mauro oddo nogueira

Pesquisador do Ipea aponta “impactos de ordem moral” da pandemia da Covid

Em artigo na revista Política Democrática Online de abril, Mauro Oddo Nogueira diz que “ninguém se empanturra de arroz e feijão porque teve um aumento salarial”

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

Tornar visíveis os invisíveis, admitir que parte da inflação é consequência de elevação do dólar e indefinições sobre o novo auxílio emergencial são impactos de ordem moral que rondam o Brasil.

A avaliação é do pesquisador do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mauro Oddo Nogueira. Ele é autor de artigo para a revista mensal Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e ligada ao Cidadania.

A revista tem acesso gratuito no site da fundação. Em relação ao primeiro impacto de ordem moral, segundo Nogueira, houve susto generalizado quando cerca de 60 milhões de pessoas se apresentaram para receber o auxílio emergencial após a eclosão da pandemia da Covid-19.

Veja versão flip da 30ª edição da Política Democrática Online: abril de 2021

“A despeito desse contingente de concidadãos aparecer claramente nas bases estatísticas – como a Pnad Contínua do IBGE, por exemplo – e ser objeto de numerosos estudos e publicações científicas, parece que os gestores públicos e a mídia em geral os desconheciam”, afirma o pesquisador do Ipea.

O segundo impacto moral, acrescenta ele, está condicionado a se admitir como verdadeira a hipótese que muitos economistas têm defendido: “parte da inflação – especialmente dos gêneros alimentícios – é consequência da elevação do dólar”.

E parte disso, conforme analisa na revista da FAP, decorre da pressão de demanda sobre itens de consumo, como leite, arroz e feijão, entre outros, resultado dos efeitos positivos do auxílio emergencial sobre a renda das pessoas.

Trocando em miúdos

“Ocorre que tais produtos são classificados como bens com elasticidade-renda da demanda menor ou igual a zero”, diz. “Trocando em miúdos, trata-se daquelas coisas que as pessoas não compram mais porque estão ganhando mais. Trocando mais em miúdos ainda, ninguém se empanturra de arroz e feijão porque teve um aumento salarial”, explica. 

Veja todos os autores da 30ª edição da revista Política Democrática Online

Em alguns casos, segundo o artigo publicado na Política Democrática Online de abril, até se compra menos desses produtos porque os substitui por outros mais caros. “Esse comportamento da elasticidade só não se verifica na situação em que a renda anterior do indivíduo não era suficiente para que adquirisse esses tais alimentos ‘básicos’”.

De acordo com o doutor pela UFRJ, admitir a veracidade desse componente inflacionário é reconhecer o nível de miséria a que estão submetidos milhões de brasileiros e que se traduz em uma amarga palavra de quatro letras: fome.

“Comida no prato dos filhos”

O terceiro impacto moral, segundo o artigo da Política Democrática Online, tem origem nas indefinições que se arrastaram por semanas. Nas idas e vindas em relação à sua renovação, valores que serão concedidos, critérios de elegibilidade, data de início e duração.

“Esse impacto moral é bem mais simples de se compreender. Basta que a gente se coloque no lugar de quem depende desse dinheiro para colocar comida nos pratos de seus filhos”, afirma o pesquisador do Ipea.

Além da análise de Nogueira, a edição de abril da Revista Política Democrática Online também tem entrevista exclusiva com o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, artigo de política nacional, política externa, cultura, entre outras, e reportagem especial sobre avanço de crimes cibernéticos.

O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.

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RPD || Mauro Oddo Nogueira: Auxílio Emergencial - A boia no meio da tormenta

Benefício manteve acesa parte da demanda, evitando uma queda ainda maior do PIB em 2020 e permitiu que mais de 50 milhões de brasileiros e seus familiares não se vissem privados de qualquer fonte de renda

O cenário brasileiro das últimas semanas foi marcado por tal quantidade de fatos relevantes que chega a ser difícil acompanhá-los, digeri-los, analisá-los. Dentre eles, sublinho a renovação do Auxílio Emergencial, com início programado para a primeira semana de abril. Acredito, porém, que o destaque não tenha sido o merecido. Digo isso por conta da dimensão dos impactos do programa na economia nacional. A rigor, não há como se fazerem avaliações precisas desses impactos, uma vez que ainda não se produziram os dados estatísticos que o permitirão. Uma dose de bom senso, contudo, somada a um olhar atencioso para a realidade, permite uma estimativa razoável. 

O número mais esclarecedor é o do PIB. As estimativas para o PIB de 2020 quando do início da pandemia variavam, dependendo do otimismo de quem as fazia, entre uma queda de 6% até mais de 9%. Mas o resultado final foi de “apenas” 4,1%. E, por óbvio, isso não se deveu à pandemia ter sido menos virulenta ou duradoura do que se supunha. Muito pelo contrário. 

O que impediu, então, que o PIB desmoronasse em um grau ainda maior do que o dessas previsões? A explicação que parece fazer sentido – principalmente cotejando-se o PIB com os índices de desemprego e desalento – é a de que o Auxílio Emergencial manteve acesa parte da demanda. Lembremo-nos de que os principais atingidos pelos fakedowns(modalidade tupiniquim de lockdown) são exatamente os autônomos e os informais. Ou seja, os que não têm reserva de capital, não conseguem mecanismos outros para se manterem de algum modo operando e atuam majoritariamente nos segmentos mais impactados. O Auxílio permitiu que mais de 50 milhões de brasileiros e seus familiares não se vissem privados de qualquer fonte de renda. Isso certamente evitou uma convulsão social – inclusive com a possibilidade de distúrbios de massa e saques – que se chegou a ver desenhada no horizonte. 

Para a felicidade de quase todos, a pífia proposta de Auxílio inicialmente elaborada pelo governo foi ampliada pelo Congresso por pressão da sociedade. Não fosse isso, por render graças à Sua Majestade o Equilíbrio Fiscal (dogma abandonado desde o início da pandemia pelas economias mais liberais do planeta, como os EUA, Alemanha e Reino Unido), suas condições não teriam evitado a catástrofe. 

Acontece que, para além dos impactos econômicos, há ainda três impactos de ordem moral. 

O primeiro foi tornar visíveis os invisíveis. Houve susto generalizado quando cerca de 60 milhões de pessoas se apresentaram para receber o Auxílio. A despeito desse contingente de concidadãos aparecer claramente nas bases estatísticas – como a Pnad Contínua do IBGE, por exemplo – e ser objeto de numerosos estudos e publicações científicas, parece que os gestores públicos e a mídia em geral os desconheciam. 

O segundo está condicionado a se admitir como verdadeira a hipótese que muitos economistas têm defendido, a de que parte da inflação – especialmente dos gêneros alimentícios – é consequência da elevação do dólar. E que parte decorre da pressão de demanda sobre esses itens de consumo (leite, arroz, feijão etc.), resultado dos efeitos positivos do auxílio emergencial sobre a renda das pessoas.  Ocorre que tais produtos são classificados como bens com elasticidade-renda da demanda menor ou igual a zero. Trocando em miúdos, trata-se daquelas coisas que as pessoas não compram mais porque estão ganhando mais. Trocando mais em miúdos ainda, ninguém se empanturra de arroz e feijão porque teve um aumento salarial.  Em alguns casos, até se compra menos desses produtos porque os substitui por outros mais caros. Esse comportamento da elasticidade só não se verifica em uma situação: quando a renda anterior do indivíduo não era suficiente para que adquirisse esses tais alimentos “básicos”. Portanto, admitir a veracidade desse componente inflacionário é reconhecer o nível de miséria a que estão submetidos milhões de brasileiros e que se traduz em uma amarga palavra de quatro letras: fome. 

O terceiro, por fim, tem origem nas indefinições que se arrastaram por semanas. Nas idas e vindas em relação à sua renovação, valores que serão concedidos, critérios de elegibilidade, data de início e duração. Esse impacto moral é bem mais simples de se compreender. Basta que a gente se coloque no lugar de quem depende desse dinheiro para colocar comida nos pratos de seus filhos. 

*Doutor pela Coppe/UFRJ e pesquisador do Ipea. É autor do livro Um pirilampo no porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil. 

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

RPD || Mauro Oddo Nogueira: O Brasil tem jeito - Basta olhar para o BRASIL

Para falar sobre a economia brasileira, com bases reais, é preciso tratar da realidade dos autônomos e empregados informais invisíveis, que o Auxílio Emergencial tornou momentaneamente visíveis – e também, dos autônomos e empregados formais das nano, micro e pequenas empresas (MPEs), avalia Mauro Oddo

Por mais idas e vindas que se apresentem, a vacina não tarda. Então, é hora de refletir sobre como reconstruir o tecido produtivo do Brasil, após uma crise estrutural que se arrastava há 4 anos e à qual se somou o cataclismo da Covid-19. A resposta pressupõe uma reflexão sobre, afinal, de qual Brasil estamos falando? Pensamos somente no Brasil da Avenida Paulista ou incluímos o BRASIL no qual a renda média do trabalhador é de R$ 2.400,00 por mês (com uma mediana bem abaixo disso)?

