Mírima Leitão

Míriam Leitão: Sem medo do impedimento

Jair Bolsonaro nunca foi contra a corrupção e nunca foi um democrata. Mas usou a bandeira que estava em alta e foi eleito dentro das regras da democracia. Os que acreditaram que ele era o melhor antídoto contra a corrupção escolheram o autoengano. Os que apostaram que ele respeitaria as instituições têm provas diárias de que erraram. A elite financeira que o abraçou, os mais escolarizados que foram para a rua por ele, o juiz-símbolo que o avalizou não podem mostrar surpresa. Na escala de valores de certos liberais, mais importante é a promessa de liberdade econômica do que a proteção dos direitos civis. Isso ficou claro na ditadura de Pinochet, quando o Chile enterrava seus mortos e os jovens de Chicago comemoravam o trabalho que faziam na economia.

A pior complicação é agora. Bolsonaro foi eleito na democracia, mas não a respeita e conspira contra ela diariamente. A crueldade extrema do presidente é escalar a tensão institucional quando o país atônito tenta se concentrar no que fazer diante da pandemia que ceifa milhares de vidas. Vivemos uma conjuntura em que o presidente da República torna muito maior o peso que recai sobre nós. Já não basta viver o que vivemos — fechados em casa, assustados, enlutados, hospitalizados — ainda é preciso tolerar um governante infernizando o cotidiano.

Bolsonaro disse que por pouco não houve uma crise institucional. E falou avisando que pode retornar ao confronto e passando a ideia de que só não descumpriu a ordem judicial porque decidiu dar uma segunda chance. O ataque que ele fez ao ministro Alexandre de Moraes foi explícito e ofensivo. O presidente deu um ultimato à Justiça. Depois, na transmissão da noite, disse que tinha feito apenas um desabafo sem ofender ninguém. As instituições brasileiras têm aceitado o desdito diante dos piores ditos. Assim, ele fica sempre impune. Para seus apoiadores ele aparece como vítima, aquele que não consegue governar porque o Supremo não deixa, o Congresso chantageia, a mídia persegue. Apresenta-se como aquele que luta contra “o sistema”. Tudo levando à conclusão de que para bem governar o presidente precisa de super poderes, de um AI-5, como pediram os manifestantes que ele apoiou. Essa é a única ideia na qual Bolsonaro acredita. Fortalecer o “quem manda sou eu”.

Bolsonaro conspira contra a democracia à luz do dia, diante de todos. Alguns líderes políticos pedem paciência, como se ele fosse apenas uma pessoa de maus modos. Não. Ele tem maus propósitos. As Forças Armadas aceitam compartilhar o poder e passam a viver na ambiguidade. Nos 30 anos de democracia, os militares fizeram uma trincheira: defenderiam o período autoritário como necessário. Protegido o passado, eles se dispunham a cumprir suas funções dentro dos marcos democráticos. A atual geração de oficiais generais aceitou o risco de misturar-se ao governo Bolsonaro. O presidente usa a ideia de que as Forças Armadas estão ao seu lado. Alguns fazem críticas ao presidente. Mas só intramuros. Os generais que trabalham diretamente com ele ficam satisfeitos quando conseguem evitar um ato tresloucado. Em seguida ele comete outro. Os militares se confortam com a tese de que seria pior se não estivessem lá. Não notam o que estão avalizando. Garantem que não aceitarão uma “aventura”. Não percebem que estão viabilizando a aventura.

A questão é como proteger a democracia brasileira nessa armadilha na qual o país está. Não há outro caminho que não seja o impedimento. O presidente precisa ser impedido através das leis que regem esse processo, que sempre foi e sempre será traumático, mas já foi usado por muito menos do que o que tem feito Jair Bolsonaro. Nem o Judiciário, nem o Congresso podem ter medo nesse momento. Bolsonaro já cometeu inúmeros crimes de responsabilidade. A lista é longa e os juristas e políticos a conhecem. A ideia de que “não há clima” é muito confortável para todos os que querem eximir-se das responsabilidades que têm.

Se ele não tivesse afrontado as leis tantas vezes, e estivesse apenas atormentando o país com crises diárias no meio de uma pandemia já seria motivo suficiente para se pensar no impeachment. Bolsonaro é um governante que escolheu agravar todas as crises quando o país trava uma luta de vida ou morte.

(COM MARCELO LOUREIRO)


Míriam Leitão: A Política levou a reforma à vitória

Reforma da Previdência foi aprovada com amplo apoio. Economia estimada pela Instituição Fiscal Independente será de R$ 714 bilhões

A reforma aprovada é ampla e terá impacto importante nas contas públicas, mas será menor do que o governo previa. Segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), ficou em R$ 714 bilhões a economia em 10 anos, sem contar outras possíveis mudanças. Ela cria uma espécie de lei de responsabilidade previdenciária para todos os entes da Federação. Portanto, os estados e municípios estão fora do projeto, na definição dos benefícios, mas eles terão que se esforçar para controlar suas despesas na área. A reforma introduz a idade mínima que o Brasil tenta ter há mais de 20 anos. O texto foi aperfeiçoado em alguns pontos ao tramitar no Congresso, mas manteve desigualdades. Na defesa de determinados privilégios, juntaram-se a esquerda e o bolsonarismo, uma realidade que só não é bizarra porque o Brasil sempre foi assim.

O centrão votou em peso na reforma, mas um placar de 379 a 131 mostra um movimento amplo de apoio. No eloquente discurso do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, houve várias indiretas ao próprio governo: “as soluções passam pela política. Não haverá investimento no país se não houver democracia. Eu não saí do meu objetivo nem quando fui atacado.” Todo mundo entendeu a quem ele se referia, e ao episódio em si. Mas o Planalto o elogiou. Era a hora da comemoração. Ontem foi o dia da festa para Rodrigo Maia, que nasceu no Chile, no exílio, filho de político, que tem entre seus nomes, além dos conhecidos, Felinto, Ibarra e Epitácio.

Um dos grandes saltos do projeto está no artigo 40, que deixa claro que estados e municípios terão que buscar equilíbrio financeiro e atuarial. O parágrafo 22º cria uma série de obrigações. Os estados e municípios não podem criar novos regimes próprios e para os que existem haverá lei federal estabelecendo as normas de funcionamento e responsabilidade em sua gestão. Diz ainda como eles vão migrar para o Regime Geral e serão fiscalizados pela União e o controle externo.

O que saiu, por erro do Congresso, foi a presença dos estados e dos municípios nos parâmetros das aposentadorias e pensões. Isso faz com que servidores tenham regras diferentes dependendo do ente federativo. Vai gerar mais confusão. O Congresso derrubou também o gatilho demográfico que permitiria, como em outros países, que a idade mínima fosse subindo, com o aumento da expectativa de vida.

Nessa reforma, como em todas as outras, as que foram aprovadas e as que fracassaram, a verdadeira clivagem nunca foi entre esquerda e direita. É entre quem defende ou não os interesses corporativos. O projeto, que começou tendo como um dos objetivos reduzir desigualdades, teve na reta final a esdrúxula militância corporativista do presidente Jair Bolsonaro.

Em alguns pontos o projeto melhorou no Congresso. Um deles foi o fim da tentativa de mudar o Benefício de Prestação Continuada (BPC). O grande problema com o BPC não é o benefício dado a quem chegou aos 65 anos com um quarto de salário mínimo de renda real per capita. Mas o fato de que a Justiça passou a dar o mesmo direito a quem tem uma renda maior do que essa. Pelo projeto, haverá agora uma definição clara sobre o limite dessa renda.

O principal problema com a reforma aprovada é que ela não cria um novo sistema que seja sustentável. Faz uma correção no atual regime, não ataca as desigualdades de tratamento e cristaliza injustiças. As regras de transição para os servidores que entraram antes de 2003 no serviço público ficaram mais brandas. Eles têm as vantagens da integralidade e da paridade e por isso a reforma tinha incluído a idade mínima para eles.

Pelo acordo que está sendo negociado, policiais federais, legislativos ou rodoviários poderão se aposentar aos 52 anos, as mulheres, e aos 53 anos, os homens. Enquanto isso, o Brasil está caminhando para a idade mínima de 62 e 65 anos. A não ser os professores, que ficarão com 57 e 60 anos. O policial da União sai o grande privilegiado dessa reforma.

A Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado refez as contas ontem e projetou uma economia de R$ 714 bilhões com a reforma em 10 anos. Inicialmente, a IFI já estimava um número menor do que o calculado pelo governo, de R$ 995 bi. Todas as contas terão que ser refeitas após as votações dos destaques. O risco é que as regras fiquem ainda mais leves, para alguns, após essas votações.