O Estado de S. Paulo

O Estado de S. Paulo: Média de apoio a Bolsonaro só supera índice de Dilma na fase do impeachment

Segundo estudo da UERJ, alinhamento dos deputados com o líder do governo nas votações na Câmara é maior apenas que o registrado antes do impeachment em 2016

Daniel Weterman e Camila Turtelli, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O presidente Jair Bolsonaro contou com uma base de votos na Câmara menor que a de antecessores nos dois primeiros anos de mandato. Mesmo com o apoio de partidos do Centrão e o alinhamento maior de deputados desse bloco ao Palácio do Planalto, a adesão a Bolsonaro supera apenas a observada durante o governo de Dilma Rousseff (PT) pouco antes do impeachment, em 2016. Para cientistas políticos ouvidos pelo Estadão, o quadro representa risco para o presidente no momento em que cresce a pressão por seu afastamento.

Levantamento do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB), produzido pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), revela que, na primeira metade de seu mandato, Bolsonaro teve, em média, apoio de 72,5% na Câmara. O índice considera o alinhamento dos deputados com a liderança do governo em todas as votações, excluindo aquelas nas quais houve consenso, como o decreto de calamidade pública para enfrentar a pandemia de covid-19.

Apesar de ter maioria na Câmara para aprovar projetos de seu interesse, Bolsonaro enfrenta dificuldades. Não sem motivo: o porcentual de 72,5% indica que o apoio parlamentar ao governo é inferior à base que sustentava seus antecessores desde a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2006 e 2007 a 2010).

A média de apoio ao governo em votações nominais na Câmara no primeiro mandato de Lula, por exemplo, foi de 77,1% até junho de 2004 . Já o ex-presidente Michel Temer, que assumiu o governo após o afastamento de Dilma Rousseff, obteve respaldo de 73,7% dos deputados no período em que permaneceu no cargo, até o fim de 2018. Nos meses que antecederam o impeachment de Dilma, no entanto, a adesão ao governo petista era de 58,2%.

Agora, diante do agravamento da pandemia de covid-19 e de erros do governo na condução da crise, a aprovação ao governo Bolsonaro caiu e foram registrados nos últimos dias em diversas cidades panelaços e carreatas com o mote “Fora Bolsonaro”. O presidente mudou a estratégia de comunicação, como mostrou o Estadãoe agora aposta na chegada das vacinas ao Brasil para superar o desgaste. Na arena política, Bolsonaro tem distribuído cargos e emendas para indicados do Centrão.

O cenário, no entanto, é de muita turbulência. Partidos de oposição como PT, PDT, PSB, Rede e PC do B prometem protocolar nesta terça-feira uma ação que pede a saída de Bolsonaro, sob o argumento de que ele tem sido negligente com a saúde da população.

Bolsonaro, por sua vez, se movimenta para eleger o deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), líder do Centrão, como presidente da Câmara. O principal adversário de Lira é o deputado Baleia Rossi (MDB-SP), apoiado pelo atual presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e por uma frente de siglas de centro e de esquerda.

Cabe ao presidente da Câmara arquivar ou dar andamento a pedidos de impeachment contra o chefe do Executivo. Atualmente, há 56 pedidos ativos de afastamento de Bolsonaro. A expectativa é que se Lira ganhar a eleição vai engavetar todos eles.

‘Cálculo político’

“O alinhamento nas votações é um indicador insuficiente para medir a possibilidade de impeachment, mas, certamente, sinaliza que a perda de apoio entre os parlamentares pode influenciar nas articulações para evitar a abertura de um impeachment”, afirmou a cientista política Débora Gershon, uma das autoras do estudo do Observatório do Legislativo Brasileiro. “O cenário atual, com queda de popularidade, é árido para o presidente, mas ainda não coloca o impeachment à vista. O elemento novo é o aumento da temperatura política fora do Congresso. Isso, sim, muda o cálculo político do parlamentar.”

Com a adesão ao governo, o Centrão se aproximou ainda mais de outros partidos conservadores, desde 2019 fiéis ao governo, como PSL e PSC. A distância desse grupo com a oposição criou um “fosso” no centro político da Câmara e aumentou a polarização nas votações. No ano passado, de acordo com o levantamento do Observatório do Legislativo Brasileiro, nenhuma legenda ficou “em cima de muro”.

“A base é fluida e instável porque são poucos os que acreditam verdadeiramente nas pautas do governo, exceto a econômica. Por isso, a cada votação dá-se novo rearranjo de forças. O Centrão segura, mas não garante”, disse o deputado Fábio Trad (PSD-MS), integrante de um dos partidos que apoiam Lira, mas que não declarou em quem vai votar.

Durante o ano passado, quando o Brasil começou a enfrentar a pandemia de covid-19 e o Congresso dedicou a maior parte dos projetos ao enfrentamento da crise, os deputados mais alinhados ao governo nas votações foram PSL, PL, Progressistas, Patriota, Novo, Republicanos, PSC e MDB. As notas médias de governismo ficaram próximas a 8, em uma escala que vai de 0 a 10. Na outra ponta, como era esperado, os oposicionistas PSOL, PT, PC do B, Rede, PSB, PDT, PV e Cidadania se mantiveram distantes da orientação do Planalto nas votações, com notas de 1 a 4.






O Estado de S. Paulo: Impeachment e economia pautam agenda pós-eleição no Congresso

Novos presidentes da Câmara e do Senado terão de analisar temas de impacto no governo, como um novo auxílio emergencial e pedidos de impedimento de Jair Bolsonaro

Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Os novos presidentes da Câmara e do Senado vão encontrar no início dos mandatos, em fevereiro, matérias de impacto direto na economia e no destino do governo de Jair Bolsonaro. Entre os deputados, a disputa envolvendo Arthur Lira (Progressistas-AL), candidato do Palácio do Planalto, e Baleia Rossi (MDB-SP) definirá a proposta de novo auxílio emergencial, defendida por governistas e opositores, e o avanço ou arquivamento de 56 pedidos ativos de impeachment do presidente da República.

As mortes de pacientes da covid-19 no Amazonas e no Pará por falta de oxigênio pôs combustão no debate sobre a possibilidade de um terceiro impeachment no atual período democrático – Fernando Collor e Dilma Rousseff caíram em 1992 e 2016, respectivamente, após enfrentarem processos. O Planalto não quis pagar para ver. Na ofensiva para emplacar Lira no comando da Casa e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) no Senado, o governo colocou a articulação política em campo com a oferta de cargos e recursos e tem demitido indicados por quem não demonstra apoio.

Numa possível prévia do jogo da cassação, a Câmara começou a discutir uma CPI da Saúde para investigar as falhas de logística na distribuição de testes e vacinas por parte do ministro Eduardo Pazuello. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que evitou abertura de processo contra Bolsonaro nos últimos dois anos, considera “inevitável” instalar a comissão.

Na última semana, o deputado Raul Henry (MDB-PE) saiu em busca de assinaturas para a CPI. Os movimentos do partido dele são monitorados pelo Palácio. “Para pedir CPI é preciso um fato específico. Coloquei os fatos de Manaus, do colapso na Saúde apesar dos avisos prévios, mas claro que, se o presidente da Câmara se dispuser a instalar, ela (a comissão) pode ampliar os campos de investigação”, disse Henry. Ele evita críticas diretas a Bolsonaro, mas deixa claro que a agenda do impeachment não pode ser “descartada”, desde que haja “evolução dos fatos”.

Há, ainda, a iniciativa do líder da Rede no Senado, Randolfe Rodrigues (AP) e do líder do PSB na Câmara, Alessandro Molon (RJ), para uma comissão mista, que reuniria deputados e senadores. Caso eles consigam as assinaturas suficientes, as investigações só começam com o aval dos presidentes das respectivas Casas. Para Molon, Bolsonaro só entrou “com tudo” na campanha de Lira para “barrar qualquer processo de impeachment. “Quanto ao Baleia, não há qualquer compromisso para que um processo de impeachment avance, mas a independência dele será fundamental para uma análise imparcial dos pedidos.”

Impedimento

A lista de pedidos de afastamento de Bolsonaro deve aumentar. Na terça-feira, partidos como PT, PDT, PSB, Rede, PCdoB e agora o PSOL, vão apresentar pedidos de impedimento sob argumento de crime na condução do combate à covid-19. Dos 61 pedidos protocolados desde o início do mandato do presidente, um não foi acolhido e quatro foram rejeitados por falhas nas apresentações. Restam 56 ativos.

É o presidente da Câmara quem analisa os requisitos legais para iniciar a abertura de um impeachment. Se ele considerar que há fato determinado, o pedido é lido pelo primeiro-secretário em plenário e, a partir daí, é formada uma comissão especial de 66 deputados.

No MDB, um eventual afastamento de Bolsonaro não é promessa de campanha de Baleia Rossi, mas o candidato atraiu a oposição com o compromisso de “analisar” os pedidos até agora engavetados por Rodrigo Maia. O emedebista mantém a possibilidade em aberto no momento em que crescem pressões dentro e fora do Legislativo para que o tema venha à pauta. 

Ao longo da semana passada, ele e a colega de partido Simone Tebet (MS), candidata à presidência do Senado, subiram o tom. Na terça-feira, a senadora disse que “arroubos autoritários e machistas” de Bolsonaro toda vez que “abre a boca” reforçam suas campanhas. Ela é menos reticente ao tratar do impeachment. “Eu já participei de processo de impeachment. Foram oito meses de paralisação. Posso dizer com tranquilidade que são incompatíveis”, disse a rádios de Campo Grande na última sexta-feira, referindo-se também a combate à covid-19 e à agenda econômica.

A aposta dos aliados de Baleia é que a tese da independência do Congresso pode render resultados. “Não só conquistamos uma independência em relação ao Executivo, mas também um protagonismo que tem sido importante para manutenção do equilíbrio institucional e econômico”, afirmou Rodrigo de Castro, que assume a liderança do PSDB em fevereiro. “Na medida em que você tem uma Câmara independente e um governo fraco, o governo se torna mais dependente dos deputados.”

Para aderir à candidatura de Baleia, partidos de oposição exigiram que ele não abrisse mão de “instrumentos constitucionais para assegurar o respeito à Constituição”. “Hoje, o clima do impeachment mostra que existe um clima anti-bolsonaro grande na sociedade e no parlamento”, disse o líder do PT, Enio Verri (PR).

Do lado de Lira, oficialmente predomina a tese de que o País precisa de chefes no Legislativo experientes, capaz de oferecer estabilidade neste contexto de crises. “O deputado Arthur ajuda o Brasil, jamais com subserviência ao Executivo ao à condução do Rodrigo Maia. Não é do perfil dele ser dessa forma”, rebateu Fred Costa (MG), líder do Patriota, primeiro partido a entregar apoio da bancada ao parlamentar alagoano.

Reforma tributária e ‘nova’ CPMF entram em discussão

reforma tributária é outro tema da pauta dos novos presidentes das mesas do Congresso. No governo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, pretende criar um tributo sobre transações financeiras, nos moldes da antiga CPMF, mas com alíquota mais baixa. Ele aposta na vitória de Lira para reapresentar a proposta do novo imposto. Baleia é autor de uma das principais propostas em tramitação no Congresso, com ideia de criar um imposto, mas em substituição a outros três tributos federais. Aliado de Lira, o líder do Solidariedade, Zé Silva (MG), defende um novo imposto temporário apenas para custear uma nova fase do auxílio emergencial. “Sou contra o aumento de carga tributária, mas não podemos deixar as pessoas passarem fome”, disse.

A líder do PSOL na Câmara, Sâmia Bomfim (SP), avalia que a deterioração da situação social do País vai obrigar uma discussão mais robusta sobre o auxílio emergencial. “Com Lira, deve haver um alinhamento total com Bolsonaro. Com Baleia, pode haver uma queda de braço semelhante à de 2020, quando a proposta da Câmara derrotou os R$ 200 reais que Bolsonaro queria (de auxílio)”, disse.

O auxílio emergencial é um benefício que, segundo parlamentares, inevitavelmente será formulado. Nesse aspecto, todos os principais candidatos mantêm discursos diferentes na fórmula, mas semelhantes no propósito. Rodrigo Pacheco chegou a defender a revisão do teto de gastos para encaixar a nova despesa. Arthur Lira tem dito que há chances de haver prorrogação. O tema do teto de gastos, porém, é um desafio. “Não podemos ser mais irresponsáveis fiscalmente”, afirma o líder do Novo na Câmara, Vinícius Poit (SP).  COLABOROU CAMILA TURTELLI

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O Estado de S. Paulo: Bloco de Lira tem mais confirmação de apoio partidário

Segundo o placar, declaração de apoio a candidato ligado ao Planalto chegou a 65% das siglas aliadas, ante 39% de Baleia Rossi

Adriana Ferraz e Fernanda Boldrin, O Estado de S.Paulo

Ainda faltam 70 votos para os deputados dos partidos que sustentam a candidatura de Arthur Lira (PP-AL) ao comando da Câmara dos Deputados declararem individualmente o apoio assegurado por seus líderes, mas o total até agora, de 65%, supera com ampla margem a fidelidade do bloco adversário, liderado por Baleia Rossi (MDB-SP). De acordo com o placar do Estadão, o candidato do atual presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-SP), tem, por enquanto, 39% dos 275 votos prometidos pelos aliados.

A enquete revela que o Patriota supera até mesmo PP e MDB quando o assunto é fidelidade partidária. Fechado com Lira, o partido declarou seus seis votos em favor do candidato apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro. O Republicanos também avança nos votos públicos para o deputado de Alagoas, assim como o PL, dono da terceira maior bancada da Casa.

“Todos vão anunciar que votam nele, pode ter certeza. Essa é a condição natural, não podemos mais ficar nesse marasmo. Nós, do PL, temos noção do que é melhor para o Brasil e para o Parlamento”, afirmou o líder do partido, Wellington Roberto (PB), que repassou aos correligionários o link da enquete publicada sexta para “incentivar” que mais votos em Lira se tornassem públicos – a eleição, marcada para o dia 2, é secreta.

Do outro lado da disputa, o mais rigoroso à determinação de apoiar Baleia é o PT. Dos 52 deputados petistas, 35 (67%) aceitaram falar publicamente que votarão no candidato de Maia, seguindo determinação da maioria da bancada.

Para o deputado Alencar Santana (PT-SP), o resultado mostra que o partido é coerente e, acima de tudo, partidário. “Nossas posições são frutos de amplo debate e assim vai se construindo a opinião política entre todos”, afirmou, mesmo entre os que perdem a discussão.  “Sou um dos parlamentares do PT que defendeu candidatura própria, mas, uma vez vencido, vou acompanhar o partido e votar no Baleia Rossi. Vou votar contra o Bolsonaro”, ressaltou Waldenor Pereira (BA).



De acordo com o levantamento, DEM e PSDB são os partidos mais infiéis até aqui, ao menos na declaração de votos. Apesar de terem sido os primeiros a formar o bloco de oposição à candidatura de Lira, mesmo sem o anúncio de um nome para a disputa, ambos atingem só 21% de apoio formal a Baleia. A grande maioria da soma dos parlamentares não quis responder em “on” ao placar do Estadão até as 19h de sexta-feira, 15.

Racha

Enquanto parte dos acordos de traição é firmada nos bastidores, nenhuma legenda trouxe fraturas mais explícitas à disputa que o PSL. Formalmente, o partido está com Baleia Rossi, mas a maioria da bancada apoia Arthur Lira.

Ao Estadão, 28 deputados disseram que pretendem votar no candidato do Planalto, enquanto apenas quatro disseram que seguirão o caminho oficializado pela legenda de apoio ao emedebista. O número dos parlamentares que não quiseram responder chegou a 21.

Ex-líder do governo na Câmara, Vitor Hugo (PSL-GO), articulador da lista dos parlamentares do PSL que apoiam Lira, afirma que a candidatura de Baleia se tornou uma candidatura de oposição. “Eu não quero estar no mesmo bloco que PT, PCdoBPV. Eu não consigo vislumbrar o PSL, que se elegeu com pautas de direita, liberais, no mesmo bloco que esses partidos”, disse.

Já para o vice-presidente da legenda, o deputado federal Bozzella, que defende o nome de Baleia, a disputa não está se desenhando entre os eixos direita e esquerda, mas sim entre um bloco que ele chama de “independente” e um bloco classificado pelo parlamentar como “fisiológico”. “Não deixa de ser uma infração você dar apoio a um candidato apoiado pelo presidente da República que está loteando o Estado para poder interferir nas decisões do Parlamento”, diz, em referência à aliança dos governistas em torno de Lira.

Para o cientista político Rafael Cortez, a eleição vai testar a coesão interna dos partidos e a capacidade dos líderes em impor disciplina às suas bancadas diante de uma série de interesses que se cruzam e não necessariamente se alinham. “Eventualmente, interesses locais se contradizem com a política da legenda, e a tendência é que isso dificulte um monitoramento dos votos para os diferentes candidatos, impossibilitando a antecipação do resultado”, afirmou.

O deputado Carlos Henrique Gaguim (DEM-TO) tem o seu próprio placar. Ao lado de Lira, diz que a votação será definida em primeiro turno e que o DEM ajudará o opositor de Maia a se eleger com ao menos 20 votos. “Essa é a nossa previsão.”

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O Estado de S. Paulo: Projeto tira a regulação da segurança privada da PF

Ministério Público e Polícia Federal alertam para proposta de lei orgânica, que dá à PM a prerrogativa de ‘credenciar e fiscalizar’ empresas do setor e a guarda de quarteirão

Paula Reverbel, O Estado de S.Paulo

O projeto de lei que pretende remover alguns dos controles que governadores de Estado têm sobre suas forças policiais também invade atribuições da Polícia Federal em relação à fiscalização e regulação de empresas particulares de segurança privada. A avaliação é de representantes e entidades do Ministério Público e da PF ouvidos pelo Estadão. O texto em discussão prevê que caberá às polícias militares “credenciar e fiscalizar as empresas de segurança privada, os serviços de guarda de quarteirão ou similares, e as escolas de formação, ressalvada a competência da União e atendido os termos da legislação específica do ente federativo”.

Atualmente, essa atribuição é da PF, que possui um departamento para administrar o assunto. É de responsabilidade exclusiva da corporação: credenciar e habilitar instrutores para escolas de formação de vigilantes; emitir a carteira nacional de vigilante; emitir autorizações para a aquisição e o transporte de armas de fogo, armas não letais e munições; vistoriar os veículos especiais de transporte de valores e autorizar o seu uso pelas empresas de vigilância; autorizar a aquisição de coletes balísticos; e emitir o certificado de regularidade de empresas de segurança privada.

De acordo com a subprocuradora-geral da República Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, titular da Câmara Criminal da PGR e de ofício criminal junto ao Superior Tribunal de Justiça, passar essas atribuições às PMs pode gerar problemas de conflitos de interesse, dado o alto número de policiais militares que são sócios em empresas privadas de segurança. “E se o PM tiver participação societária nessas empresas?”

A questão pode ter impacto significativo. Conforme dados da Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores (Fenavist), havia, em junho do ano passado, 4.618 empresas do ramo atuando no Brasil. Elas empregavam mais de 500 mil vigilantes com vínculos ativos, metade deles no Sudeste. Cerca de um milhão de profissionais capacitados pelos cursos de formação e regularizados na Polícia Federal estão aptos a trabalhar. O setor alcançou R$ 36,9 bilhões de receita bruta em 2019, de acordo com a consultoria econômica da Fenavist.

“Há muito tempo que as PMs querem atuar nessa área”, disse ao Estadão o vice-presidente da Associação dos Delegados da PFLuciano Leiro. Ele afirmou que, no Rio Grande do Sul, parte dessas funções já é desempenhada pela Brigada Militar – nome da PM do Estado –, o que tende a ser alvo de ação judicial. “Já há essa fiscalização por parte da PF, para que criar uma nova estrutura de fiscalização para isso? É um desperdício de dinheiro público.”

Contra

Diretor jurídico da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef)Flávio Werneck concordou. “Nesse ponto, somos terminantemente contra (o que prevê o projeto). Temos uma influência muito grande de policiais militares na segurança privada, o que pode acarretar problemas futuros nas fiscalizações.” Ele disse que, se preciso, a Fenapef vai se posicionar contra o projeto no Congresso.

“Essa missão de fiscalizar empresas de segurança é muito bem executada pela PF”, afirmou o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR)Fábio George Cruz da Nóbrega. “Esse é um ponto preocupante do projeto.”

A possibilidade de policiais serem sócios de empresas da área é permitida pela legislação da maioria dos Estados. Em São Paulo, por exemplo, apesar de a Lei Orgânica da Polícia do Estado proibir que os policiais exerçam qualquer outro emprego ou função “mesmo nas horas de folga”, o estatuto do funcionalismo público estadual cria a brecha para que o servidor seja “acionista, quotista ou comanditário” de sociedades comerciais.

Para o ex-ministro da Segurança Pública Raul Jungmann, embora seja necessário e urgente regulamentar as polícias estaduais – já que as regras em vigor são de 1969 –, o projeto em discussão é inconstitucional porque fere o pacto federativo. “Do jeito que está não passa no Congresso e, se porventura viesse a passar, seria declarado inconstitucional pelo STF. Seu objetivo político é claro: atender e manter a mobilização das suas bases nas corporações policiais”, afirmou o ex-ministro ao Estadão.

Jungmann alertou ainda para o fato de que, ao conceder funções demais às PMs, o texto poderia produzir o resultado de retirar os efetivos das ruas e das suas funções privativas de prover a segurança à população.

Projeto de Lei da PM

Indicação e mandato do comandante-geral

Como é: Indicação é feita pelo governador, sendo o indicado oficial da ativa e observada sua formação profissional.

Como fica: Indicação é por lista tríplice e mandato é de 2 anos. Demissão deve ser “justificada”.

Quadro de oficiais

Como é: O quadro de oficiais, atualmente, vai de segundo-tenente ao posto máximo, decoronel.

Como fica: Cria quadro formado por 3 patentes: tenente-general, major-general e brigadeiro-general.

Segurança privada

Como é:A segurança privada é credenciada e fiscalizada pela Policia Federal, conforme a Lei Federal 7.102/83.

Como fica: Define como competências da PM credenciar e fiscalizar empresas de segurança privada.


Marco Aurélio Nogueira: Um ano para não esquecer

2021 há de nos ajudar a encontrar a melhor estrada para recuperar o terreno que perdemos

O ano de 2020 termina com a tragédia instalada: somente no Brasil são quase 8 milhões de infectados, os mortos os mortos se aproximando de 200 mil. A situação calamitosa, que impulsionou as vacinas para o primeiro plano, deixou patente a incompetência generalizada do governo federal, que assistiu com escárnio, indiferença e passividade à disseminação do vírus.

A gestão do general Pazuello no Ministério da Saúde limitou-se a reverberar as posições do presidente. Não se preocupou em elaborar tempestivamente um plano de imunização. Um ministério militarizado, distante dos profissionais da área e de seus conhecimentos, distante até mesmo da capacidade logística sempre lembrada como virtude dos militares.

Somente no final do ano, quando a pandemia repicava com força, o ministério saiu da letargia e apresentou um plano. Elaborado às pressas e repleto de indefinições. O próprio presidente, que ensaiou posar de conciliador, continuou a vociferar contra a vacinação, chegando ao absurdo de sugerir que os vacinados poderiam converter-se em “jacarés”. Liberou seus seguidores para a divulgação de insanidades seriais. Uma enxurrada de boçalidades caiu sobre os brasileiros, minando sua confiança e sua concentração. Como estaremos depois das festas e dos ritos do verão?

Medo, angústia, insegurança infiltraram-se pelos poros da sociedade. O vírus revelou a fragilidade humana perante suas próprias criações, fez o ruim ficar péssimo. Sem instâncias de coordenação, o desentendimento se alastrou, com um cortejo de horrores. O choque de “narrativas” reforçou os polos entre os quais nos agitamos. Demos de cara com nossas chagas sociais, com a marginalização, a segregação, a precariedade existencial de tantos brasileiros.

A pandemia se encontrou com uma sociedade que já sofria com a pauperização, a fragmentação, a perda de direitos, um governo que cria inimigos artificiais, mas se acovarda diante de inimigos reais.

Entraremos em 2021 com dúvidas e indefinições. Não se sabe quantas doses de imunizante estarão à disposição, de que laboratórios virão, quando começará a campanha e até quando ela se estenderá. Não há cronograma nem indícios de planejamento, o que significa que o processo poderá ressentir-se da falta de controles fundamentais quando se mexe com vacinas complexas, a serem aplicadas em duas doses espaçadas no tempo. Desperdiça-se a consagrada expertise brasileira em imunizações.

Enquanto não houver vacinação em massa a vida não voltará ao “normal”, a economia não se recuperará, a desigualdade continuará a se aprofundar, o País irá se inviabilizando, com menos chances de entrar nas cadeias de valor e nos fluxos da inovação tecnológica do nosso tempo.

Um ano de pandemia e confinamento, mesmo que seletivo, marcará a vida dos brasileiros. Mexerá com sua psique, com seu imaginário, com o modo como organizam as atividades, trabalham, consomem e educam os filhos. As crianças e os jovens são um capítulo à parte, alijados da escola, das interações afetivas, das amizades. Que adultos se tornarão depois dessa experiência dolorosa? Com que gap educacional?

Os brasileiros não abraçaram o distanciamento social como deveriam. Não puderam fazê-lo, acossados pelas exigências do emprego, da busca de renda. Muitos não souberam e não aceitaram. Parte da população deixou-se levar pelo discurso presidencial, pela agitação dos bolsonaristas de plantão, pregadores da ignorância. Tudo ajudou a que o povo extravasasse o desejo de se aglomerar. Enquanto os mais pobres foram às ruas para trabalhar, os mais ricos encheram bares, shoppings e restaurantes.

O tamanho da tragédia sanitária corresponde ao tamanho da tragédia política que se abateu sobre os brasileiros. Ausência de governo sempre produz caos. Pior ainda quando um governo que não governa insiste em pregar a desunião, ataca instituições, repete à exaustão uma narrativa doentia, sustentada pela burrice, pela provocação barata, pela agressividade. Os três Poderes da República não se entendem, a Federação não funciona, há pouca coesão, os brasileiros estão desorientados e confusos.

Chegamos ao fim do ano sentindo a falta que faz um governo que garanta vidas, direitos, boas políticas. O ano também foi de ausências: da voz das ruas e dos democratas, da sua capacidade de se opor aos desmandos do poder e de dar um “basta” aos arroubos criminosos do presidente.

Andamos, porém, em pista de mão dupla: as eleições municipais produziram fatos e novas lideranças, um clima de entendimento político emergiu da disputa pela presidência da Câmara dos Deputados, Trump foi derrotado, a ciência está vencendo a covid.

Por certo aprendemos algo em 2020, conhecemos melhor nossos limites e imperfeições. Não vamos recomeçar do zero, nem desprezar o patrimônio que acumulamos à custa do esforço de um povo dedicado, sofrido, que sabe arrancar a vida pela raiz.

Que venha, pois, o ano novo. Ele há de nos ajudar a encontrar a melhor estrada para recuperar o terreno que perdemos nos desvios perversos da História.

*Professor Titular de Teoria Política da Unesp


Luiz Carlos Trabuco Cappi: Rating: melhor prevenir do que remediar

O governo tem instrumentos para reverter a tendência de crescimento da dívida

nota de rating definida pelas agências de classificação de risco reflete a saúde financeira de um país. Dois exemplos históricos recentes indicam essa tendência. Entre maio de 2008 e setembro de 2009, Standard & Poor’sFitch e Moody’s atribuíram ao Brasil o cobiçado grau de investimento. Estavam certas e reconheceram o ciclo econômico brasileiro associado ao ‘boom’ global das commodities. Em 2010, o País obteve US$ 48,4 bilhões em investimento estrangeiro direto, alta de 87% sobre o ano anterior e liderança em atração de capital na América Latina. Atingiu-se um recorde, com a criação de 2,5 milhões de empregos formais. O PIB cresceu 7,5%, maior taxa dos 24 anos anteriores. 

O reverso da moeda é igualmente verdadeiro. A partir de 2015, com a deterioração dos indicadores, as três empresas de classificação de risco, entre setembro daquele ano e fevereiro do seguinte, cortaram o grau de investimento concedido sete anos antes. Era o mergulho anunciado. O PIB recuou em 2015 e 2016, com -3,8% e -3,6%, respectivamente. Antes, apenas em 1930 e 1931 o Brasil havia tido dois anos consecutivos de retrocesso, mas a taxas menores. Em 2016, o IED despencou 23%. O consumo das famílias caiu 4,2%. Uma maré de desemprego provocou, segundo dados do Caged, 104,5 mil demissões apenas em fevereiro, pior índice do mês para o mercado de trabalho em 25 anos. Nos 12 meses anteriores, 1,7 milhão de vagas foram fechadas. Assim como na bonança, as agências outra vez fizeram a leitura correta do cenário deletério.

O trabalho das agências é o de conceituar a capacidade de pagar dívidas de um país, em função de dados sobre dinâmica da dívida, situação fiscal e taxa de câmbio. Quando a nota aumenta, melhora o potencial de novos investimentos e diminui o custo de captação externa para o governo e as empresas. Ao cair, inverte-se a equação. 

S&P, Fitch e Moody’s têm notas parecidas para o Brasil. Se comparado aos vizinhos, estão acima da Bolívia e da Argentina, mas abaixo do Paraguai e da Colômbia. Além da nota, as agências também emitem pareceres sobre perspectivas. A Moody’s e a S&P têm uma visão estável em relação ao Brasil, enquanto a Fitch enxerga uma expectativa negativa. 

A nota de risco do Brasil está em discussão. O motivo principal é a dinâmica fiscal. Alguns indicadores, como o encurtamento da dívida pública, cujo prazo médio caiu para 35 meses, os grandes vencimentos em 2021 e custos de captação mais altos para prazos mais longos, próximos a 10%, são sinais de alerta. 

Se nada for feito, há o risco, segundo analistas, de que o País entre num quadro de dominância fiscal, situação conhecida como de perda da eficácia da política monetária.

É prioritário evitar esse redemoinho perverso – o das previsões que podem se autorrealizar a partir das expectativas anunciadas pelas cotações dos mercados.

No ano passado, a relação dívida pública/PIB foi estabilizada, o que levou a S&P, em novembro, a elevar de estável para positiva a perspectiva do rating desse quesito central. Em nota, o Tesouro Nacional afirmou que essa decisão corroborava a agenda de reformas. 

Este ano, em razão da pandemia, o endividamento disparou e as reformas não avançaram, acirrando-se as tensões do mercado.

governo continua a ter os instrumentos para controlar a situação e reverter a tendência de crescimento da dívida – mas é preciso senso de urgência. As correções são conhecidas: garantir o teto de gastos, fazer as reformas andarem no Congresso e crescer. O Brasil tem um consenso nessa direção e, portanto, as condições para fazer acontecer.

Felizmente, os mercados consideram a dinâmica sob controle. O indicador Embi+, calculado pelo J.P. Morgan, estabilizou num nível confortável. O custo de captação externa, medido pela revista The Economist, é o mais baixo da América do Sul. O agronegócio mostra pujança e o consumo dá sinais de recuperação.

O quadro geral, porém, é desafiador. Por isso, vale o ditado popular: melhor prevenir do que remediar.

*PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS


Vera Magalhães: DEM já (bem) dividido entre Doria e Huck

Já está avançada a divisão interna dos principais caciques do DEM, uma das jóias mais vistosas das eleições de 2020, entre o apoio ao projeto presidencial de Luciano Huck e o de João Doria (PSDB) em 2022. Não são poucos os interesses em jogo no tabuleiro, e cada um dos lados tem apoiadores de peso para o seu projeto, além de argumentos sólidos e que envolvem a geopolítica estadual em sua ponderação.

Neste momento e diante do avanço das duas hipóteses, o namoro com Ciro Gomes (PDT) é a hipótese menos avançada, embora tanto o presidente nacional da sigla, ACM Neto, quanto o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, mantenham uma ponte estendida rumo ao pedetista.

Avançou muito nos últimos meses a aproximação de Luciano Huck com o DEM. O partido passou a ser o destino mais provável do apresentador de TV caso ele finalmente deixe a hesitação de lado e decida se lançar num projeto presidencial. Neste caso, ele faria isso como candidato do DEM, e não do Cidadania, como chegou-se a ventilar.

O partido de Roberto Freire, embora tenha em sua órbita os chamados movimentos de renovação, plataforma importante do projeto de Huck, vem perdendo fôlego eleitoral, ao passo que o DEM vem crescendo. Maia, ACM Neto e Eduardo Paes compõem a tríade demista que conversa com Huck, e espera uma resposta sua até março do ano que vem.

As conversas começaram no meio do ano, e já evoluíram muito. O convite para a filiação foi feito sem rodeios, e está subentendido que Huck já está convencido de que, se for mesmo candidato, terá de ser por um partido estruturado como o DEM. A hesitação do apresentador ainda é de se apresentar como um candidato de centro-direita, quando prefere ser classificado como progressista. Mas os aliados têm alertado que esse campo já está congestionado e que, nele, Huck tem poucas chances.

Para tê-lo no time, o DEM aceita fazer uma revisão programática que contemple a defesa de um liberalismo nas duas pontas: na economia e também na pauta de costumes, o que o afastaria do reacionarismo bolsonarista e daria discurso a Huck.

O namoro cada vez mais sério acendeu o alerta na seção paulista do DEM e no PSDB. O vice-governador de São Paulo, Rodrigo Garcia, sempre foi um general importante na configuração do primeiro escalão demista. Fechou uma aliança muito explícita com João Doria Jr. de que, caso o tucano conseguisse cumprir uma série de tarefas entre 2019 e 2022, seria o candidato ao governo de São Paulo, numa inédita cessão de lugar do PSDB no Estado que governa desde 1995.

Acontece que nenhum cacique do DEM fora de São Paulo acredita que o PSDB vá abrir mão de ter candidato em São Paulo, ainda mais depois de uma eleição municipal em que saiu com sotaque ainda mais paulista (encolheu no resto do Brasil e cresceu em São Paulo). Além disso, os demistas do Nordeste temem repetir 2018, quando, mesmo dividido, o DEM decidiu sair em aliança com o PSDB pela sétima (!) vez e Geraldo Alckmin foi humilhado nas urnas.

Esses dirigentes do DEM argumentam que Doria tem um perfil muito “arrumadinho”, difícil de emplacar fora de São Paulo, ainda mais diante de uma disputa que vai ter Jair Bolsonaro e o PT. “Corremos sério risco de ficar de novo assistindo a um segundo turno entre Bolsonaro e o PT”, me disse um importante player do DEM entusiasta a saída Huck.

Mas o apresentador do Caldeirão não é igualmente janota, além de ser alguém ingênuo e pouco versado nas artes da política? A essa pergunta os partidários de sua filiação ao DEM respondem que ele tem uma inserção nacional que precede a política, e é alguém identificado com preocupações sociais graças a sua imagem consolidada na TV.

O que mais seduz o DEM, para além dessas questões de imagem, é a possibilidade de ter uma candidatura própria pela primeira vez desde 1989, com Aureliano Chaves. “Essa é uma dívida que nunca que se paga? Onde está escrito que precisamos ser linha auxiliar do PSDB o resto da vida?”, pondera um demista.

A sedução parece sublimar até o cálculo de vir a ter o governo de São Paulo, algo muito além da atual estatura do DEM, mesmo diante das vitórias em capitais (Rio, Salvador, Curitiba e Florianópolis). Rodrigo Garcia, sempre muito cauteloso na articulação política, tem se mostrado internamente disposto a bancar a briga, mesmo se tiver de ficar em lado oposto de seus tradicionais aliados Neto e Maia.

Tem dito que, caso seu partido o trate como peça descartável e ache que é pouco ter o governo de São Paulo, vai tentar vencer uma eventual convenção. Se fia no fato de que é um dos mais reconhecidos operadores do partido em votos no Congresso e em convenções, profundo conhecedor dos humores das bancadas da Câmara e do Senado.

Se, ainda assim, for derrotado, tem dito explicitamente que se filiará a outro partido para apoiar Doria e disputar o governo paulista. Esse destino pode ser o próprio PSDB, o que não interessa tanto a Doria, pois deixa de somar tempo de TV em sua coligação, o PSD do antigo aliado Gilberto Kassab (com quem rompeu há alguns anos, mas, segundo interlocutores de ambos, voltou a ter boa relação) ou mesmo o MDB, partido que se aproximou da órbita do Palácio dos Bandeirantes na sucessão paulistana.

E a opção Ciro? Deixou de ser tão sedutora aos olhos dos pais fundadores (ou herdeiros) do DEM. Isso porque o mapa do Brasil após as eleições se mostrou ainda inclinado à centro-direita, com os partidos da política tradicional voltando a mostrar força. A avaliação interna do DEM é que o caminho para vencer Bolsonaro é por aí, e não pela centro-esquerda (que, ademais, estará congestionada por Ciro, pelo PT e pela estrela ascendente Guilherme Boulos, do PSOL).

Tudo isso é o retrato de 2020, que depende de 2021 para desaguar em 2022.

Algumas respostas precisarão ser dadas:

Huck vai deixar a Rede Globo e o conforto da fama e dos contratos milionários para se aventurar no terreno pantanoso, pouco conhecido por ele e violento da política? Nem seus entusiastas têm certeza disso;

Doria vai conseguir fazer nos próximos dois anos um governo bem avaliado, que lhe permita sair de São Paulo com capital eleitoral suficiente para se nacionalizar?

Bolsonaro vai conseguir recuperar seu eleitorado à base de reação da economia e composição com o chamado centrão? Nesse caso, o DEM ficará no governo e ainda flertará com a possibilidade de apoiá-lo (algo que hoje, com exceção de Onyx Lorenzoni e Ronaldo Caiado, ninguém no partido quer?)

Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre vão para o tapetão e conseguirão se reeleger para novos mandatos à frente das presidências da Câmara e do Senado? Isso elevará ainda mais o já alto cacife do DEM para a sucessão presidencial.


Paul Krugman: Com Janet Yellen no Tesouro, política econômica dos EUA será ditada por quem sabe o que está fazendo

Escolha de Joe Biden para o cargo anima economistas não só por ela ter uma carreira notável no serviço público e ter sido uma pesquisadora séria; existe algo de revanche contra Donald Trump

É difícil extrapolar o entusiasmo dos economistas com a escolha de Janet Yellen para próxima secretária do Tesouro. Parte dessa euforia reflete o caráter revolucionário da sua nomeação. Ela não só é a primeira mulher a comandar essa secretaria, mas será a primeira pessoa a assumir todas as três posições de comando da política econômica dos Estados Unidos - como presidente do Conselho de Assessores Econômicos, do Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) e do Tesouro.

E, sim, existe algo de revanche contra Donald Trump, que negou a ela um muito merecido segundo mandato como presidente do Fed, ao que consta porque achava que ela era muito baixinha.

Mas a boa notícia sobre Janet Yellen vai além da sua notável carreira no serviço público. Antes de assumir o cargo ela era uma pesquisadora séria. E, em particular, uma das figuras na vanguarda de um movimento intelectual que ajudou a salvar a macroeconomia como uma disciplina útil quando essa utilidade estava sob ataques internos e externos.

Antes de chegar a esse ponto, uma palavra sobre o tempo que ela passou no Federal Reserve, especialmente quando participou do conselho diretor da instituição, no início de 2010, antes de presidi-la.

Na época, a economia dos Estados Unidos vinha lentamente se recuperando da Grande Recessão - uma recuperação impedida, não por acaso, pelos republicanos no Congresso que fingiam se preocupar com a dívida pública impondo cortes de gastos que afetaram de maneira importante o crescimento econômico. Mas a questão dos gastos não era o único tema do debate; também eram ferozes as discussões sobre a política monetária.

Especificamente, muitas pessoas da direita condenavam os esforços do Fed para salvar a economia dos efeitos da crise financeira de 2008. A propósito, entre elas estava Judy Shelton, uma pessoa totalmente desqualificada que Trump ainda tenta colocar no conselho diretor do Fed e que, em 2009, alertou que as políticas adotadas pela instituição resultariam numa “ruinosa inflação” (o que não ocorreu).

Mesmo dentro do Federal Reserve havia uma divisão entre os que preconizavam medidas mais duras em relação à inflação e os defensores de uma política mais leniente permitindo um pequeno aumento da inflação que, no final, incentivaria o crescimento e a criação de empregos, e que o combate à depressão devia ser prioritário. Janet Yellen era um deles e uma análise feita em 2013 pelo The Wall Street Journal concluiu que, entre os articuladores políticos do Fed, ela foi a mais precisa nas previsões.

Por que ela acertou? Parte da resposta, eu diria, remonta ao seu trabalho acadêmico na década de 1980.

Na ocasião, como já afirmei, a macroeconomia útil estava sob ataque. O que quero dizer com “macroeconomia útil” é o entendimento, compartilhado por economistas como John Maynard Keynes e Milton Friedman, de que as políticas fiscal e monetária devem ser usadas para o combate das recessões e reduzir o impacto negativo sobre as pessoas e sobre a economia.

Esse entendimento não falhou quando foi testado na realidade, pelo contrário, a experiência do início dos anos 1980 confirmou vigorosamente os prognósticos da tese macroeconômica básica. Mas estava sob ameaça.

De um lado, políticos de direita defendiam doutrinas excêntricas, especialmente a tese de que os governos podem engendrar um milagroso crescimento reduzindo impostos devidos pelos ricos. De outro lado, um número importante de economistas rejeitava qualquer papel da política no combate das recessões, afirmando que ele era desnecessário se as pessoas agissem racionalmente em seus próprios interesses, e que a análise econômica sempre devia supor que as pessoas são racionais e buscam seus próprios interesses. E mesmo um pouco de realismo sobre o comportamento humano renova a defesa de políticas agressivas para combater as recessões. Em trabalhos posteriores, Yellen mostrou que os resultados para o mercado de mão de obra dependem muito não só dos cálculos de ganhos e lucros, mas também da percepção de equidade.

Tudo isto parece ininteligível, mas posso responder, pela minha própria experiência, que esse trabalho teve um enorme impacto sobre muitos economistas jovens, basicamente dando a eles permissão para serem mais sensatos.

E me parece que existe uma linha direta do realismo disciplinado da pesquisa acadêmica de Janet Yellen para seu sucesso como estrategista econômica. Ela sempre foi alguém que compreendeu o valor dos dados e modelos. E com efeito, a reflexão rigorosa se torna mais, e não menos, importante em tempos como estamos vivendo hoje, quando a experiência passada oferece pouca orientação sobre o que deveríamos estar fazendo. Mas ela também nunca esqueceu que a economia tem a ver com pessoas, que não são as máquinas de calcular insensíveis que os economistas às vezes querem que elas sejam.

Agora, nada disso significa que as coisas necessariamente irão de vento em popa. A corrida não é dos velozes, como o pão não é dos sábios, e tampouco o entendimento dos responsáveis pelas políticas garante o sucesso, mas o tempo e a oportunidade possibilitam tudo isto. O gabinete de governo de Trump foi um show de palhaços - possivelmente o pior gabinete na história dos EUA. Mas foi apenas em 2020 que as consequências da incompetência deste governo ficaram totalmente aparentes.

Mas é imensamente tranquilizador saber que a política econômica será ditada por uma pessoa que sabe o que está fazendo. / Tradução de Terezinha Martino.


O Estado de S. Paulo: Vazamento de senha do Ministério da Saúde expõe dados de 16 milhões de pacientes de covid

Funcionário do Albert Einstein divulgou na internet lista com usuários e senhas que davam acesso aos bancos de dados de testados, diagnosticados e internados; autoridades como Bolsonaro tiveram privacidade violada

Fabiana Cambricoli, O Estado de S.Paulo

Ao menos 16 milhões de brasileiros que tiveram diagnóstico suspeito ou confirmado de covid-19 ficaram com seus dados pessoais e médicos expostos na internet durante quase um mês por causa de um vazamento de senhas de sistemas do Ministério da Saúde.

Entre as pessoas que tiveram a privacidade violada, com exposição de informações como CPF, endereço, telefone e doenças pré-existentes, estão o presidente Jair Bolsonaro e familiares; o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello; outros seis titulares de ministérios, como Onyx Lorenzoni e Damares Alves; o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e mais 16 governadores, além dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP).

A exposição de dados não foi causada por ataque hacker nem por falha de segurança do sistema. Eles ficaram abertos para consulta após um funcionário do Hospital Albert Einstein divulgar uma lista com usuários e senhas que davam acesso aos bancos de dados de pessoas testadas, diagnosticadas e internadas por covid nos 27 Estados. Conforme o Einstein, o hospital tem acesso aos dados porque está trabalhando em um projeto com o ministério.

Com essas senhas, era possível acessar os registros de covid-19 lançados em dois sistemas federais: o E-SUS-VE, no qual são notificados casos suspeitos e confirmados da doença quando o paciente tem quadro leve ou moderado, e o Sivep-Gripe, em que são registradas todas as internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), ou seja, os pacientes mais graves.

A exposição dos dados foi descoberta pelo Estadão após uma denúncia recebida pela reportagem com o link para a página onde as senhas dos sistemas estavam disponíveis. A planilha com as informações foi publicada em 28 de outubro no perfil pessoal de Wagner Santos, cientista de dados do Einstein, na plataforma github, usada por programadores para hospedar códigos e arquivos.


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A reportagem acessou o sistema para checar a veracidade dos dados. Ao verificar que as senhas eram válidas, buscou registros de autoridades que já haviam divulgado publicamente diagnóstico ou suspeita de covid e confirmou que os dados estavam corretos.

Os bancos de dados do ministério trazem, além das informações pessoais dos pacientes, detalhes considerados confidenciais sobre o histórico clínico, como a existência de doenças ou condições pré-existentes, entre elas diabete, problemas cardíacos, câncer e HIV.

Alguns registros de pacientes internados traziam até informações do prontuário, como quais medicamentos foram administrados durante a hospitalização. No registro de Pazuello, por exemplo, era possível saber em qual andar do Hospital das Forças Armadas ele ficou internado e qual profissional deu baixa em sua internação.

Tanto pacientes da rede pública quanto da privada tiveram seus dados expostos. Isso porque a notificação de casos suspeitos ou confirmados de covid ao Ministério da Saúde é obrigatória a todos os hospitais.

Para o advogado Juliano Madalena, professor de Direito Digital e fundador do fórum direitodigital.io, o vazamento das senhas e exposição dos dados que deveriam ser resguardados pelo poder público é preocupante. De acordo com o especialista, as informações podem ser usadas para fins comerciais por diferentes empresas. “Dados de saúde podem ser usados por empresas do ramo que queiram criar produtos específicos voltados para um público, por empresas de seguro de vida ou planos de saúde de forma indevida, muitas vezes até com aspecto discriminatório, pois você tem as informações sobre o histórico de saúde da pessoa”, diz.

O advogado diz que, considerando a Lei Geral de Proteção de Dados, é dever de quem controla e acessa os dados adotar medidas que evitem vazamentos. Nesse caso, tanto o Einstein e seu funcionário quanto o Ministério da Saúde podem ser responsabilizados por dano coletivo por terem exposto informações de milhões de pessoas. Mesmo quando não agem de forma proposital, responsáveis por vazamento de dados pessoais e sensíveis podem ser obrigados judicialmente a pagar indenizações por dano coletivo.

Ministério da Saúde e Einstein vão investigar responsabilidade

Após serem comunicados pelo Estadão sobre o vazamento das senhas de sistemas federais, o Hospital Albert Einstein e o Ministério da Saúde disseram que as chaves de acesso foram removidas da internet e trocadas nos sistemas, informações confirmadas pela reportagem. Afirmaram ainda que uma investigação interna será aberta pelo Einstein para apurar as responsabilidades.

O Einstein afirmou que foi comunicado somente na tarde de ontem, após contato da reportagem, que “um colaborador teria arquivado informações de acesso a determinados sistemas sem a proteção adequada”. O hospital diz ter comunicado o Ministério da Saúde para que “fossem tomadas as medidas para assegurar a proteção das referidas informações”.

O Einstein afirmou ainda que todos os seus funcionários passam por treinamento de segurança digital e que “tomará as medidas administrativas cabíveis”. Questionado sobre o tipo de serviço que prestava para o ministério, o hospital informou que trata-se de um projeto do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS) em que dados epidemiológicos eram usados para fazer análise preditiva da pandemia.

A reportagem questionou a instituição o motivo de ela ter acesso aos dados pessoais e não apenas informações sem identificação e foi informada que o banco de dados não fica disponível para o Einstein e somente ao funcionário do hospital que ficava baseado no próprio Ministério da Saúde.

Já o órgão federal confirmou a parceria e disse que realizou reunião com o Einstein para esclarecimento dos fatos. Disse que o profissional Wagner Santos, que publicou as senhas, é contratado pelo Einstein e atua no ministério desde setembro como cientista de dados. “No âmbito das medidas de segurança do ministério e em atendimento aos protocolos de compliance e confidencialidade, ele assinou termo de responsabilidade antes do acesso à base de dados do e-SUS Notifica”, disse a pasta federal.

De acordo com o ministério, o Einstein confirmou que houve falha humana de um dos seus colaboradores - e não do sistema e informou que iniciou processo de apuração dos fatos. O órgão disse que está realizando “o rastreamento de possíveis sites ou ciberespaços onde os dados podem ter sido replicados”.

A pasta disse também que o Departamento de Informática do SUS (DataSUS) revogou imediatamente todos os acessos dos logins e das senhas que estavam contidos na referida planilha divulgada pelo funcionário do Einstein. “O Ministério da Saúde ressalta que todos os técnicos que têm acesso aos seus sistemas de informação assinam termo de responsabilidade para uso das informações e todos estão cientes de que a divulgação de informações pessoais está sujeita a sanções penais e administrativas.”

Também procurado pela reportagem, o funcionário Wagner Santos, do Einstein, confirmou que publicou a planilha de senhas em seu perfil na plataforma github para a realização de um teste na implementação de um modelo, porém esqueceu de remover o arquivo da página pública.


Rosângela Bittar: Entre na roda

Projetando-se do presente ao futuro, dominam a cena as forças moderadas

Daqui a pouco passa. Vitoriosos (muitos) e ressentidos (poucos) terão de voltar à vida política não eleitoral: crise econômica, desemprego, agravamento da pandemia, fome, desigualdade. O calendário de 2022 ficará suspenso. Porém, as marcas dos acontecimentos do momento não se apagam.

A fotografia: o presidente Jair Bolsonaro domina a cena do momento estático. Com derrotas em série, só se têm dele flagrantes desarticulados. Em menos de dois anos da introdução de sua era política foi desautorizado em pensamentos, palavras e obras. Seu mundo, lá fora, também ruiu, o que torna ilusão tudo o que representa. Mas não convém esquecê-lo. No comando do governo, prosseguindo no seu fazer nada, será um populista incompetente e descompromissado com a realidade. Porém, se quiser, recupera-se. E não tem só dois minutos, são mais dois anos inteiros. Tempo suficiente para criar um salário emergencial para todos e transferir as suas culpas ao Congresso, como é de costume. Não precisa de condições políticas para voltar à roda, já deixou claro que não é piloto nem passageiro de sua própria nave.

O filme: em movimento dinâmico, projetando-se do presente ao futuro, dominam a cena as forças moderadas, os democratas da esquerda à direita que conquistaram a adesão popular na condenação aos extremos.

O novo elenco se uniu aos que, já em ação, abriram antes a roda de conversas, agora ampliada. Não são ainda os partidos. Estes ficarão um bom tempo entretidos na negociação parlamentar, que comandam.

Para o diálogo político, que produzirá o enredo dos próximos dois anos, há também dois princípios definidos. O primeiro é que não pode haver vetos a ninguém em qualquer um dos projetos. É o mínimo que a moderação exige.

O segundo é fugir da definição precoce de posições. Luciano Huck, João Doria, Sérgio Moro, Luiz Henrique Mandetta, Hamilton Mourão, Ciro Gomes, Guilherme Boulos são candidaturas lançadas. Alguns, como Huck, em estágio avançado de formulação. Outros, como Moro, ainda discretos, para inibir a besta-fera do Gabinete do Ódio e sua capacidade destrutiva.

Huck, misto de liberal e social-democrata, foi o primeiro a se abrir a conversas com líderes políticos nacionais e internacionais, inclusive da esquerda, empresários, sociedade e demais candidatos potenciais. Tem uma equipe discutindo as políticas públicas que considera necessárias ao Brasil. Ciro Gomes, embora na roda, enfrenta o problema de ser candidato inamovível. João Doria, para se habilitar, terá não só que vencer o segundo turno em São Paulo. Sem isto será difícil até se reeleger governador. Mas precisa fazer uma grande gestão e reduzir sua rejeição. As demais propostas engatinham.

O eleitor municipal promoveu outros interlocutores políticos ao nível de reconhecimento federal. É inegável o crescimento do presidente do DEM e prefeito de Salvador, ACM Neto. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), aumentará sua cotação se Eduardo Paes se eleger no Rio e, especialmente, se fizer seu sucessor.

Em meio às conquistas do MDB, sobressai-se o deputado Baleia Rossi. Segurou seu partido no centro, fugindo ao radicalismo do governo Bolsonaro, onde pontifica o volátil e bem-sucedido Centrão.

Guilherme Boulos (PSOL) se impõe como novidade e enigma. Alternativa de interlocução para o centro, papel que cabia apenas a Marcelo Freixo, Boulos se instalou, vença ou não o segundo turno, como protagonista essencial da política. A observar se conseguirá se manter na linha da moderação. Reconhecida, também, a capacidade de negociação do político Márcio França (PSB), que oferece a alternativa de costurar alianças do centro à esquerda. A ampla presença de São Paulo, Rio e Bahia na roda da articulação tornou mais surpreendente ainda a situação de Minas: uma vitória instigante da moderação, ainda fora do esquadro político por cansaço, indiferença, decepção ou abulia.


Eliane Cantanhêde: Duas caixas de segredos

Se a Lava Jato é uma ‘caixa de segredos’, como diz Aras, guerra contra ela também é

A guerra contra a Lava Jato não é só da Procuradoria Geral da República nem é só contra a força-tarefa de Curitiba. O procurador-geral Augusto Aras é o líder ostensivo e porta-voz, mas o ataque à maior operação de combate à corrupção do mundo vai muito além dele, incluindo Congresso e parte de Supremo, OAB, Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e da própria mídia. É um movimento combinado e visa Curitiba, São Paulo e Rio.

Ninguém questiona a fala de Aras sobre “correção de rumos” e “garantias individuais”, mas é preciso ficar claro se, por trás, não está em curso o desmanche da Lava Jato, punir e demonizar seus expoentes, impactar processos em andamento e até anular condenações já em execução. Ou seja, se a intenção é acabar com “excessos”, “hipertrofia”, investigações indevidas, dribles em leis e regras – que podem efetivamente ter ocorrido –, ou desfazer tudo e demolir, por exemplo, o ex-juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol.

Enquanto Aras ataca a Lava Jato por atacado, seus aliados agem no varejo contra Moro e Dallagnol. No Supremo, Dias Toffoli propõe que magistrados só disputem eleições após quarentena de oito anos. Na Câmara, Rodrigo Maia acata a ideia – e já para 2022. É para cortar uma candidatura Moro pela raiz? Do PT ao Centrão, passando por MDB e PSDB, levante o dedo quem apoia Moro e Lava Jato no Congresso!

Simultaneamente, entra em ação o CNMP. O conselheiro Marcelo Weitzel determinou intervenção na distribuição de processos no MP Federal de São Paulo, visando os que têm o carimbo da Lava Jato. Outro, Luiz Fernando Bandeira, pretende retirar Dallagnol da força-tarefa de Curitiba, por ter sugerido um fundo lavajatista com bilhões de reais recuperados do petrolão. Além disso, Dallagnol também foi pivô das mensagens hackeadas entre procuradores e Moro.

Esses movimentos contra a Lava Jato vêm num crescendo. O marco foi a ida da subprocuradora-geral Lindora Araujo a Curitiba para requisitar todo o arquivo e rastrear os equipamentos da força-tarefa. Em seguida, o vice-procurador Humberto Jacques criticou o modelo da operação como “desagregador”, “disruptivo” e “incompatível com o MPF”.

Foi aí que Toffoli autorizou a PGR a centralizar em Brasília todos os arquivos de Curitiba, Rio e São Paulo. Segundo Aras, o MPF inteiro tem 50 terabites de dados e Curitiba, sozinha, 350. É com base nessa documentação fenomenal que ele e sua equipe – que até aqui só jogam no ar suspeitas vagas – pretendem comprovar que o chamado “lavajatismo” grampeava pessoas e investigava alvos com foro privilegiado ilegalmente, usava conduções coercitivas como tortura psicológica, aceitava e compensava excessivamente qualquer delação premiada, dispensando provas daqui e dali.

Ao condenar o suposto “vale tudo” da Lava Jato, porém, a PGR e seus aliados podem estar justamente recorrendo a um “vale tudo” para desmontar as estruturas e demonizar os líderes da Lava Jato, numa repetição do que ocorreu contra a Operação Mãos Limpas, que passou de grande sucesso a triste derrota na Itália. Além disso, há o risco natural da centralização de dados na capital: o uso político. Hoje, o procurador é Aras. E amanhã?

Onde fica o presidente Bolsonaro nisso tudo? Depois de meter a mão no Coaf, mexer os pauzinhos na Receita, romper com Moro e ser investigado por suspeita de intervenção na PF, ele escolheu Aras fora da lista tríplice e reforça a percepção de uma união de Judiciário, Legislativo e Executivo contra a Lava Jato – que, entre erros e acertos, foi importantíssima para o País. E, se a Lava Jato é uma “caixa de segredos”, como diz Aras, a articulação contra ela também é. E seus segredos podem ser bem mais cabeludos.


Eliane Cantanhêde: Platô no vírus e na política

Finalmente, a direita real e moderna descola-se da direita fake e patética. E o Exército?

O presidente Jair Bolsonaro continua sendo uma fonte de instabilidade e temos dois milhões de contaminados e perto de 80 mil mortos pela covid-19, mas o Brasil conteve a dupla escalada e – ainda que em patamares desesperadores – vai chegando a um platô na política e no vírus e é hora de deslanchar o pós-pandemia e prestigiar a força das instituições e da sociedade civil. A imagem do País esfarela mundo afora, mas é preciso reconhecer a incrível capacidade de resistência a ameaças e bravatas.

Com Bolsonaro em fase de trégua e de quarentena, o Judiciário em recesso e o Legislativo trazendo as reformas estruturais de volta à pauta do País, vem essa sensação de platô político e de volta à normalidade, reforçada por indicadores ainda frágeis, mas em viés de alta, na economia. A situação da pandemia ainda é macabra, sem prazo para terminar, mas constrói-se união para minimizar os danos colaterais e tratar as feridas: quebradeira de empresas, milhões a mais de desempregados e o aprofundamento da miséria.

Esse debate é possível depois da fantástica resistência aos ataques contra as instituições, a ciência e a inteligência. O Supremo liderou esse processo e, mesmo atuando no limite, às vezes balançando perigosamente para o excesso, deu a sustentação indispensável para uma reação que brotou de todos os lados e cristalizou a certeza de que o Brasil não é o melhor dos mundos, mas sabe sustentar a democracia.

Mesmo antes de pegar a covid-19 (o que ele buscou fervorosamente), Bolsonaro já tinha parado de disparar insultos diários, atiçar as hordas golpistas, avalizar a guerra da internet contra tudo e todos, reabrindo o diálogo e as relações com os poderes. O vírus fez o resto e, com o presidente devidamente recolhido, o País passou a respirar melhor, a acordar sem tanto sobressalto.

Antes tarde do que nunca, o governo passou a ouvir o grito estridente, ensurdecedor, dos que defendem o Meio Ambiente, descobrindo com enorme surpresa que a gritaria pela preservação não é só de ONGs, conselhos, Igreja Católica e esquerdistas. Ela veio forte de fundos de investimento internacionais, bancos e grandes empresas nacionais, ex-ministros da economia e ex-presidentes do Banco Central.

Esse movimento estabelece, enfim, uma distinção entre a direita moderna, culta e pragmática e essa direita instalada no poder, atrasada, ignorante, com um discurso ideológico incompreensível. Pior: no ataque, agressiva, endeusando armas, guerras imaginárias, inimigos fantasmas e desmanchando tudo sem construir nada. Isso não é ser “de direita”. A direita entendeu e obrigou Bolsonaro a começar a entender.

Assim surge a novidade: o debate sobre saídas para o País. O Congresso se reúne em torno da reforma tributária, o governo entrega na terça-feira sua proposta de simplificação de impostos, grupos e entidades civis participam do processo. Exemplo: a Liderança Pública (CLP), coordenada pelo cientista político Luiz Felipe D’Ávila, apadrinha 28 projetos essenciais, a começar das reformas. O Brasil demonstra que tem instituições, sociedade ativa, imprensa livre, e que ninguém e nenhum poder consegue impor pensamento único e ideias estapafúrdias.

Aí entramos na Saúde. As posições de Bolsonaro sobre isolamento social, aglomerações, máscaras e cloroquina deixaram de ser só chocantes para cair num terreno onde perigo e ridículo se misturam.

Os militares, se reagiram mal ao uso da expressão “genocídio”, sabem que o ministro do STF Gilmar Mendes tem razão ao alertar para a associação da imagem das Forças Armadas com uma política que custa vidas e é recriminada no mundo inteiro. É preciso bater em retirada de uma guerra perdida – e que não é sua – para a covid-19. Enquanto é tempo.