Vamos, pois, falar um pouco do BRASIL. Ele é composto, basicamente, por dois segmentos de trabalhadores. O primeiro, autônomos e empregados informais, representando cerca da metade dos trabalhadores do país. São os invisíveis que o Auxílio Emergencial tornou momentaneamente visíveis. O segundo, os autônomos e empregados formais das nano, micro e pequenas empresas (MPEs): cerca da metade dos trabalhadores formais. Ou seja, ¾ dos trabalhadores é o contingente que dá forma à desigualdade no Brasil. Portanto, falar de economia brasileira sem falar deste BRASIL é falar de qualquer outra coisa, menos da economia brasileira.

Mas o fato é que só episodicamente essa realidade não foi marginal em nossos projetos de desenvolvimento. Desde a temática econômica da mídia às políticas públicas e às Universidades, com raríssimas exceções, esse mundo passa longe. Longe dos currículos dos cursos de Economia, Administração, Engenharia e Direito, aqueles que conformam o ethos das nossas “elites dirigentes”; das discussões na mídia; e, quando muito, é periférico nas ações governamentais. Não pensamos no BRASIL, pelo fato de o desconhecemos. O Brasil dos debates e das políticas econômicas é e sempre foi o Brasil da Avenida Paulista. O resto é “questão social” …

E o que nos diz o olhar em direção ao BRASIL? Diz, incialmente, que a lenda de “primeiro crescer o bolo para depois dividi-lo” – bordão da ditadura que continuou subjacente à boa parte das políticas econômicas que se seguiram – é uma falácia. Seja porque esse momento “da divisão” nunca chega, talvez seja porque a realidade mostra que a lógica deve ser exatamente a inversa. É pela criação de demanda que a economia se desenvolve. E criação de demanda em nosso país se traduz essencialmente em elevação da renda da população do BRASIL. Temos duas provas recentes disso. A política do salário mínimo conduzida por Lula é uma. A outra é a evidência de que só não ocorreu um colapso econômico por conta da pandemia, graças ao Auxílio Emergencial.

Mas aí caímos em uma outra questão: como elevar a renda dessa população? Não entrarei na questão das transferências e dos programas de renda mínima, tema merecedor de tratamento muito mais atencioso nos debates. Vou me ater à vertente produtiva e o que considero seu conceito chave: produtividade do trabalho. Como dito acima, o BRASIL produz, basicamente, na informalidade e nas MPEs. Apresentarei apenas uma comparação: aqui, a produtividade de um trabalhador de uma pequena empresa formal é 27% daquele de uma grande; e de uma micro, é de 10%.

Na Alemanha, essas relações são de 70% e 68%, respectivamente (dados da CEPAL de 2012). Imagine nas atividades informais! Por favor, não digam que esse trabalhador é, como indivíduo, muito menos produtivo que o alemão. Não! Se colocarmos um desses trabalhadores em um posto de trabalho de uma grande empresa nacional ou de uma microempresa alemã, sua produtividade rapidamente se igualará àquela normal dessa empresa. O problema está no conteúdo técnico do posto de trabalho. Em outras palavras, tecnologias de processo e de gestão.

Fica evidente que não há como aumentar a renda do trabalho sem aumento de produtividade. E não há como aumentar sistemicamente a produtividade sem demanda, isto é, sem renda. Assim, somente um círculo virtuoso de produtividade e renda pode nos levar a superar o atraso econômico e a desigualdade social. E não há outro caminho para tanto senão um investimento maciço por parte do Estado no conteúdo técnico dos postos de trabalho via modernização de processos organizacionais e produtivos das MPEs. Isso pressupõe profunda revisão (ou reinvenção) da arquitetura e dos montantes dos mecanismos de crédito, de apoio em qualificação gerencial e de regulação ora oferecidos para o BRASIL. O que, por sua vez, pressupõe tirar o binóculo da Avenida Paulista e colocar o BRASIL no “centro do prato” das políticas econômicas, deixando de destinar para ele apenas “as migalhas que caem da borda”, via programas sociais de “geração de emprego e renda”.

*Mauro Oddo Nogueira é doutor pela Coppe/UFRJ e pesquisador do Ipea. Autor de Um Pirilampo no Porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil.