ofício

Ricardo Noblat: Vacina pouca, minha toga primeiro

No país do “você sabe com quem está falando”...

O que você entenderia se recebesse do Supremo Tribunal Federal um ofício pedindo a reserva de vacinas para imunizar 7 mil servidores do tribunal e do Conselho Nacional de Justiça?

Naturalmente, que o tribunal pretendia que do total de vacinas a serem entregues ao Ministério da Saúde para aplicação em massa nos brasileiros, 7 mil fossem destinadas aos seus servidores.

Não há outra leitura possível do ofício assinado por Edmundo Veras, diretor-geral do tribunal, enviado à Fundação Oswaldo Cruz, fabricante da vacina Oxford/AstraZeneca contra a Covid-19.

Veras argumenta no ofício que a vacinação dos servidores representará “uma forma de contribuir com o país em momento tão crítico, pois ajudará a acelerar o processo de imunização”.

Segundo o plano do Ministério da Saúde, primeiro serão vacinados trabalhadores da saúde, idosos, pessoas com comorbidades, profissionais de segurança, indígenas e quilombolas, por exemplo.

Se houver idosos e pessoas com comorbidades entre os servidores do tribunal e do Conselho Nacional de Justiça, eles serão contemplados. Indígenas e quilombolas certamente não há.

“Nós vacinaremos todos os brasileiros de forma igualitária, de forma proporcional ao número de pessoas por Estado e de graça”, prometeu Eduardo Pazuello, general e ministro da Saúde.

O ofício era desnecessário. A não ser que ele quisesse sugerir o desejo dos ministros do tribunal e dos servidores de serem vacinados em primeiro lugar ou o mais rapidamente possível.

Veras nega que teve essa intenção. Ofício semelhante também foi remetido à fundação por Marcos Antonio Cavalcante, diretor-geral do Superior Tribunal de Justiça. Que o justificou assim:

– A intenção de compra de vacinas vem sendo manifestada por diversos órgãos públicos que realizam campanhas de imunização entre seus funcionários.

Resposta da fundação a Cavalcante: “Infelizmente, a Fiocruz não possui autonomia nem mesmo para dedicar parte da produção da vacina para a imunização de seus servidores e colaboradores”.


Luiz Carlos Azedo: Ossos do ofício

Vamos raciocinar friamente: para uma “greve geral” na qual supostamente 40 milhões de trabalhadores cruzaram os braços, as manifestações do Primeiro de Maio de ontem não passaram de protestos tradicionais. Com a diferença de que milhões de diaristas e outros trabalhadores informais rogaram aos patrões que os deixassem trabalhar no feriado, para recuperar o dia em que faltaram ao serviço, contra a própria vontade, porque os ônibus não circularam nas periferias.

Isso significa que as paralisações, os protestos, os vandalismos e os excessos policiais devem ser subestimados? Não, de forma alguma, são sintomas de um processo de radicalização política que complica mais do que ajuda a resolver as questões. A violência nas manifestações do dia 28 de abril reforçou a narrativa do golpe contra a Dilma Rousseff e de que o país caminha por uma via autoritária, o que é completamente falso, mas está colando na mídia internacional.

Ossos do ofício para o governo Temer, que resultou de um processo de impeachment e herdou a baixíssima popularidade da ex-presidente Dilma. Considerando também o fato de que vários ministros estão sob investigação da Operação Lava-Jato, até que o balanço dos protestos não é tão desfavorável. As votações das reformas da Previdência, na Câmara, e trabalhista, no Senado, para onde convergem as pressões da oposição, serão a prova dos nove. As duas reformas são uma espécie de rubicão, tanto para o governo Temer como para o país.

O governo Temer tem três pontos de sustentação: o primeiro é a Constituição, que lhe garante o respaldo das Forças Armadas e o reconhecimento dos demais poderes da República; o segundo, a política econômica e a blindagem da equipe que a conduz; o terceiro, a ampla base parlamentar no Congresso, que está sendo posta à prova. É como uma mesa que se mantém de pé sem uma perna, porque o peso que suporta está sobre a superfície escorada. Se perder um desses pés ou o peso se deslocar para o outro lado, ela cai.

A perna que lhe falta é o apoio da opinião pública, que está à deriva. A oposição está pior das pernas do que o governo, porque sofreu uma dupla derrota no ano passado: a perda do poder central, com o impeachment de Dilma; e, logo depois, a fragorosa derrota nas eleições municipais. O imponderável são as reformas da Previdência e trabalhista, que estão mexendo com a opinião pública; as forças derrotadas pelo impeachment estão se aproveitando disso, principalmente o PT, que procura renascer das cinzas, apesar da imagem carbonizada.

As reformas

Quem está contra a reforma da Previdência são os servidores públicos que têm aposentadorias privilegiadas, entre os quais se incluem algumas poderosas corporações das carreiras de Estado. Num país cujas instituições mais importantes foram criadas por uma elite escravocrata, mexer em certos privilégios é verdadeira blasfêmia. Além disso, certas categorias de servidores, ao passar dos anos, foram realmente aviltadas, o que faz das aposentadorias e pensões com salários integrais uma espécie de compensação de toda uma vida. O problema é que a Previdência, com a mudança do perfil demográfico da população, se tornou insustentável. Entretanto, ninguém espere uma rendição dos privilegiados. Não sabem o que é derrota, sempre ganharam a queda de braços.

No caso da reforma trabalhista, a questão é parecida. Escorada na velha CLT do Estado Novo, de inspiração fascista, formou-se uma enorme burocracia na estrutura sindical, que dispõe de recursos cativos que não dependem do desempenho de seus dirigentes nas campanhas salariais. Há também um pacto perverso entre sindicalistas e patrões quanto ao imposto sindical, que também é recolhido em favor das entidades patronais. São 16 mil sindicatos, com dezenas de diretores e centenas de empregados cada, um exército de centenas de milhares de ativistas, cujos piquetes profissionalizados são capazes de paralisar os transportes e tumultuar a vida das cidades.

A reforma da Previdência e a reforma trabalhista não são um capricho de Temer para passar à história como estadista, são exigências urgentes da economia. Estamos vivendo o esgotamento de um modelo de capitalismo no Brasil, que se baseava na brutal transferência de recursos públicos para os monopólios privados, pela via dos contratos de obras e serviços, dos privilégios fiscais, dos empréstimos camaradas, tudo isso acompanhado de mecanismos de financiamento político dos partidos no poder e reprodução das oligarquias, além do enriquecimento pessoal de seus operadores. Esse modelo foi desnudado pela Operação Lava-Jato, mas seu colapso também tem a ver com uma revolução tecnológica que pôs em xeque os meios de produção e as relações de trabalho tradicionais. Ela é irreversível.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista.