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Merval Pereira: Senado derrota Bolsonaro

Poder do Congresso de barrar decretos que exorbitem as prerrogativas do presidente é muito claro na Constituição

A derrota pessoal do presidente Jair Bolsonaro ontem no Senado já era pressentida pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre, que fez um discurso, antes de pronunciar o resultado, em defesa dos senadores que haviam sido atacados por mensagens ameaçadoras enviadas por meio eletrônico.

O convencimento generalizado era de que esses ataques eram endossados, ou mesmo incentivados, pela família Bolsonaro, o que decidiu o ânimo com que os senadores votaram. Pretendem definir essa questão do armamento num debate de que resulte um projeto de lei.

A vitória do Senado, revogando os decretos de Bolsonaro flexibilizando o porte e a posse de armas por uma diferença bastante folgada, além da expectativa geral, é parte da disputa de espaço político que se trava entre Legislativo e Executivo.

A anulação dos decretos sobre liberação de porte e posse de armamento tem que ser confirmada pela Câmara, e há pouca chance de o governo lá reverter o resultado. Os presidentes da Câmara, deputado Rodrigo Maia, e o do Senado, Davi Alcolumbre, estão trabalhando juntos nessa reafirmação do Congresso.

A base da discussão no plenário do Senado sobre o decreto de flexibilização do porte e posse de armas foi a independência do Parlamento diante do Executivo.

Quem era a favor o defendeu com base na legítima defesa do cidadão. Os contrários acrescentaram aos motivos para não armar 20 milhões de cidadãos, de acordo com a conta da oposição, argumentos políticos. O presidente Jair Bolsonaro não poderia ter decidido sozinho a liberação, através de um decreto.

O Legislativo deveria ter sido chamado a opinar. Esse argumento político reflete a posição do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, que também está na luta pela emancipação do Legislativo como poder autônomo em relação ao Poder Executivo.

O poder do Congresso de barrar decretos presidenciais que exorbitem as prerrogativas do presidente da República é muito claro na Constituição, e os senadores retomaram para si a regulamentação de diversos artigos da Lei do Desarmamento.

O que deveriam ter feito desde 2003, aliás. Em cinco meses de governo, o presidente Jair Bolsonaro editou três decretos ampliando as possibilidades de liberar oficialmente posse e o porte de armas, uma de suas promessas de campanha.

Uma pesquisa do Ibope mostra, no entanto, que o argumento de que a permissão para armar a população foi dada no plebiscito de 2005 mostra-se defasado. Eram outras as circunstâncias, e outras as motivações.

O governo não tem mais o apoio da maioria da população: 61% dos pesquisados são contra afrouxar as regras de posse, e 73% se disseram contrários ao porte de armas para cidadãos.

Em mais uma etapa dessa guerra em processo, anunciou-se ontem que Bolsonaro vai vetar o trecho da medida provisória, aprovada no Congresso, que tirou o Coaf do Ministério da Justiça e Segurança Pública e o transferiu para o Ministério da Economia. Bolsonaro editará em seguida uma nova medida provisória confirmando a transferência do órgão para a pasta de Sergio Moro. É mais uma demonstração de apoio público a Moro, mas uma atitude política que pode atrapalhá-lo hoje no Congresso, quando será arguido sobre a troca de mensagens com os procuradores de Curitiba quando era o juiz da Lava-Jato.
A decisão foi informada pela Secretaria de Assuntos Jurídicos da Casa Civil, em uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) do partido Podemos, que pede que o Coaf fique com Sergio Moro.

Não há perspectiva de essa disputa política se encerrar tão cedo, pois, da parte dos bolsonaristas mais militantes, especialmente pelas redes sociais, há a disposição de encurralar o Congresso.

O tuíte do guru dos Bolsonaro, Olavo de Carvalho, afirmando que o Congresso só faz atrapalhar o presidente Bolsonaro, lido pelo senador Renan Calheiros, espelha bem o resultado final, uma afirmação de que Bolsonaro não pode governar por decretos, sem ouvir o Congresso. E nem pelas redes sociais.


Merval Pereira: Questão de honra

Em momentos radicalizados como o atual, é preciso conter os impulsos primitivos que podem aflorar em militantes

O candidato Jair Bolsonaro deveria ser o primeiro a querer uma investigação rigorosa sobre os episódios de violência envolvendo seu nome nos últimos dias. Não basta dizer que não quer os votos de quem participa de tais atos, nem se eximir de culpa quanto a eles, alegando que nada pode fazer.

Cabe a um líder político da envergadura que ele se tornou, mais por circunstâncias da política do que por méritos próprios, dar o rumo a seus liderados, desencorajando a violência como método político.

Ao mesmo tempo, em momentos radicalizados como o que estamos vivendo, a luta política toma feições selvagens, e é preciso conter os impulsos primitivos que podem aflorar em militantes, que, além de atos violentos, são capazes de usar os novos meios de comunicação para espalhar calúnias contra os adversários.

Há diversos exemplos dos dois lados em disputa de uso distorcido das redes sociais, com a disseminação de fake news. Os bolsonaristas espalharam, por exemplo, que o PT distribuirá nas escolas o tal kit gay, com descrição gráfica de objetos pornográficos para crianças.

Os petistas, que Bolsonaro acabará com o Bolsa Família, recurso recorrente já tradicional nas campanhas presidenciais dos últimos anos. Um vídeo reproduz o que seria uma carreata de bolsonaristas em uma cidade do Nordeste, distribuindo grama para a população que votou maciçamente no PT.

Claramente uma fake news, pois quem deveria comer a grama seriam os bolsonaristas que supostamente bolaram tamanha burrice. Mas o vídeo de um comício com a presença do candidato Wilson Witzel e de um dos filhos de Bolsonaro, onde arrebentaram a placa com o nome de Marielle Franco, é um flagrante de violência permitida ou incentivada que não é admissível num ambiente democrático.

É nesse contexto que, nos últimos dias, vários episódios de violência de supostos seguidores de Bolsonaro têm sido divulgados, o que exige uma investigação séria e um trabalho consistente da campanha do candidato do PSL para esclarecê-los, como o do capoeirista baiano morto a facadas supostamente por apoiar o PT.

O caso chocou o país, mas as versões do assassino e do dono do bar onde o fato ocorreu desmentem que a discussão tenha sido por questões políticas. Um esclarecimento oficial tem que ser dado. Em 1989, sequestradores do empresário Abilio Diniz foram presos antes da eleição usando camisas do PT. Depois, ficou comprovado de que o crime nada tinha a ver com o PT.

Outra situação que tem que ser encarada por Bolsonaro e sua equipe é o não comparecimento aos debates. Enquanto tem os laudos médicos avalizando sua ausência, não pode ser acusado de estar fugindo do debate. Mas, quando insinua que pode continuar não comparecendo “por estratégia”, Bolsonaro expõe-se à crítica da opinião pública.

O então presidente Lula, em 2006, faltou ao debate no primeiro turno e foi castigado pelos eleitores, que claramente quiseram lhe dar um susto. Seu adversário, Geraldo Alckmin, esse mesmo que teve agora pouco mais de 4% dos votos, terminou o primeiro turno naquela ocasião com surpreendentes 41%, contra 49% de Lula.

Surpreso por não ter vencido a eleição logo, o que lhe tiraria também o complexo de ter perdido duas vezes para Fernando Henrique Cardoso no primeiro turno, Lula ficou deprimido e trancou-se em casa por uma semana. Alckmin não soube aproveitar-se do momento e terminou a eleição com menos votos que no primeiro turno.

Mesmo que Bolsonaro tenha constatado, por pesquisas, que seu eleitorado não o criticará, ou considerará uma esperteza positiva a falta aos debates, ele será, se eleito, presidente de todos os brasileiros, e tem que pensar no coletivo, não na sua história política pessoal.

Vencer esquivando-se do debate com o adversário fará com que possa ser considerado, por parte do eleitorado, inseguro de sua capacidade de dirigir o país. Há também a desconfiança em alguns setores de que não terá condições físicas para assumir a Presidência, um boato que coloca uma dúvida importante no tabuleiro eleitoral que só ele pode desfazer.

O susto que Lula levou em 2006 não se repetirá desta vez, mesmo porque estamos no turno final e ninguém que votou contra o PT votará a favor agora para castigar Bolsonaro, castigando-se. Mas a liderança simbólica poderá ficar arranhada.