outros obedecem, segundo o categórico Pazuello—, é natural que as Forças Armadas assistam sem tugir ou mugir às grandes lambanças em curso pelo seu chefe supremo e pelo mamulengo que ele nomeou para um cargo-chave. Mas, neste momento, é irresistível perguntar o que estarão achando de Bolsonaro agarrar-se desesperadamente a um produto que ele não queria, repudiou e quase proibiu —a vacina, e logo a do Butantan—, e de depender da condescendência da China, país que ele e seus dementes levaram dois anos agredindo.

Bolsonaro e Pazuello deixam muito mal o conceito que os militares fazem de si mesmos —conceito que, aos olhos deles, os torna tão superiores a nós, paisanos, em competência e lealdade. Com aqueles dois como modelo, como sustentar tal ilusão?

A competência é essa que está aí. Quanto à lealdade, logo veremos Bolsonaro passar sua culpa adiante e jogar o patético Pazuello na fogueira. É rapidinho.


Bruno Boghossian: Recuo de Pazuello comprova ação devastadora de Bolsonaro na pandemia

 Recuo de Pazuello comprova ação devastadora de Bolsonaro na pandemia

O general recuou. Depois que autoridades afirmaram mais uma vez que não há remédio eficaz contra o coronavírus, Eduardo Pazuello disse que nunca recomendou aquilo que o próprio governo chama incansavelmente de “tratamento precoce”. O Ministério da Saúde tentou empurrar cloroquina ao país, mas o militar deve ter percebido que andava em terreno perigoso.

O comprimido é a peça simbólica que comprova a ação devastadora do governo Jair Bolsonaro na pandemia. O presidente e seus auxiliares fizeram a opção por um protocolo de tratamento fantasioso, que sufocou os esforços pela vacinação dos brasileiros e até o fornecimento de material básico para a sobrevivência dos doentes.

Três dias depois de saber que Manaus estava prestes a entrar em colapso, Pazuello deu uma palestra em que defendeu remédios ineficazes e disse que não havia “outra saída”. O ministério quis despejar cloroquina no Amazonas, mas mandou oxigênio insuficiente para abastecer o estado.

Se mudou de ideia, o general deveria delatar o chefe imediatamente. Enquanto Pazuello finge indignação e diz que não indicou medicamentos, Bolsonaro segue à frente do movimento do charlatanismo. “Não desistam do tratamento precoce. Não desistam, tá?”, pediu a apoiadores, na segunda-feira (18).

Ao longo da pandemia, o presidente fez campanha para que a cloroquina fosse usada no lugar dos imunizantes que ele trabalhava para sabotar. “Enquanto não tiver uma vacina realmente confiável, e uma vez contraída a Covid, eu recomendo que faça o tratamento precoce”, disse Bolsonaro na TV, em dezembro. “Tá aí à disposição. Pegou, toma.”

A covardia de Pazuello mostra que ele talvez tenha medo de perder o cargo ou de ser processado. A desfaçatez de Bolsonaro sugere que ele confia na impunidade. O Ministério Público e o Congresso podem investigar a responsabilidade de cada um. Os atos de ambos estão registrados em vídeo e documentos oficiais.


Fernando Gabeira: Quando falta oxigênio

É preciso lembrar que o colapso em Manaus não está assim tão longe de outras regiões do Brasil. No Rio, chegamos ao limite

Escrevi um artigo sobre vários temas, sobretudo vacina, e sobre as pessoas morrendo por falta de oxigênio em Manaus.

Aos poucos, as pessoas morrendo por falta de oxigênio em Manaus foram deslocando os outros tópicos para o canto da página e ocuparam todo o espaço. Impossível falar de outra coisa quando há pessoas morrendo por falta de oxigênio nos hospitais.

Desde a semana passada, estava de olho em Manaus. Minha intuição indicava que a descoberta pelos japoneses de uma variante do coronavírus em turistas vindos da Amazônia merecia atenção.

Essas mutações do vírus, de um modo geral, se dão na proteína “spike” e facilitam a propagação. Os ingleses, que vivem um problema semelhante, perceberam e logo proibiram voos do Brasil.

Mas, ao mesmo tempo que perseguia as notícias sobre as mutações do vírus, acompanhava a crise nos hospitais de Manaus. Primeiro foi o alerta de que faltaria oxigênio. Depois vi uma entrevista do presidente do Sindicato dos Médicos do Amazonas, Mario Vianna, descrevendo o caos e dizendo que os doentes mais ricos estavam fugindo para o aeroporto em busca de salvação.

Cheguei a pensar na hipótese de que iriam isolar Manaus. Roraima fez uma barreira na Manaus-Boa Vista, e o Pará decidiu bloquear os viajantes pelos rios.

Pazuello estava em Manaus. Sua tarefa era encontrar uma saída para a crise emergencial. Vi imagens de cilindros de oxigênio sendo transportados pela Força Aérea. Mas Pazuello não conseguiu dimensionar a crise ou não soube reunir os recursos para evitar a tragédia. É um incapaz.

Mais uma vez, o governo trata a morte com indiferença. E não é uma atitude isolada. A Justiça decidiu cancelar o Enem em Manaus, e Bolsonaro recorreu dessa decisão sensata.

Na raiz dessa crise, está a tentativa do governo local de colocar restrições ao comércio num momento agudo da pandemia. Houve protesto de várias entidades, manifestações de rua, bandeiras, Hino Nacional.

Os bolsonaristas aplaudiram, assim como aplaudiram a revolta em Búzios. Segundo eles, o povo estava em luta pela liberdade contra decisões autoritárias. Esse discurso de Bolsonaro apela para a liberdade individual, num momento em que é necessária a cooperação.

O êxito de um discurso desse tipo se alimenta também do cansaço com as medidas de isolamento social e de algo, no meu entender mais estrutural. Jorge Luis Borges, falando dos argentinos, disse que eles são indivíduos e não cidadãos. Creio que algo parecido acontece aqui.

Isso torna mais fácil empurrar as pessoas para a morte, o que Bolsonaro e toda essa corrente de opinião têm feito com competência, negando não apenas a orientação científica, mas também a necessária disciplina social num tempo tão difícil.

Os americanos decretaram o impeachment de Trump porque ele insuflou uma ação violenta contra a democracia. Bolsonaro se recusa a aceitar a gravidade da pandemia e empurra as pessoas para a morte.

Estamos no limiar de uma campanha de vacinação. Ou, pelo menos, próximos de um ato de propaganda iniciando essa campanha. Mas as pessoas morrendo por falta de oxigênio em Manaus não nos deixam outro caminho, exceto lembrar: a política da morte está em curso, a cada minuto que nos atrasamos em nossa união para contê-la corremos o risco de estar matando também.

É preciso lembrar que o colapso em Manaus não está assim tão longe de outras regiões do Brasil. Já temos um índice de mais de mil mortos por dia. O crescimento dos casos em São Paulo é grande, e o próprio Hospital Albert Einstein cancelou a admissão das UTIs aéreas, aviões que trazem doentes de outros lugares do país. No Rio, chegamos ao limite.

A campanha de vacinação revela um planejamento precário e vacinas com um baixo nível de eficácia. Isso significa que teremos de vacinar muita gente para reduzir o número de casos e estancar o crescimento das mortes.

É muito difícil superar uma etapa dessa grandeza com um governo negacionista, incapaz e sem um traço de empatia com o sofrimento do povo brasileiro. Ele nos rouba oxigênio não só como indivíduos, mas como sociedade.

Para voltar a respirar, será preciso se desfazer do governo.


Míriam Leitão: Conspiração Bolsonaro

A oposição ao governo Bolsonaro só não pode dizer que não entendeu aonde ele quer chegar. Conspiradores como Donald Trump e Jair Bolsonaro fazem tudo às claras, e o daqui repete o roteiro com alguma defasagem. A distância que existe é entre original e cópia. Quando parlamentares do PT, PDT, PSDB se alinham ao candidato que Bolsonaro defende para presidir o Senado sabem o que estão fazendo. Compactuam. Os votos serão no escurinho, onde Tancredo ensinou que é o lugar das traições, mas os oposicionistas fazem às claras achando que todos entenderão o pragmatismo.

A História olhará esse distópico tempo nosso de forma implacável. Não adiantará explicar que foram oferecidos bons lugares na mesa diretora, distribuídas presidências de comissões. Não há nada contra o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), em si. Não é pessoal. É porque na situação em que ele se encontrará terá que pagar o apoio. O presidente se mobilizou, seu padrinho Davi Alcolumbre (DEM-AP) negocia lugar no Ministério. Pacheco se abrigou sob esse teto. Isso terá de ser pago. E o preço é o apoio à pauta que o presidente acha relevante para o seu projeto.

Bolsonaro quer tumultuar a próxima eleição, reduzir o poder dos estados sobre as polícias para aumentar sua força sobre os efetivos armados, quer armar seus seguidores, quer bloquear recursos para a ciência, quer estimular o desmatamento da Amazônia, quer incentivar garimpeiros e invasores em terras indígenas, quer enfraquecer instituições de controle do combate à corrupção. Bolsonaro sonha, como diziam as faixas dos atos que estimulou e dos quais participou, com o fechamento do Congresso e do STF. Esse é o plano, essa é a pauta.

Nenhuma candidatura, seja de Baleia Rossi (MDB-SP) na Câmara, seja de Simone Tebet (MDB-MS) no Senado, se propôs a fazer oposição. A promessa é mais simples. É de autonomia. O poder legislativo precisa ser autônomo para garantir a governabilidade. Há quem defenda candidatos governistas com o argumento da governabilidade, mas é o exato oposto. O equilíbrio dos freios e contrapesos nos ajudará a atravessar este momento tão pantanoso.

O poente presidente Donald Trump está diante da acusação de incitação à insurreição contra a democracia. Ele construiu o plano lentamente. Começou dizendo em 2016 que a eleição que ele ganhou era fraudada. Muita gente achou que era apenas uma esquisitice. Era movimento feito de caso pensado. Se soa familiar, é porque é o mesmo que se passou aqui em 2018. A lista das similitudes é imensa. Chega a ser monótono.

Os americanos têm a tradição de pessoas armadas. Aqui, Bolsonaro ordenou numa reunião ministerial a liberação do acesso às armas. Até quando o país vai acreditar que são “colecionadores e caçadores”? A caça é proibida no Brasil. Bolsonaro quer uma milícia. Por que tirar poderes dos governadores sobre as polícias e criar o generalato nas PMs? Por que distribuir tantos mimos às Forças Armadas, da ativa ou da reserva? Ora, direis, por ideologia, para seguir a ala ideológica. Não. Não há uma ideologia, há um projeto autoritário em curso. O presidente quer se cercar de vários efetivos armados, legal ou ilegalmente, para intimidar adversários. No dia D e na hora H. Como fez Trump, quando mandou seus mal-intencionados seguidores marcharem sobre o Capitólio. Na celebrada democracia americana foram vistas cenas de enorme selvageria. Os gritos de “enforquem Pence” e “onde está Nancy Pelosi” foram descritos na imprensa americana e entendidos pelo seu valor de face.

Na casa dos conchavos, tudo se passa como se não vissem o que há pelo Brasil. O presidente conduz de forma criminosa a gestão da pior pandemia que já se abateu sobre o país, mas o PT acha que pode se alinhar ao candidato que Bolsonaro defende, e o PDT, também. O PSDB acha que pode continuar em cima desse muro e permanecer nunca decidindo em tempos de decisão. O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) falou em trincar os dentes. Quando trincarão os dentes? Quando for tarde demais.

Trump conspirou durante quatro anos, e o resultado foi visto por todos. Bolsonaro conspira, e temos visto o resultado. É da natureza de governantes autocratas que chegam ao poder pelo voto na democracia enfraquecer por dentro as instituições que os hospedam. Querem se espalhar pelo organismo, enfraquecê-lo e destruí-lo. Como um vírus oportunista e mortal.


Elio Gaspari: O chaveco do Chavismo bolsonariano

Treze anos de poder petista não fizeram estragos nas Forças Armadas semelhantes ao que o capitão Bolsonaro conseguiu em dois anos

Treze anos de poder petista não fizeram estragos nas Forças Armadas semelhantes ao que o capitão Bolsonaro conseguiu em dois anos. Durante os governos de Lula e de Dilma Rousseff, nenhum general foi demitido de forma constrangedora e sem motivo razoável. Os oficiais-generais nomeados pelos presidentes petistas para funções civis tiveram desempenhos discretos. Bolsonaro jogou militares em torvelinhos, associando a disciplina da carreira às suas fantasias. O que sucede ao general Eduardo Pazuello é prova disso.

As cerejas desse bolo anárquico, reveladas pelo repórter Felipe Frazão, são os projetos de parlamentares bolsonaristas que tramitam no Congresso. Teriam jogado meia dúzia de jabutis em cima da ideia de reorganizar as polícias civil e militar. Olhando-se os detalhes, nem jabutis são. Transformaram a ideia num terreno baldio, onde cada um que passa joga o que quer.

É conhecida a admiração de Bolsonaro pelas PMs, apimentada pela simpatia de oficiais do pelotão palaciano diante de alguns motins.

Pelos projetos, os comandantes das PMs deveriam ser escolhidos a partir de listas tríplices saídas da corporação. (Os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica são de livre escolha do presidente, dentro do quadro de quatro estrelas.)

Esses comandantes teriam mandatos de dois anos. Vale ouvir o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro: “Dentro da estrutura militar, ninguém pode ter mandato”.

As PMs e os Corpos de Bombeiros teriam generais. É o caso de se perguntar porque os Corpos Marítimos de Salvamento não devem ter almirantes.

A fiscalização das empresas de segurança privada sairiam da alçada da Polícia Federal, passando para a jurisdição das Polícias Militares. O perigo embutido nesse sofá velho jogado no terreno é simples: Basta lembrar a carreira do capitão Adriano da Nóbrega, o miliciano foragido morto na Bahia. Ou o caso do PM Ronnie Lessa, acusado de ter matado a vereadora Marielle Franco. Nenhum dos dois era um bandido iniciante. Ronnie havia sido guarda-costas de um bicheiro e perdeu uma perna numa briga de quadrilhas. O ex-capitão Adriano comandava a milícia batizada de Escritório do Crime.

Projetos legislativos de deputados governistas não têm necessariamente o apoio do governo, mas Bolsonaro, que é tão rápido no gatilho, jamais disse uma palavra contra os pneus velhos e colchões sujos jogados nesse terreno baldio.

O comandante Hugo Chávez desgraçou a Venezuela distribuindo boquinhas para militares da ativa e criando uma milícia.

Urucubaca

Bolsonaro dizia que, se os argentinos elegessem Alberto Fernández para a presidência da Argentina, os gaúchos veriam um fluxo de hermanos atravessando a fronteira. Seria uma repetição do que sucedeu em Roraima com a migração dos venezuelanos

Passou o tempo, e brasileiros gostariam de ir para a Argentina, onde há vacinas. Além disso, a montadora Ford anunciou que sairá do Brasil, mas ficou na Argentina, onde investe cerca de R$ 3 bilhões.

O general Eduardo Pazuello, o estrategista da logística no acolhimento dos venezuelanos, assumiu o Ministério da Saúde e está dando o que está dando. Na segunda-feira, ele foi a Manaus, falou pouco, mas fez propaganda da cloroquina. Na quarta-feira, pacientes morriam em hospitais da cidade por falta de oxigênio.

Diante da falta de oxigênio nos hospitais de Manaus, o governo do Amazonas e empresas pediram ajuda à Venezuela.

Brandão no Banco do Brasil

André Brandão fez carreira na banca privada antes de aceitar a presidência do Banco do Brasil. Lá, um executivo tem sua qualificação medida pelo discernimento com que assume riscos. O doutor comprou o Risco Bolsonaro e deu no que deu.

Se der tempo, deveria telefonar para o médico Nelson Teich, que aceitou o Ministério da Saúde e foi-se embora 28 dias depois.

As pessoas entram nos governos pelos mais diversos motivos, mas são poucos aqueles que sabem sair deles. Joaquim Levy, por exemplo, aceitou a presidência do BNDES em janeiro de 2019, viu-se enfarinhado em maio e saiu frito em junho.

Marquetagem

Quem sabe ouvir nas entrelinhas percebeu há três semanas que o índice de eficácia geral da Coronavac passava pouco dos 50%. (Ficou em 50,38%.)

Em vez de abrir a discussão em torno dos diversos aspectos desse índice, preferiu-se o caminho do emparedamento da Anvisa. A agência estava fragilizada pelo negacionismo do governo, que jogou seu almirante em mar tempestuoso.

Piada de caserna

Quando o general Eduardo Pazuello disse que a vacina começará a ser aplicada na hora H do dia D, ele recorreu a um tipo de humor da caserna, para disfarçar o fato de que não sabia uma coisa nem a outra.

Algumas piadas de caserna são engraçadas, mas quase sempre ironizam a ignorância.

Pazuello apresentou uma variante de uma velha piada: toda árvore tem uma altura aproximada.

Os cadetes diziam isso quando não sabiam a altura da árvore.

O Dia D virou quarta-feira, e hoje ele é uma data aproximada.

Trump e Hitler

Para quem discute o futuro de Donald Trump: em novembro de 1923, a milícia nazista tentou um golpe de estado a partir de uma cervejaria de Munique. Robert Murphy era um jovem diplomata americano baseado em Berlim e saiu em busca de informações.

Foi ao Núncio Apostólico e ouviu dele uma sentença: acabou a carreira política de Adolf Hitler. Deu no que deu.

Em 1945, ele reencontrou o Núncio Eugenio Pacelli, que àquela altura atendia pelo nome de Pio XII. Cobrou-lhe a previsão e ouviu:

“Você está falando da infalibilidade do Papa, mas naquela época eu era um simples monsenhor.”

A morte de um patrono

Morreu o bilionário americano Sheldon Adelson, de 87 anos, uma das pessoas mais ricas do mundo, com US$ 35,1 bilhões.

Dono de resorts com cassinos em Las Vegas, Macau e Singapura, ele financiava o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, Donald Trump e iniciativas de direita pelo mundo afora. Adelson contou que pretendia gastar US$ 100 milhões para derrotar Barack Obama.

Ele deixou rastro na campanha eleitoral brasileira de 2018. Veio em seu avião, hospedou-se no Copacabana Palace e encontrou-se com o candidato Jair Bolsonaro, que estava acompanhado pelo “Posto Ipiranga”, Paulo Guedes. Ambos chegaram à suíte do magnata entrando pela cozinha do hotel.

Um eco do que conversaram ressoou no ano passado, quando Guedes defendeu a abertura de grandes cassinos, durante a tétrica reunião ministerial de abril.

Naquele encontro, Bolsonaro garantiu a Adelson que transferiria a embaixada brasileira para Jerusalém.

Filho de um taxista, Adelson ralou cada dólar que ganhou e viveu na defesa intransigente de sua herança familiar. Em 1988, já bilionário, visitou Israel calçando um velho par de sapatos. Eram de seu pai, um descendente de judeus da Lituânia, que não viveu para visitar Israel.


Dorrit Harazim: Misericórdia

Numa cidade agonizante chamada Manaus, um cilindro de oxigênio pode valer ainda mais do que a vacina

 ‘Bem-vindo ao inferno’ anunciava em inglês a gigantesca faixa levada por policiais no Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, numa manhã radiosa de julho de 2016. Na Cidade Maravilhosa que escancarava seu abraço a turistas e atletas olímpicos do mundo inteiro, o protesto informava que, devido ao atraso no salário dos agentes de segurança, a Rio-2016 era um território sem lei. “Estamos morrendo. Os criminosos olham para a nossa identidade e nos matam”, acrescentava a faixa.

Neste início de 2021, basta substituir “criminosos” por “governantes” ou, ainda melhor, juntá-los como “governantes criminosos”, e temos o retrato do horror nacional. O inferno é aqui . O Brasil inteiro está no direito de se insurgir, de cobrar responsabilidade, ação, vergonha na cara — não de quem já é criminoso, mas de quem silencia apesar de ter voz e poder. A começar pelo Congresso Nacional.

De Jair Bolsonaro nada há a esperar. Como escreveu a jornalista Eliane Brum, “afirmar que Bolsonaro é incompetente ao tratar da Covid-19 é colaborar com ele. A negligência é deliberada. Não é incompetência para enfrentar a Covid, e sim, competência para o extermínio”. Gritar contra a montanha de inépcias das três esferas do poder (prefeituras, estados, Brasília) no combate ao coronavírus aplaca momentaneamente nossa consciência, alivia por um átimo a sensação de impotência. Mas até para gritar é preciso ter ar, conseguir respirar, sair da asfixia interior na qual estávamos confinados até sermos sacudidos pelo sufocamento real de Manaus.

“Fizemos nossa parte”, diz Bolsonaro sobre as pilhas de cadáveres que haverão de alicerçar seu lugar na história. “Imposição de disciplina em cima do brasileiro não funciona”, emenda o general da reserva e dublê de vice Hamilton Mourão, como se a obrigatoriedade do cinto de segurança e a proibição de fumar não vigorassem no país. O que não funciona em cima do brasileiro , general, é o descaso com a vida física para aniquilar a vida democrática do país.

 “Temos aqui um mundo em desordem/ Quem então está pronto/ Para lhe devolver ordem?”, perguntava Bertolt Brecht na estrofe cantada de uma peça que jamais concluiu. Na semana passada, faltando apenas duas semanas para Donald Trump deixar o poder, o Legislativo dos EUA deu seu passo para interromper a desordem revolta: mesmo sitiados no Capitólio, democratas e alguns republicanos ratificaram a vitória de Joe Biden na eleição de novembro. Quatro dias depois, aprovaram o impeachment do Aprendiz de Déspota. A desordem e a violência emanada da Casa Branca haviam atingido níveis alarmantes de sedição e violência.

O mais alarmante, no caso de Trump, talvez tenha sido a extorsão que o 45º presidente e seus celerados haviam tentado impor aos legisladores: a ameaça de que a violência poderia ser ainda maior e mais errática, caso mexessem com o líder do culto. Quase deu certo por lá. E pode parecer sedutora para outros aprendizes agarrados ao poder. Tragicamente, no Brasil, foi preciso testemunharmos a asfixia nos hospitais, lares e ruas de Manaus para o despertar da sociedade antes da débâcle nacional.

Poucos dias atrás, o alemão Jürgen Stock, secretário-geral da Interpol, alertava o mundo para o fato de vacinas contra a Covid terem se tornado “o ouro líquido do momento”. Contrabando, mercado ilegal, contrafações, roubos audaciosos e leilões clandestinos estarão na mira da agência de 194 países-membros. Mas Stock certamente nunca imaginou que, num país moribundo chamado Brasil, e numa cidade agonizante chamada Manaus, um cilindro de oxigênio pode valer ainda mais do que a vacina. Até porque é preciso estar vivo para almejar a chegada da vacina.

E, por falar nela, roga-se o impossível a prefeitos, governadores e ao presidente da República que veem na vacina o cabo eleitoral supremo: sumam da foto. Nenhum país civilizado inaugurou o tão ansiado processo de imunização com protagonismo político personalista. O governador em exercício no Rio planeja um “ato” no Cristo Redentor. O de São Paulo e o capitão de Brasília só pensam em obscurecer o outro na foto. Talvez seja hora de a imprensa responsável não embarcar nessas pataquadas. O braço estendido de um cidadão comum recebendo a vacina por um profissional de saúde também anônimo num hospital público do SUS é o maior incentivo para injetar o Brasil de esperança. E retratar o que o país tem de melhor.


Eliane Cantanhêde: A dupla do balacobaco

No Brasil faltam oxigênio, vacina, ministro da Saúde e presidente, mas panela faz barulho

Afinal, o que o ministro da Saúde, general da ativa Eduardo Pazuello, foi fazer em Manaus? Não viu, não ouviu e não soube nada, nem que o caos estava instalado e que as pessoas estavam prestes a ver seus pais, filhos e amores morrendo asfixiados, por falta de oxigênio nos hospitais. Ele só foi lá para uma coisa: tirar foto. E aproveitou para empurrar cloroquina encalhada para a população em pânico, como poção mágica. 

O colapso de Manaus e a crise das vacinas são a história de uma tragédia anunciada. Cadê o oxigênio para o Amazonas? Cadê as vacinas para os brasileiros? Cadê as seringas e agulhas? Cadê um plano nacional detalhado com governadores e prefeitos? Cadê o “dia D e a hora H”? Já foram em março, dezembro, fevereiro, janeiro e o último chute foi o dia 20, próxima quarta-feira. Se fosse uma guerra tradicional, os soldados do intendente ficariam sem armas, sem balas e sem coturnos. 

A ida de Pazuello a Manaus teve o efeito oposto ao desejado: jogou a tragédia devidamente no colo do governo federal e agravou de vez a irresponsabilidade criminosa do presidente Jair Bolsonaro na pandemia. Os vídeos, fotos e depoimentos desesperados de médicos e parentes rodaram o mundo, revelando um pandemônio, um inferno. Bolsonaro tentou culpar o Supremo, a nova cepa do vírus, o raio que o parta. Não cola. E ainda produziu duas pérolas: “Do Brasil, cuido eu”, “Fizemos a nossa parte”. Sim, nós vimos. 

