movimentos políticos negros

BBC Brasil: BBB 21 - Por que o cabelo é tão importante no movimento negro

Antes de serem traficados e enviados para as Américas, muitos africanos carregavam na cabeça um símbolo que ia além da estética: o cabelo

Vitor Tavares, BBC News Brasil

A forma, o corte e os adereços podiam representar origens, etnias, religiões, status social.

Mas já no caminho para as colônias americanas, entre elas o Brasil, essa relação era rompida.

Ao expor as condições de um navio negreiro na famosa gravura Negros no Fundo do Porão, o pintor alemão Johann Moritz Rugendas retratou homens e mulheres amontoados, algemados e nus - muitos sem cabelo ou com ele bem curto.

No registro dos livros O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, de Gilberto Freyre, e Ser Escravo No Brasil, de Kátia Mattoso, são relatadas as cabeças forçadamente raspadas dos africanos no momento em que eram oferecidos à venda para os senhores de engenho.

"Buscavam minar qualquer tipo de pertencimento étnico e identificação que eles pudessem ter uns com os outros a partir do cabelo", explica a socióloga Anita Pequeno Soares, pesquisadora da relação entre o cabelo e negritude na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

"Há relatos de que a raspagem do cabelo era parte importante desse processo de subjugar a população negra, principalmente homens, o que acarretava sérios problemas, porque o cabelo protege o couro cabeludo num trabalho sob sol escaldante. As sinhás, com ciúmes de mulheres violentadas pelos homens brancos, também usavam a raspagem como prática de tortura".

Além da violência, a associação da estética dos africanos a algo primitivo e distante de ideias europeias de beleza e humanidade foi uma prática recorrente durante o colonialismo.

Uma das histórias mais chocantes e ilustrativas é de Sarah Baartman, levada da África do Sul ao Reino Unido para aparecer em espetáculos de circo.

Sarah Baartman
Sarah Baartman era exposta como um animal na Europa

Considerada por muitos como símbolo da exploração e do racismo colonial, bem como da ridicularização das pessoas negras, muitas vezes representadas como objetos ou animais, ela morreu após passar anos sendo exibida em feiras de "fenômenos bizarros humanos".

Seu cérebro, esqueleto e órgãos sexuais continuaram sendo exibidos em um museu de Paris até 1974. Os restos mortais só retornaram à África em 2002, após a França concordar com um pedido feito por Nelson Mandela.

"O discurso racista é pautado na negação da humanidade das pessoas negras. A beleza é parte da humanidade, ser considerado belo é parte de ser considerado gente. Isso faz para do mesmo enredo que associou negros e negras à animalidade, à natureza, como Baartman, mais comparada a macacos que seres humanos", ressalta Soares.

Cabelo como orgulho

Na história das Américas, o movimento negro tentou por diversas vezes romper com um sistema que durante séculos estigmatizou (e ainda estigmatiza) as características físicas dos negros - entre elas, uma das mais representativas é o cabelo.

O assunto ganhou ampla discussão no Brasil nos últimos dias após um episódio no programa Big Brother Brasil, da TV Globo, em que o cantor Rodolffo comparou o cabelo do professor João Luiz a uma peruca de homens das cavernas.

João Luiz, do BBB 21
Legenda da foto,João Luiz, do BBB 21, teve cabelo comparado a uma peruca de homens das cavernas

Um dos marcos identificados pela socióloga nessa busca pela valorização da estética negra é o movimento rastafári.

Nos anos 1930, um grupo de jamaicanos passou a acreditar que a coroação de Ras Tafari (o imperador etíope Haile Selassie) era o cumprimento de uma profecia e que ele era o messias.

Eles acreditavam que seriam libertados pelo imperador, que os tiraria da pobreza no Caribe e os levaria à África, a terra dos seus antepassados e um centro espiritual.

Porém, além da conotação religiosa, o movimento rástafari se respaldou na estética, como as roupas coloridas e os cabelos com dreadlocks, popularizados pelo seu seguidor mais famoso, o cantor Bob Marley.

Dois rastafáris
Legenda da foto,Movimento rastafári teve início na Jamaica

Outro marco nessa tentativa de olhar diferente para a beleza dos descendentes dos africanos escravizados foi o movimento Negritude, também nos anos 1930, promovido pelo escritor e político francês nascido na ilha caribenha de Martinica Aimé Cesarie e pelo escritor e político senegalês Léopold Senghor.

Em suas obras, há uma exaltação da "raça negra: "Buscaram valorizar raízes africanas, olhar para a África com nova perspectiva, diferente da europeia, que colocava a África como a negação da beleza", diz Soares.

'Black is beautiful'

Em 1858, em Boston, o abolicionista americano John Swett Rock fez um dos primeiros discursos conhecidos que exaltavam as características físicas dos negros.

"Quando eu comparo o sistema muscular mais forte, a bela, rica cor, os traços largos e o cabelo graciosamente frisado do negro com a frágil organização física, a cor pálida, as feições finas e os cabelos lisos do branco, estou inclinado acreditar que, quando o homem branco foi criado, a natureza estava exausta".

Esse discurso é considerado uma das bases para o que viria a ser a amplamente utilizada expressão "black is beautiful" (preto é bonito). Era uma tentativa de igualar negritude a beleza, em um ato contra séculos de imagens que mostravam negros como grotescos.

Steve Biko
Legenda da foto,Steve Biko esteve por trás do movimento contra apartheid na África do Sul e buscava valorizar a estética negra

Na África do Sul do regime racista do apartheid, a frase se tornou símbolo do movimento Consciência Negra, liderado pelo ativista Steve Biko. "Ele tinha preocupação forte com essa dimensão subjetiva do racismo, com a forma com que o racismo fazia com que as pessoas negras tivessem muitas vezes ódio de si mesmas."

Nesse contexto, o cabelo crespo passou a significar orgulho e poder.

A corrente sul-africana influenciou o movimento homônimo nos EUA, onde ganhou mais força. Em 1966, no momento de luta pelos direitos civis no país, também surgiu o movimento chamado "Black Power", que deu ao cabelo afro papel central na estética dos negros americanos.

O black power também virou símbolo dos Panteras Negras, um movimento de militantes políticos nos EUA que defendiam a resistência armada nos bairros negros contra a perseguição policial no país.

Para Soares, esses movimentos "ajudaram não só a pensar estratégias políticas de combate ao racismo como também formularam um conjunto de ideias que inspiraram o ativismo de jovens militantes negros em outros países."

Brasil e alisamento

As pesquisas da socióloga da UFPE apontam que, quando esses movimentos explodiram nos EUA, eles também tiveram reflexos no Brasil. Houve, por exemplo, um aumento expressivo dos chamados "salões étnicos", voltados para pessoas com cabelos crespos.

Até então, no período pós-abolição, o que a militância negra interpretava como urgente eram questões ligadas à moral, conta Soares. Os primeiros concursos de beleza para mulheres negras, por exemplo, se preocupavam em passar uma imagem de "civilidade" àquelas pessoas, não necessariamente a estética.

"Durante a escravidão a população negra era associada muito à sexualidade, que é também associar ao animal. Esses primeiros concursos estavam preocupados em negar a degradação sexual que tentavam associar a elas. Não havia isso de cabelo black. O alisamento fazia parte da moral. Queriam, como diziam, 'reeducar a raça', mas pautados nos padrões da branquitude".

Como reflexo dos movimentos nos EUA, houve uma crescente busca de valorizar a beleza negra no país. O Teatro Experimental do Negro (TEN), por exemplo, incluiu a estética na pauta, inclusive também com concursos de beleza. Movimentos musicais como o Black Rio deram voz a artistas como Tim Maia e Sandra de Sá.

Mais recentemente, também acompanhando um movimento global impulsionado principalmente pela internet, negros e, principalmente, negras brasileiras passaram a adotar o cabelo natural como símbolo de orgulho.

Negros no Fundo do Porão
Negros no Fundo do Porão é uma obra do pintor alemão Rugendas

A chamada transição capilar, em que os cabelos alisados são cortados e tratados para que as químicas usadas fiquem para trás, se popularizou principalmente através das redes sociais.

"A geração de hoje está tendo oportunidade de viver algo diferente e eu associo ao movimento de transição capilar, que revolucionou. Hoje em dia, a partir dessa demanda, as mulheres, principalmente, viram a internet como um lugar de falar para poder trazer um novo discurso", explica Soares.

Mas a socióloga faz um alerta: "Não podemos engessar o olhar sobre o alisamento e colocá-lo exclusivamente como uma negação da negritude. Claro que cabelo afro é poder, identidade, mas cada pessoa tem seu momento".


Gelédes: Arauto de um novo tempo - A negritude revolucionária de Hamilton Cardoso

Quero ostentar minha pele negra, meu nariz chato e arrebitado com meus duros cabelos à mostra, com minha sensibilidade, à mostra. Quero escrever do meu jeito. Falar na minha língua – do meu jeito. (Hamilton Cardoso [Zulu Nguxi] – “Depoimento [AFRO-LATINO-AMÉRICA]”, 2014)

Por Christian Ribeiro, enviado ao Portal Geledés

Em tempos de convulsão e de sombras, quando as ordens vigentes parecem imutáveis e inabaláveis a figura do intelectual enquanto representação anti-sistêmica do mundo em que habita visando a superação do mesmo, para a construção de uma nova forma de sociedade, toma forma e sentido. Como que para responder as inequidades e contradições de sua realidade-mundo, o intelectual exerce sua práxis para a destruição do “já constituído” pelo advir de novos tempos, em que novas possibilidades de relações e interações sociais façam-se constituir e interagir nos processos de construções de historicidades que resultem em estruturas socialmente mais justas, democráticas e includentes.

Por uma perspectiva portanto revolucionária de sociedade, essa concepção acerca da práxis intelectual enquanto elemento anti-sistêmico, possui nos processos de rearticulação política dos movimentos negros dos anos 1970 no Brasil exemplos dessa potência transformadora que os sistemas opressores e ditatoriais gestão contra si, em que os sujeitos sociais explorados e marginalizados passam a alinhavar, a articular, suas perspectivas e tensões históricas-políticas para dessa forma tensionar, questionar e problematizar a ordem social em que se encontram inseridos, passando a atuar de maneira cada vez mais constante para o acirramento de suas contradições, visando o abalo e destruição de seus alicerces excludentes e discriminatórios.

Hamilton Bernardes Cardoso (1953 – 1999) foi aquele que em meio aos processos de redemocratização brasileira da década de 1970 e dos movimentos políticos negros que fizeram parte a esse momento histórico da nossa sociedade, encarnou a figura do intelectual revolucionário orgânico, que originário das forças temporais que circulam pelas eras torna-se a representação viva de uma geração. Uma representação encarnada dos anseios e desejos que moveram os destinos de seus semelhantes em busca pela superação de nosso racismo estrutural e alienante. Jovem, articulado, que irrompia o cenário político de então que – balizado pelo regime ditatorial do regime civil-militar (1964-1985) – negava oficialmente, enquanto política de Estado, a existência do racismo no Brasil e censurava toda e qualquer manifestação em contrário, resultando em um sistema de constância vigilância e controle em cima dos órgãos de imprensa e movimentos políticos que não seguissem tal premissa a perfeição.

De maneira consciente, Hamilton Cardoso fazia por não aceitar em reconhecer o “não lugar” destinado as populações negras e o calar imposto ante aqueles que não aceitavam a ordem social vigente. Enquanto jornalista e militante político de esquerda ocupa e constrói espaços de debates e intersecções políticas que inserem a questão racial brasileira, em especial o nosso racismo e as resistências negras seculares e contemporâneas, ao cenário político-social da sociedade brasileira. Toda uma vertente da negritude afro-brasileira construída e caracterizada enquanto fruto da juventude afrodescendente que começava a se constituir enquanto agente política no começo dos anos 1970, terá como seu porta-voz e rosto a figura de Cardoso, não no sentido de personalismo, mas de representar o melhor dessa geração.

Dono de forte personalidade e convicções, forjada em embates contra os racismos cotidianos da sociedade brasileira, passa a constituir textos e intervenções – escritas ou em oratórias – que transmitem todo desdém, no sentido explicito de desprezo e ódio ao ideário de que o Brasil era uma sociedade socialmente harmoniosa e racialmente democrática. Para ele não havia espaço, não havia diálogo em sua verve política para conivência ou convivência promulgadores desse tipo de ideário, eram tempos de revolução e por isso medidas radicais se faziam necessárias, por isso não se podia ser condescendente com o racismo e seus efeitos nefastos ante as populações afrodescendentes em especial. Por isso a sua obsessão em desmascarar e desmantelar a nossa falácia enquanto sociedade não racista, enquanto terra sem a mácula do racismo ocorrendo e maculando as nossas relações históricas e sociais. Para Cardoso, em consonância direta ao pensamento histórico-sociológico de Clóvis Moura, as inequidades sociais características da sociedade brasileira são consequências diretas de nosso modelo de sociedade construída e baseada em torno não ´só do trabalho escravo, mas das relações racistas de superioridade social entre “senhor” (branco) vs “escravo” (negro), que moldaram nossas relações humanas ao longo dos séculos, nossos imaginários sociais que sempre associam tudo aquilo que é bom ou “superior” com o “branco/europeu”, enquanto dialeticamente associam tudo que é ruim ou “inferior” com o “negro/africano”, o que enfatiza nossa característica de sociedade classista, de origem estamental, pela nossa própria gênese racista civilizatória. Nossas diferenças sociais se dão e reproduzem-se por nossa origem escravocrata, por nosso racismo de marca e não pelo contrário.

Homem negro do interior, filho de Deolinda Bernardes Cardoso e Onofre Cardoso, nascido em Catanduva no interior paulista, em meio a uma família inserida as manifestações culturais negras locais, acaba vindo para São Paulo ainda criança. Será na capital paulista, ao início dos anos 1970 que dará início ao seu processo de conscientização racial enquanto referencial político e humanista libertador e revolucionário, resultando em um desenvolvimento de radicalização, no sentido de aprofundamento, da sua militância antirracista. Jovem homem negro em reconstrução, um militante em formação, inicialmente relacionado ao mundo cultural afro-paulistano, em especial dos grupos teatrais como o do “Centro de Cultura e Arte Negra” (CECAN) – quando Hamilton participou como ator da peça de teatro “E agora falamos nós”, escrita e montada pelo sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira (1926 – 2012) e pela atriz Tereza Santos (1930 – 2012) – e de todo universo cultural e político da juventude negra paulistana que começava a ser constituído em torno do “Clube Coimbra”, da “Casa da Cultura e do Progresso” (CACUPRO) do “Grupo de Trabalho de Profissionais Liberais e Universitários Negros” (GETEPLUN). Pontos de efervescência desses jovens em que Cardoso deu início a construção da sua militância política antirracista, de sua negritude de práxis revolucionária, de viés marxista – inicialmente de recorte trotskista – que estabelecerá uma nova forma de diálogo e interação entre os movimentos negros e marxismos no Brasil.

Uma atuação e circulação entre dois mundos que pareciam não dialogar e tão distantes, quando não díspares, que permeou toda a sua trajetória política, o que de certo modo acabará por influenciar ativamente na inserção das temáticas raciais e dos atores sociais negros enquanto sujeitos políticos constituintes e primordiais aos partidos políticos de esquerda que se reformulavam (PCdoB) ou se articulavam (PDT e PT) para ingressar ao cenário político institucional entre final dos anos 1970 e começo dos anos 1980, sendo participante ativo nos processos de construção do Partido dos Trabalhadores, ao qual desenvolverá sua ação política partidária em sua busca constante pela articulação entre luta antirracista/negritude com as pautas sociais universais, sempre situando que não subordinava ou atrelava a questão racial brasileira e o antirracismo a luta classista, mas sim o contrário, destacando que as diferenças sociais no país têm sua origem em sua origem escravocrata e não o contrário.

Dessa forma exercendo discurso e prática contestatória ao nosso racismo estruturante tanto a nossa vertente historiográfica conservadora e ao conjunto político hegemônico ao qual ela fazia por defender e representar, como também acabava por contestar e problematizar ao próprio campo progressista e sua incapacidade em contextualizar as contradições sociais brasileiras a partir de nossas heranças escravocratas, preferindo aplicar formulações políticas europeias sem a devida contextualização e mediação ante as características históricas locais, assim acabando por reproduzir e perpetuar as características de desigualdades a que se propõem combater e superar.

A contribuição do novo movimento negro brasileiro ao debate político nacional, em articular e problematizar a questão racial e do racismo enquanto primordiais para se teorizar e buscar compreender nossas inequidades históricas-sociais, têm nas manifestações e atuações públicas de Hamilton Cardoso um de seus momentos fundantes (BARROS FILHO, 2007; CARRANÇA, 2014). Ser humano que em meio a fúria do mundo, se moldou entre aos choques e confrontos de seus cotidianos, dos saberes e historicidades das populações afro-brasileiras, constituiu-se enquanto um intelectual de práxis, radicalmente revolucionário em sua negritude política libertária e anti-hegemônica.

Intelectual que não se via apartado das coisas populares, das expressões culturais enquanto reféns de uma primazia de fatores econômicos e políticos “superiores”. Folião assumido, carnavalesco apaixonado, tinha nas escolas de samba como exemplos de construções das populações negras no Brasil contra o racismo da sociedade brasileira, formas de supressão da ordem social vigente e de contestação do nosso discurso de democracia racial e harmonia social. Um desfile da “Vai-Vai” ou da “Nenê da Vila Matilde”, possuía um impacto e importância social, além de valoração histórica de confrontação direta e realizada de maneira publica, em meio ao centro econômico e político do regime ditatorial de então, que não era levado em conta pelas forças progressistas do país, sempre em busca de conscientizar as massas e em construir formas de culturas libertárias, potencialmente revolucionárias, quando essa já existia e se fazia presente organicamente aos cotidianos de todas as regiões geográficas da maior metrópole brasileira. Uma sofisticação intelectual e política dos novos movimentos negros no Brasil(1), em buscar exercer esse olhar crítico em relação as expressões e formas culturais de origem afro ou afro-brasileira, que sempre foram desdenhadas em meio as diferentes correntes intelectuais e tendencias políticas progressistas que mesmo ainda hoje, se encontram aquém de sua devida valoração histórica e social enquanto expressões políticas anti-sistêmicas e antirracistas da negritude afro-brasileira.

Mas tal qual um enredo de tragédia em que o personagem principal – de postura rebelde e irredutível, que não se curva ante desígnios postos, que não aceita destinos prévios que lhe são oferecidos durante a sua trajetória heroica – atribui para si e aos seus a construção de seus próprios caminhos e vivências, acaba tendo sua trajetória interrompida, ao sofrer um atropelamento em 1 de Maio de 1988, saindo de uma festa a quadra de samba da “Unidos do Peruche”, um acidente que lhe traria sequelas físicas e emocionais profundas e definitivas! Em uma época ainda tão ignorante e sem referencial algum acerca dos efeitos nefastos da depressão, Hamilton Cardoso passa a se isolar cada vez mais de seus amigos, familiares e companheiros de batalhas e caminhadas contra o racismo, ao mesmo tempo que revoltasse com sua condição física debilitada, por vezes impeditiva, mas sempre dilacerante, a seu pleno exercício pela vida! Dessa forma acabando por gerar um ódio do mundo, muitas vezes direcionando contra si, outras contra os seus círculos sociais mais próximos (CARRANÇA, 2014; PEREIRA, 2009). Cada vez mais amargurado e atormentado, aliando a esse processo autodestrutivo a sua constante preocupação aos rumos da luta antirracista e da negritude no país e com o futuro político que apontava para a sociedade brasileira em geral, com o processo de redemocratização no Brasil – em que foi um dos articuladores do “Movimento Diretas Já” – acabando por constituir uma realidade social e política em que “tudo mudou, para não mudar” com os privilégios característicos do mau uso do Estado por nossas elites mantendo-se intactos, sem perspectiva de melhora social – de plenos direitos e cidadania plena – imediata para a vida da maioria da população, em especial de suas populações afrodescendentes.

O arauto da nova era, encontrava-se como que privado de sua essência, de sua seiva vital, abatido, depressivo e curvado pelas dores do mundo, que fustigavam o seu corpo e alma. Cada vez mais isolado dos amigos, tomado por uma amargura e revolta sem fim, Hamilton Cardoso, após duas tentativas frustradas, descansa desse mundo ao jogar-se no Rio Tietê e assim morrer afogado no dia 05 de Novembro de 1999, causando um amargor e dor profunda ao seio do movimento negro brasileiro e do campo político-intelectual progressista, que sabiam ter perdido uma das maiores mentes do país, perda que de certa maneira nunca se fez superar ao debate progressista pela busca de uma sociedade mais justa, includente e radicalmente democrática no Brasil, verdadeiramente harmoniosa socialmente e livre da chaga do racismo, em especial para as esferas interseccionais que orbitam política e ideologicamente entre os referenciais de negritude, antirracismo, pan-africanismo e comunismo/socialismo.

Mas para desespero de seus detratores e inimigos, os senhores de nossa eterna casa-grande, seu passamento não foi seu fim, pois seu legado intelectual e revolucionário se manteve vivo e presente as lutas antirracistas e pró negritudes, pela radicalização de nossa Democracia por seus pares geracionais, e em especial pelos novos sujeitos políticos negros que foram constituindo-se ao longo das últimas décadas. Com o seu legado devendo ser cada vez mais divulgado, analisado e debatido, pois suas percepções e práxis intelectuais-políticas se fazem mais necessárias do que nunca, ante aos tempos sombrios de ignorância, em que ser racista e preconceituoso, virou sinônimo de rebeldia e autenticidade, padrões de sociabilidades publicamente referendadas e estimuladas por grande parte da população brasileira.

Em época de desesperança e desespero como a que hoje vivemos, que voltemos nossas atenções aos ensinamentos e exemplo de vida daquele que domou o espírito de fúria de sua época e ajudou a moldar novos tempos e rumos para o seu povo, para aqueles que optou em representar e dar voz, literalmente contra os poderes estabelecidos e, aparentemente, imutáveis da época. Pois como ele próprio tão bem vaticinou, não é – nunca foi – fácil ser negro no Brasil.

Ser negro é difícil. A gente é colocado numa caixa, é moldado. A caixa é aberta e a gente sai (ou tiram a gente de lá de dentro). Aí, todo mundo pensa que a gente nasceu dentro da caixa. Todo mundo pensa que a gente foi feito junto com a caixa.

Respirar o vento poluído de fora da caixa não é fácil. É duro. Aí a gente descobre que tem pernas, braços, cabeça, cabelo duro, tudo preto, tudo negro. A gente arranca tudo do lugar e mistura no corpo. Merda! Todo mundo olha a gente e pensa que a gente é bicho. (CARDOSO, 1977)

Que o guerreiro Zulu Nguxi(2) e seus irmãos e irmãs de tantas lutas e batalhas vencidas por nós, continuem sendo inspiração as nossas resistências cotidianas e (sobre)vivências antirracistas pró negritude, em brasileiras terras míticas e hipócritas de democracia racial.

Ontem, hoje e sempre, Hamilton Cardoso vive!

Notas referenciais:

(1) Nesse sentido, seus escritos políticos e reflexões presentes ao jornal Versus (AFRO-LATINO-AMÉRICA, 2015) são documentos referenciais para melhor conhecer e aprofundar-se ao seu ideário antirracista pan-africanista e socialista.

(2) Nome – literalmente – de guerra, adotado por Hamilton Cardoso desde meados dos anos 1970 como forma de ressaltar a sua noção de pertença e reverência a sua africanidade, ao mesmo tempo em que assinala o seu alinhamento ao ideário e causa pan-africanista.

Referências bibliográficas:

AFRO-LATINO-AMÉRICA. Edição Fac-similar. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014. In: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/versus_afro_latino_america_2015.pdf, acessado em 07/04/2021.

CARDOSO, Hamilton Bernardes. É difícil ser negro. [1977] In: https://primeirosnegros.com/e-dificil-ser-negro/, acessado em 06/04/2021.

CARRANÇA, Flávio. HAMILTON CARDOSO E SEU TEMPO. [2014]. In: http://www.omenelick2ato.com/historia-e-memoria/hamilton-cardoso-e-seu-tempo

PEREIRA, Dulce Maria. Hamilton Cardoso [2009]. In: https://www.geledes.org.br/hamilton-cardoso/, acessado em 06/04/2021.

BARROS FILHO, Omar L. Um tributo a Zulu Nguxi (1953-1999). [2007] In: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/educacao-e-cidadania/caderno-da-cidadania/um_tributo_a_zulu_nguxi_19531999/, acessado em 06/04/2021.

Christian Ribeiro, mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.