E por que Bolsonaro insistiu tanto em trazer um tico de vacina da Índia a toque de caixa? Anunciou avião para um bate-volta, enviou bilhetinho para o primeiro-ministro Narendra Modi e acionou o Itamaraty para implorar aos indianos ao menos 2 milhões de doses (para 260 milhões de habitantes...). Todo esse empenho, que nunca se dignou a ter contra a pandemia, foi com um único objetivo: tirar a foto do primeiro vacinado antes do governador João Doria

Foi tudo um blefe. Desde o início, a Índia desconversou, pois a prioridade, obviamente, eram 1,3 bilhão de indianos. O governo brasileiro, porém, garantiu que as doses viriam, anunciou o voo para quinta-feira, adiou para sexta, contou com a autorização de uso emergencial da Anvisa hoje, convocou governadores para a próxima terça e marcou o início da vacinação para quarta. Puf! O cronograma evaporou. Era só parte da realidade paralela de Bolsonaro. Nem a Fiocruz pôde salvar. 

O presidente, que vai negar a pandemia até o túmulo, combate isolamento e máscara, chama de “maricas” quem leva ciência e vida a sério, desdenha dos agora quase 210 mil mortos e trabalha contra vacinas. “Não tomo, pronto!”, anunciou, para confirmação internacional de que tipo de pessoa preside o Brasil. E insiste em fazer campanha contra a obrigatoriedade da vacina – que salva vidas e é a única fórmula para vencer a pandemia e retomar a normalidade da economia e do País. 

A dupla Bolsonaro-Pazuello é do balacobaco. “Quem manda” se esmera em negar a pandemia e dar maus exemplos. E “quem obedece” virou chacota. Os dois produzem um espetáculo grotesco ao buscar um destino para milhões de doses de cloroquina que Bolsonaro pediu ao “amigão” Donald Trump, obrigou os laboratórios das Forças Armadas a produzir e agora empurra goela abaixo das secretarias de Saúde. 

Sem a vacina da Índia (que é para inglês ver e bolsonarista bater bumbo), sem uma gota da Pfizer ou da Moderna, sem negociação com a Sputnik 5, que corre por fora, Bolsonaro só tem uma chance de dar uma rasteira em Doria e tirar a foto antes dele: “roubando” para si a vacina “do Doria” e “da China”. Goste ou não, ela é a única no Brasil, onde faltam oxigênio, vacina, ministro da Saúde e presidente, mas panela faz barulho. Dilma Rousseff sabe disso. Bolsonaro está começando a aprender. 


Cristovam Buarque: O presidente asfixiador

A falta do oxigênio é consequência do colapso político de um governo despreparado para cuidar do Brasil.

Política é a arte de um povo para definir seu caminho com coesão e rumo, por meio de dirigentes escolhidos. O colapso do sistema de saúde em Manaus é prova do fracasso da política. Irresponsabilidade, incompetência, insensibilidade dos governantes que nós elegemos, sobretudo o obscurantismo deles provocaram a tragédia da asfixia de doentes por falta de oxigênio. A imagem de brasileiros se afogando nos corredores de hospitais, por falta de um balão de oxigênio, é uma metáfora real de um governante com o pé no pescoço do país inteiro.

A falta do oxigênio é consequência do colapso político de um governo despreparado para cuidar do Brasil. O sofrimento e morte no Amazonas, previsto por todos os cientistas e pelos ministros de saúde que foram demitidos porque alertaram, é consequência do descuido do presidente com o sofrimento, seu apego à feitiçaria no lugar da ciência, sua mesquinharia ao politizar a saúde pública e seu despreparo gerencial e sua falta de patriotismo. A crise sanitária é apenas um dos males que ele está provocado.

Nestes seus dois anos, ele conseguiu nos transformar em uma nação ridicularizada e desprezada no cenário internacional, está asfixiando o país em função de seu constante incentivo à destruição das florestas, seu descuido e até repulsa à educação de base, ensino superior, ciência e tecnologia e aos artistas faz dele o asfixiador do conhecimento e do espírito nacional, até mesmo esta conseguindo desmoralizar o Exército brasileiro ao dar-lhe tarefas para as quais seus generais demonstram despreparo. Bolsonaro é o asfixiador do Brasil.

Mas lamentavelmente ele não é o único. A asfixia também é feita pelos que não conseguem barra-la. Há dois anos nosso divisionismo permitiu a eleição deste asfixiador. E agora a divisão não nos dá a força necessária para seu impeachment por crime contra os brasileiros e o Brasil. Daqui a dois anos ele pode ser reeleito, se não nos unirmos e oferecermos uma proposta e um nome confiável nas eleições de 2022.

Bolsonaro é o asfixiador, mas o Brasil não nos perdoará se não encontrarmos os meios para impedir sua maldade e sua incompetência. Um país caminha errado, quando seu governo é ruim, mas entra em colapso quando as oposições também são ruins ou quando não se unem.

*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro


Cristina Serra: Bolsonaro merece um tribunal de Nuremberg

O Brasil governado por criminosos não é um perigo mortal apenas para os brasileiros

Depoimentos de médicos e enfermeiros em redes sociais, imagens de desespero nos hospitais, documentos, ordens para aplicar cloroquina ou "tratamento precoce" contra o vírus, testemunhos de parentes das vítimas. Tudo o que puder ser usado como prova de crime contra a saúde pública deve ser guardado pelos cidadãos.

Há de chegar o dia em que os responsáveis por essa tragédia brasileira irão sentar-se no banco dos réus. Se as nossas instituições parecem sedadas, quem sabe organismos multilaterais, como o Tribunal Penal Internacional (que já examina uma ação contra Bolsonaro anterior à pandemia) ou o Conselho de Direitos Humanos da ONU, atentem para a gravidade do que acontece aqui.

Bolsonaro e sua gangue precisam ser levados a um tribunal de Nuremberg da pandemia. Só uma investigação com a mesma amplitude será capaz de explicar o mal em grande escala praticado contra a população brasileira. Isso terá que ser exposto, em caráter pedagógico, para ser conhecido pelas próximas gerações e evitar que se repita. Como Nuremberg fez com os crimes de guerra dos nazistas.

Há vários níveis de responsabilidade no morticínio brasileiro. É preciso assinalar que, no caso do Amazonas, o governador Wilson Lima também terá que responder pelas mortes por falta de oxigênio em Manaus. Eleito na carona do bolsonarismo, revelou-se incompetente e covarde ao ceder às pressões contra o lock down, mesmo com inúmeros alertas de cientistas sobre uma segunda onda. No meio do ano, Lima chegou a ser alvo de buscas da PF, em investigação de desvios na compra de respiradores.

Outras cidades estão na rota do colapso. O Brasil governado por criminosos não é um perigo mortal apenas para os brasileiros. Países já nos fecham as portas. O Brasil tornou-se um pária sanitário. Quem permite que essa situação continue por tempo indefinido também tem as mãos sujas de sangue. Seremos julgados, no futuro, por nossas ações e omissões.


Míriam Leitão: Um joelho sobre o nosso pescoço

É mais do que Manaus, é o Amazonas inteiro. É mais do que o Amazonas, é o Brasil que não consegue respirar. A tragédia dos amazonenses é a de todos nós. No pescoço do país, retirando o oxigênio, há uma pandemia e o peso de um péssimo governo. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, o submisso, na quinta-feira à noite, ao lado do presidente, disse que Manaus estava em colapso. Falou como se não fosse ele o ministro. Era o reconhecimento do seu próprio fracasso, mas ele responsabilizou a localização geográfica da cidade e a falta da cloroquina. “Outro fator é que Manaus não teve a efetiva ação no tratamento precoce”, disse, usando o novo nome do remédio ineficaz prescrito por Bolsonaro.

O promotor que entrou no hospital carregando o cilindro com ar, comprado por ele, e que chegou no momento exato em que seu filho iria parar de respirar. O choro dele dizendo que viu pessoas morrendo no caminho até salvar o filho. A cidadã que gravou um vídeo explicando o drama que a cidade vivia. A enfermeira que pediu “orem pelo Amazonas”. Estados se preparando para receber bebês prematuros. São pedaços de um filme de horror que pode se espalhar pelo país.

Agora é a hora da emergência, e tudo o que se fizer para abastecer Manaus de oxigênio será pouco, porque vidas estão sendo perdidas. Mas é preciso entender o que se passou por lá. O ministro, que esteve dias antes na cidade, tinha que ter visto os sinais da tragédia e agido para preveni-la. O que fez foi dar ordens de que usassem cloroquina, o “tratamento precoce”.

A transmissão de quinta-feira do presidente e de seu ministro, com a presença do presidente da Caixa, era o retrato do descaso com a vida humana que este governo tem exibido desde o primeiro dia desta pandemia. Pazuello leu de soslaio algo escrito por Bolsonaro num papel e elogiou como “inteligentíssima” uma pergunta que colocava em dúvida a eficácia do uso de máscaras. No mesmo dia, circulava nas redes um vídeo com parlamentares governistas e uma juíza estimulando as pessoas a tirarem as máscaras. E cantando música que invoca a “pátria amada”. Seria patético se não fosse criminoso.

Enquanto nas redações do país jornalistas processavam e buscavam imagens e relatos que dessem o tom do desespero de Manaus, Bolsonaro começou sua live dizendo que estava mandando abrir mais agências da Caixa. Empombado, o ministro da Saúde começou dando uma lição geográfica como se palestrasse para estrangeiros.

— Manaus é uma ilha no meio da floresta amazônica. Brasília é a última grande cidade ao Norte e a partir daí são três horas de voo de Brasília. Em cima da floresta. Isso é a distância e o desafio logístico — disse, e continuou com essa fala inútil, fora do tom e da hora, com platitudes sobre o ciclo chuvoso.

A única coisa decente a fazer era pedir demissão por incompetência. Logística é gestão de estoques, é estudar previamente o fluxo dos produtos e equipamentos que precisam estar no lugar certo na hora exata. Em Manaus, pessoas estavam naquele momento morrendo por colapso logístico. Ele se atrasou em tudo, apesar de alertado pelos produtores sobre a falta de oxigênio, como foi sobre a falta de seringas e agulhas, o ministro deixa tudo para depois. A sua hora H é a do atraso.

O governo federal, na federação brasileira, coordena, articula, socorre, pacifica, é o único que pode ter a informação centralizada de tudo o que ocorre neste país continental. O Brasil se organizou em federação para estar unido em suas muitas identidades e situações geográficas. O governo Bolsonaro falhou desde o primeiro momento porque sabotou seu papel. Fez isso porque o presidente da República debocha da doença e das recomendações médicas, espalha o vírus do negacionismo, milita contra medidas de proteção. Lidera um governo de invertebrados, que o seguem e não se rebelam contra os absurdos diários de Bolsonaro.

Não há um momento bom para ter um mau governo, mas há o pior momento, que é no meio de uma pandemia, quando o que mais se precisa é de um presidente que tenha compaixão e senso de urgência, que acredite na ciência e siga a orientação dos médicos. Um bom governo não nos livraria do vírus, mas protegeria vidas humanas, agiria preventivamente, uniria o país, coordenaria os esforços. Um bom governo não atormentaria o país com agressões cotidianas no meio do nosso padecimento. Manaus é uma parábola dramática do que estamos vivendo. O país não consegue respirar.


Agência Lupa: Em live no pior dia de Manaus, Bolsonaro mente sobre Covid no Brasil

Presidente e ministro da Saúde insistiram no tratamento precoce com hidroxicloroquina e questionaram uso de máscara; veja checagem da Lupa

Na quinta-feira (14), enquanto Manaus vivia crise com a falta de oxigênio nos hospitais, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) realizou uma transmissão ao vivo junto com o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Na live, os dois repetiram informações falsas sobre a doença, como a existência de um “tratamento precoce” contra a Covid-19.

Bolsonaro também chegou a dizer que há três vacinas em análise pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), mas foi corrigido pelo ministro. A agência vai se pronunciar no domingo (17) sobre dois imunizantes, produzidos pela Fiocruz e pelo Butantan.

A Lupa analisou algumas das declarações de Bolsonaro e do ministro, que foram procurados para comentar as checagens, mas não responderam até a publicação.

“Qual outro país do mundo disponibilizou o auxílio emergencial? Alguém lembra aí Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela, México, Angola, Itália?”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

FALSO Pelo menos cinco —Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela e Itália— dos sete países citados pelo presidente Jair Bolsonaro disponibilizaram um auxílio emergencial para sua população durante a pandemia similares ao brasileiro.

A Argentina criou o “Ingreso familiar de emergencia” em março de 2020, com valor de 10 mil pesos, pouco mais de R$ 600. No Paraguai, o programa Pytyvõ — ajudar, em guarani — ofereceu G. 548.210 (R$ 419). A Venezuela criou, em março, o #QuedateEnCasa, mas o governo não informa o valor mensal que cada beneficiário recebe.[ x ]

Na Itália, o “Bonus Covid” foi disponibilizado temporariamente de março a maio. Nos dois primeiros meses, era de € 600 (cerca de R$ 3.800) e no terceiro e último mês, passou para € 1.000 (cerca de R$ 6.000). No final de 2020, jornais brasileiros repercutiram um escândalo de corrupção envolvendo o bônus: cinco deputados receberam indevidamente o auxílio.

O Uruguai criou, em abril, o Fundo Coronavírus, a partir do corte de salários de servidores públicos. Segundo o governo, o fundo usou cerca de US$ 625 milhões em 2020 em medidas de combate ao coronavírus. Desse montante, US$ 120 milhões foram para abonos de famílias e cestas básicas.


“O PSOL entrou com uma ação na Justiça de Porto Alegre para que o município não entregue o kit de tratamento precoce para os portadores de Covid-19”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

VERDADEIRO No dia 12 de janeiro, a bancada de vereadores do PSOL de Porto Alegre ingressou com uma ação, endereçada à Vara da Fazenda Pública, pedindo que a prefeitura da cidade “se abstenha de distribuir, utilizar e/ou adquirir medicamentos de eficácia não comprovada, especialmente a ivermectina e a hidroxicloroquina, para utilização na rede pública de saúde do Município de Porto Alegre”.

Em 4 de janeiro, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), flexibilizou as medidas restritivas de combate à pandemia e determinou a disponibilização de “tratamento precoce” contra a Covid-19 à população. O termo é usado por negacionistas científicos para se referir a medicamentos como hidroxicloroquina ou ivermectina, que não têm eficácia no tratamento contra o novo coronavírus.

Na manhã de quinta-feira (14), em encontro com apoiadores, o presidente citou a mesma ação, mas se confundiu, afirmando que o PSOL havia entrado na Justiça proibindo todos os prefeitos do país de distribuírem medicamentos sem eficácia científica contra a Covid-19.


“O uso da máscara, o afastamento social, as medidas de isolamento (...), isso tudo nós temos muita dificuldade de encontrar o que deu certo e o que deu errado.”
Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, durante live com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

FALSO Pesquisa publicada em junho na revista The Lancet indicou que o uso de máscaras reduz o risco de infecção por Covid-19 em 85%. Pesquisadores canadenses revisaram 172 estudos observacionais sobre medidas protetivas realizados a partir das características do novo coronavírus e de outras doenças respiratórias, como a síndrome respiratória no Oriente Médio (Mers).

O estudo mostrou que as proteções hospitalares têm um grau maior de efetividade (96%), enquanto as máscaras caseiras eram consideradas 67% efetivas. Dessas, as que mais protegiam eram as que tinham duas ou mais camadas e quando corretamente ajustadas ao rosto.

Outras duas pesquisas, ambas publicadas na revista Nature, também confirmaram que medidas de isolamento social são eficazes em reduzir a disseminação do vírus. A primeira, publicada em junho por pesquisadores do Imperial College London, no Reino Unido, concluiu que essas “intervenções não farmacêuticas” evitaram 3,1 milhões de mortes em 11 países europeus na primeira onda da pandemia.

Outra, realizada por pesquisadores da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, concluiu que a implantação de medidas restritivas de locomoção reduziram a velocidade de contágio do vírus em seis países analisados.


“O tratamento precoce é preconizado pelos conselhos federais [...], se mostrou eficaz em todas as cidades e estados do Brasil”
Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, durante live com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

FALSO De acordo com instituições internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NHI, na sigla em inglês), não há, até o momento, medicamentos que comprovadamente reduzem o risco de infecção pela Covid-19.

No Brasil, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) não recomenda tratamento precoce com qualquer tipo de medicamento. “Os estudos clínicos randomizados com grupos de controle existentes até o momento não mostraram benefício e, além disso, alguns destes medicamentos podem causar efeitos colaterais”, diz a SBI, em comunicado no Twitter na quinta-feira (14).

Em parecer publicado em abril do ano passado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) diz que não há evidências sólidas de efeito de medicamentos como a cloroquina ou hidroxicloroquina no combate à Covid-19. No entanto, “diante da excepcionalidade da situação”, o CFM diz ser possível a prescrição do medicamento em pacientes infectados com o vírus. A decisão, entretanto, deve ser conjunta, entre médico e paciente. O profissional fica obrigado a relatar ao doente “que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga” para o tratamento da Covid-19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso.

Diversos estudos publicados já comprovaram que não há eficácia da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. O Recovery Trial, coordenado pela Universidade de Oxford, suspendeu testes em junho com o remédio ao notar que ele não mostrou benefício no tratamento da doença. Em julho, foi a vez do Solidarity Trial, coordenado pela OMS, encerrar testes com a hidroxicloroquina. Um estudo brasileiro, publicado em novembro no periódico New England Journal of Medicine, também comprovou que a hidroxicloroquina é ineficaz no tratamento de casos leves e moderados da Covid-19.

Em setembro de 2020, a Escola de Medicina Perelman, da Universidade da Pensilvânia (EUA), testou o efeito profilático da hidroxicloroquina para aqueles que ainda não foram expostos à Covid-19. Os resultados mostraram que a ingestão diária da droga não reduziu o risco de infecção. A pesquisa foi publicada na Jama Internal Medicine e analisou 125 profissionais de saúde que atuam na linha de frente de combate ao novo coronavírus. Em agosto, um outro estudo clínico, publicado no The New England Journal of Medicine, mostrou que essa medicação, fornecida por quatro dias, não foi capaz de reduzir a taxa de infecção por Covid-19 nos 14 dias subsequentes ao seu uso, quando comparada com placebo.


“[O número de] Jovens entre 5 e 19 anos (...) sem comorbidade, que perderam a vida ano passado: 36. (...) É uma prova de que os jovens poderiam estar estudando [presencialmente]”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

INSUSTENTÁVEL O Ministério da Saúde não tornou públicas as informações de mortes por Covid-19 com o recorte de faixa etária e existência de comorbidades. Levantamento feito pelo G1 apontou que das 141 vítimas com até 19 anos que morreram de Covid-19 até o dia 26 de maio do ano passado, pelo menos 18 não tinham comorbidades. De acordo com dados do Poder 360, até 27 de junho de 2020, 380 pessoas com menos de 19 anos já haviam morrido no Brasil em função da doença ― no entanto, não há informações sobre comorbidades.

Mesmo que os números apresentados por Bolsonaro estivessem corretos, o que a Organização Mundial de Saúde (OMS) alerta é que os jovens, ainda que não desenvolvam a doença, podem transmiti-la para pessoas mais velhas e mais vulneráveis. O diretor da OMS para o Pacífico Ocidental, Takeshi Kasai, explicou que, justamente por serem muitas vezes assintomáticos ou apresentarem sintomas leves, os jovens acabam transmitindo a doença.

No entanto, a própria OMS afirmou em setembro que a volta às aulas deve ser prioridade no processo de reabertura das economias. O argumento é que escolas fechadas por muito tempo significa crianças mais expostas à violência física e emocional, vulneráveis ao trabalho infantil e a abusos, além de dificultar quebrar o ciclo da pobreza. A OMS divulgou um guia com recomendações para a volta às aulas.


“Tenho uns 40 processos de impeachment. Alguma acusação de corrupção? De improbidade? De abuso de autoridade? Não, não tem”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

FALSO Informações obtidas pela Lupa via Lei de Acesso à Informação (LAI) junto à Secretaria Geral da Mesa Diretora da Câmara mostram que até esta sexta-feira, 15 de janeiro, havia 55 pedidos de impeachment em tramitação contra o presidente. Vários desses pedidos referem ao Inquérito 4831, sobre suposta interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. Neste inquérito, o presidente é investigado por tentativa de influenciar investigações feitas pela instituição.

Um dos pedidos de impeachment, por exemplo, foi apresentado pelo deputado federal Alessandro Molon (PSB-RJ) e outros congressistas em 29 de abril de 2020. O texto fala em “tentativa de interferência ilegal na Polícia Federal, obstrução de justiça, advocacia administrativa, coação no curso do processo”.

Outro pedido, apresentado pelo ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) em 21 de maio, acusa Bolsonaro de utilizar “poderes inerentes ao cargo com o propósito reconhecido de concretizar a espúria obtenção de interesses de natureza pessoal, objetivando o resguardo de integrantes de sua família ante investigações policiais”, em referência ao Inquérito 4831.

O inquérito foi aberto no STF para apurar as acusações do ex-ministro da Justiça Sergio Moro de que o presidente da República tentou interferir na autonomia da PF para proteger familiares e aliados. Em novembro, o ministro Alexandre de Moraes prorrogou o inquérito por 60 dias, logo depois de o presidente ter informado que não iria depor no caso. Agora, o Supremo vai decidir se Bolsonaro pode depor por escrito ou se precisa comparecer pessoalmente para ser ouvido pelos investigadores. A decisão está marcada para 24 de fevereiro.


“Se fosse um remédio que não fizesse mal comprovadamente, não tivesse efeito colateral, nem assim, eu (...) ia obrigar a tomar aquele medicamento, quem dirá algo emergencial que não foi devidamente comprovado”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

CONTRADITÓRIO Durante a pandemia da Covid-19, Bolsonaro recomendou diversas vezes o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina como formas de tratamento contra o novo coronavírus. Contudo, essas drogas não têm eficácia comprovada para essa infecção e é comprovado que o paciente pode sofrer efeitos colaterais com o seu uso. Como explicado acima, há diversos estudos que mostram que esse remédio é ineficaz no tratamento contra o novo coronavírus.

Em nota, a Sociedade Brasileira de Arritmia Cardíacas (Sobrac) informou que a hidroxicloroquina pode ocasionar alterações cardíacas e pode ter tanto um efeito antiarrítmico quanto provocar o surgimento de arritmias graves. A bula do medicamento recomenda cautela para o seu uso em pacientes com disfunções hepáticas (do fígado) ou renais (dos rins), ou que estejam tomando medicamentos capazes de afetar esses órgãos. Além disso, o uso é contraindicado para grávidas e crianças menores de seis anos.


“Tem dado certo. A hidroxicloroquina, a azitromicina, ivermectina, a Anitta, zinco, vitamina D têm dado certo [no tratamento da Covid-19]
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

FALSO É falso que os medicamentos citados por Bolsonaro tenham efeito comprovado no tratamento da Covid-19. A Lupa já mostrou que o uso da cloroquina em pacientes internados com a doença não trouxe benefícios, como a redução na letalidade ou no tempo de internação. Além disso, efeitos colaterais como a arritmia cardíaca vêm sendo observados em muitas pesquisas, levando a Associação Médica Americana a emitir um comunicado pedindo que o uso da cloroquina fosse limitado a estudos clínicos e dentro de hospitais, sob rigoroso controle.

azitromicina é um antibiótico que pode ser usado contra infecções bacterianas secundárias em casos de Covid-19, mas não atua diretamente contra o vírus causador da doença.

Também não existe comprovação científica que sustente a recomendação de ivermectina, uma medicação usada contra piolhos, como prevenção ou tratamento da Covid-19. A epidemiologista e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Ana Luiza Curi Hallal, explica que existe uma diferença entre o uso de medicamentos como a cloroquina e a ivermectina pré-exposição, ou seja, quando se toma para evitar contágio, e o uso como tratamento precoce, ou seja, por pessoas que tiveram contato com alguém que testou positivo para a doença e busca uma terapia para evitar que a infecção evolua para um quadro mais grave.

“Em ambos os casos, estudos mostraram que não existem vantagens em usar cloroquina ou ivermetcina. O conhecimento evoluiu ao longo dos últimos meses e as dúvidas que tínhamos lá em abril e maio não são as mesmas. Na época, os estudos estavam começando e hoje evidenciam que esses medicamentos não previnem a Covid-19 e nem fazem com que a doença evolua menos”, afirma.

Como explicado pela Lupa, a ivermectina passou a ser disseminada como possível tratamento da doença depois que um estudo, publicado na Antiviral Research, indicou que a droga foi capaz de inibir a replicação do Sars-CoV-2 in vitro. Apesar disso, a OMS excluiu a ivermectina do projeto Estudo Solidariedade, uma iniciativa co-patrocinada para encontrar um tratamento efetivo para COVID-19, porque “estudos sobre ivermectina tinham um alto risco de viés, muito pouca certeza de evidências, e as evidências existentes eram insuficientes para se chegar a uma conclusão sobre benefícios e danos.”

Anitta é o nome comercial da nitazoxanida. Não há nenhum estudo publicado em revista científica que comprove a eficácia da ivermectina ou nitazoxanida contra Covid-19, assim como não há comprovação sobre o zinco ou a vitamina D.

Chico Marés , Ítalo Rômany , Marcela Duarte , Natália Leal e Nathália Afonso