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Luiz Carlos Azedo: Execução foi recado

No Rio de Janeiro, as agências de coerção do Estado foram capturadas pelo crime organizado a partir do seu vértice, num pacto corrupto entre os donos do poder e o crime organizado

 

O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSol) na noite de quarta-feira, crime que comoveu o país e mobilizou milhares de pessoas no Rio de Janeiro e outras cidades do país, entre as quais Brasília, desafia a intervenção federal no Rio de Janeiro. Não fosse o mandato popular e sua importância na luta contra a violência e em defesa dos direitos humanos, teria a mesma importância dada a outros assassinatos, assim como o de seu motorista Anderson Gomes, também executado. Ou seja, seria apenas um número a mais nas estatísticas de assassinatos não esclarecidos no Rio de Janeiro, estado no qual apenas 11% dos suspeitos de homicídio são denunciados à Justiça.

Marielle e Anderson foram mortos dentro de um carro na Rua Joaquim Palhares, por volta das 21h30 de quarta-feira. Segundo a polícia, bandidos emparelharam ao lado do veículo onde estava a vereadora e dispararam. Marielle foi atingida por quatro tiros na cabeça. A perícia encontrou nove cápsulas de balas no local. Não foi latrocínio, foi execução: os criminosos fugiram sem levar nada. O carro onde estava teria sido perseguido por cerca de quatro quilômetros.

“É triste, muito triste, mas essa condição da morte da Marielle não é uma novidade. Basta ver o que aconteceu com a juíza Patrícia Acióli, assassinada em Niterói por combater PMs corruptos. No Brasil é assim: qualquer um que lute contra a corrupção e defenda os direitos humanos está em risco. E as forças de segurança, é claro, não fazem nada”, disse o deputado federal Chico Alencar (PSol-RJ) no velório da vereadora.

As autoridades evitam declarações sobre as razões do crime, mas o assassinato abriu uma disputa política pela agenda da violência, que vinha sendo um monopólio do governo federal desde a decretação da intervenção. Marielle era contra a medida. O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, assumiu a responsabilidade de acompanhar pessoalmente as investigações.

Banda podre

A investigação está a cargo da Delegacia de Homicídios da Polícia Civil. Não será  surpresa se surgir uma versão de que a vereadora foi executada por traficantes. Nos bastidores da intervenção federal, porém, já havia a preocupação com uma possível retaliação da chamada “banda podre” das polícias Civil e Militar. O caso da juíza Patrícia Acióli citado pelo deputado Chico Alencar é exemplar. O assassinato da vereadora, porém, tem todas as características de retaliação política não somente às atividades desenvolvidas por ela contra as milícias e a violência policial. Os mandantes do crime têm plena consciência de que haveria repercussão política nacional e internacional, com poder de desmoralizar o interventor federal, general Braga Neto, e o recém-nomeado Jungmann.

Os dois estão na berlinda, depois de um mês de intervenção federal, com assassinatos diários de inocentes em assaltos, confrontos entre traficantes ou destes com a polícia. As operações diárias do Exército na Vila Kennedy, por exemplo, para retirada de obstáculos instalados nas ruas, e que são recolocados durante a noite, já estavam começando a ser ridicularizadas. Foram compensadas pela prisão de um delegado corrupto e a vistoria do Exército num quartel da Polícia Militar. As autoridades federais estão desafiadas a identificar os criminosos e puni-los exemplarmente.

Numa entrevista, o traficante Antônio Bonfim Neto, de 41 anos, o Nem da Rocinha, que está preso na penitenciária federal de Porto Velho, em Rondônia, ao jornal espanhol El Pais, pôs o dedo na ferida ao apontar associação entre o tráfico de drogas e a banda podre da polícia fluminense. Há um “cluster” de negócios nas favelas do Rio de Janeiro, do qual fazem parte as bocas de fumo, os gatos elétricos, as TVs piratas, a distribuição de gás e o achaque aos comerciantes e empreendedores a título de proteção. No Rio de Janeiro, as agências de coerção do Estado foram capturadas pelo crime organizado a partir do seu vértice, num pacto corrupto e perverso entre os donos do poder e o crime organizado. Será duro desalojá-los.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-execucao-foi-recado/


Luiz Carlos Azedo: A farda e a toga

A outra face da moeda da benfazeja não-intervenção dos militares na vida política nacional é o fortalecimento do Supremo Tribunal Federal (STF) e seu novo papel no equilíbrio entre os poderes

O velho fantasma do golpe militar ressurgiu no fim de semana, com a palestra do general Hamilton Mourão, diretor de Economia e Finanças do Exército, num evento da Maçonaria, sexta-feira, em Brasília. Duas frases despertaram lembranças do passado: “Ou as instituições solucionam o problema político retirando da vida pública os elementos envolvidos em todos os ilícitos ou então nós teremos que impor uma solução”; “Os Poderes terão que buscar uma solução. Se não conseguirem, temos que impor uma solução. E essa imposição não será fácil. Ela trará problemas. Pode ter certeza”. O vídeo da sua palestra viralizou nas redes sociais.

A palestra do general pegou de surpresa o presidente Michel Temer, que acionou o ministro da Defesa, Raul Jungmann, que conversou com o comandante da Força, general Eduardo Villas Bôas. A solução foi pôr panos quentes, manter o Palácio do Planalto longe do assunto e deixar por conta dos próprios militares a resposta ao gesto de aparente insubordinação. “Desde 1985 não somos responsáveis por turbulência na vida nacional e assim vai prosseguir. Além disso, o emprego nosso será sempre por iniciativa de um dos Poderes”, respondeu Villas Bôas, que reiterou o compromisso dos militares com “a manutenção da democracia, a preservação da Constituição, além da proteção das instituições”.

O comandante do Exército tem grande autoridade política e tem dado demonstrações de que compreende como poucos políticos a situação do país, além de revelar amadurecido compromisso com a ordem democrática. Mostra que aprendeu mais sobre o valor da democracia com o regime militar do que a maioria dos nossos políticos. Mas sofre os desgastes de uma doença degenerativa que dificulta sua mobilidade, o que abriu uma disputa surda na Força pela sua sucessão. Talvez o gesto de Mourão tenha a ver com isso, talvez o tenha tirado da fila. De qualquer forma, houve uma acomodação, as declarações foram minimizadas e Villas Bôas reiterou o compromisso com a Constituição: o Exército só intervém a pedido de um dos Poderes.

Desde a proclamação da República, o Exército, coadjuvado pelas demais forças, exerceu na marra — ou melhor com seus canhões e tanques — o papel de Poder Moderador, antes atribuído ao Imperador pela Constituição de 1824. Num país continental, cujas fronteiras foram traçadas na mesa das negociações diplomáticas, com exceção do Rio Grande do Sul e do Acre, o Exército forjou-se na luta contra rebeliões nas províncias, algumas das quais separatistas, como a Revolução Farroupilha e a Confederação do Equador. Canudos, a Revolta Constitucionalista de 32 e as tentativas de guerrilha no Caparaó, Vale da Ribeira e Araguaia reforçaram essa tradição de intervir para garantir a ordem política e social interna. A superação da mentalidade golpista e autoritária do Exército está se dando na prática, com a defesa da Constituição de 1988. Isso nos possibilitou atravessar dois impeachment, a hiperinflação e a recessão e nos permitirá superar a crise ética. O general Villas Bôas é um discreto e sagaz ator desse processo.

Poder moderador

Coube aos chamados “federalistas” encontrar uma solução para o problema do equilíbrio entre os poderes no regime republicano. Comparando as revoluções americana e francesa, o equilíbrio entre os dois poderes políticos (legislativo e executivo) nos Estados Unidos foi encontrado com o fortalecimento da Suprema Corte, que exerce o papel de contrapeso na teoria da separação de poderes, quanto na França o pensamento rousseauniano levou à aplicação radical da teoria pura da separação dos poderes, que resultou no que seria chamado de “ditadura do legislativo”. No Brasil, por causa da nossa cultura positivista e do presidencialismo (ao qual se aliam o velho sebastianismo e o caudilhismo), a força do Executivo somente não se impôs aos demais poderes em breves períodos: nas Constituintes de 1945 e de 1987 e no brevíssimo regime parlamentarista que garantiu a posse de João Goulart, após a renúncia do presidente Jânio Quadros.

A outra face da moeda da benfazeja não-intervenção dos militares na vida política nacional é o fortalecimento do Supremo Tribunal Federal (STF) e seu novo papel no equilíbrio entre os poderes, em que pesem todas as críticas ao estrelismo de alguns ministros, aos votos teatrais nas sessões da Corte transmitidas ao vivo e à chamada “judicialização” da política. O Supremo é que vem exercendo esse papel de “poder moderador”, fortalecido pelo fato de que deixou de ser uma vetusta instituição de poucos, misteriosos e poderosos indivíduos, somente conhecidos no alto mundo jurídico, para se tornar um tribunal com paredes de vidro, cujos ocupantes são reconhecidos nas ruas pela população.

É nesse contexto que entra em cena a nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que ontem substituiu Rodrigo Janot. De certa forma, da Constituinte de 1946 ao golpe militar de 1964, a imprensa pleiteou o papel de poder moderador, no vácuo do Judiciário submisso ao Executivo; depois da Constituição de 1988, essa atribuição também passou a ser reivindicada pelo Ministério Público, em aliança com os meios de comunicação, pois é uma grande tentação para ambos. Talvez o papel da nova procuradora-geral da República seja o de cumprir sua missão sem exercer o protagonismo que cabe ao Supremo na relação com os demais poderes, o que foi o grande erro de seu antecessor.


Entre a ordem e a malandragem

As Forças Armadas estão empregando o conceito de “guerra assimétrica” . Isso tem a ver com combate ao terrorismo. Faz sentido, o tráfico de drogas atua como uma espécie de guerrilha urbana

Desde sexta-feira, mais de 10 mil homens das forças federais reforçam a segurança no Rio de Janeiro, por decisão do presidente Michel Temer, que resolveu enfrentar o problema da violência e do crime organizado no estado. Em entrevista coletiva, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, afirmou que o decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) permitirá a atuação das Forças Armadas (são 8,5 mil homens do Exército e Marinha, principalmente) com poder de polícia, em caráter permanente, até o fim de 2018 (renovado), com ações de inteligência, operações especiais e patrulhamento preventivo, para desmantelar o crime organizado e desalojá-lo dos territórios que hoje controla.

Há muitas questões envolvidas nessa intervenção que merecem reflexão, a começar pelo fato de que as Forças Armadas, desta vez, estão empregando plenamente o conceito de “guerra assimétrica”. Na doutrina militar, isso tem a ver com combate ao terrorismo. Mas faz sentido, se levarmos em conta que o tráfico de drogas no Rio de Janeiro reúne as condições ideais para atuar como uma espécie de guerrilha urbana: dispõe de uma topografia favorável, uma base social robusta e uma fonte permanente de financiamento.

A iniquidade social nos territórios ocupados pelo crime organizado facilita o recrutamento permanente de crianças e adolescentes, que logo se tornam soldados do tráfico. Além disso, a proximidade de um mercado consumidor com alto poder aquisitivo, principalmente na Zona Sul do Rio, faz da venda de drogas uma atividade econômica importante na economia informal; a recessão e a crise fiscal, porém, fizeram o movimento cair e a alternativa dos traficantes para financiar suas atividades são o roubo de carga e os arrastões em praias, túneis e avenidas da cidade.

Pura ironia da história. Onde fracassou Carlos Marighella, o líder da guerrilha urbana contra o regime militar, vence o traficante Fernandinho Beira-Mar. Com a diferença de que o primeiro foi assassinado pelos órgãos de segurança e o segundo está muito bem protegido de seus inimigos num presídio de segurança máxima. Depois do colapso das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), os morros do Rio de Janeiro voltaram ao controle dos traficantes. Quem mostra bem a realidade do tráfico nas favelas cariocas é jornalista Caco Barcelos, num livro intitulado Abusado, o dono do Morro Dona Marta.

Malandragem

Os cariocas sempre glamourizaram a malandragem e prezam uma cultura de transgressão, o que naturalmente também tem suas consequências. Uma delas é a dificuldade para estabelecer uma justa relação entre a questão da segurança pública e a defesa dos direitos humanos. A esquerda carioca, por exemplo, odeia as forças de segurança pública.

As origens da Polícia Militar do Rio de Janeiro estão bem descritas num clássico do romantismo, Memórias de Um Sargento de Milícias, de Manoel Antônio de Almeida. Escrito em meados do século 19, a trama do livro ocorre no tempo de Dom João VI. Leonardo, o protagonista principal, é um jovem irrequieto e transgressor, que se envolve com a mulata Vidinha e passa a sofrer as perseguições do major Vidigal, um caçador de malandros e vagabundos (àquela época só havia traficantes de escravos). Para não ser preso, é forçado a se alistar. Mas continua arruaçeiro e desobedece seguidamente ao major. Por isso, acaba preso. Entretanto, consegue a liberdade graças à ação de uma ex-namorada de Vidigal, Maria Regalada, que lhe promete, em troca, a retomada do antigo afeto. Leonardo não só é solto, como é promovido. Com a ajuda do Major, se torna sargento de milícias. Os arquétipos de Leonardo e Vidigal estão vivíssimos na tropa e na oficialidade da PM fluminense.

O problema é que, agora, depois do fracasso das UPPs, o pacto perverso entre a banda podre da polícia e os traficantes se rompeu. Em consequência, policiais militares estão sendo mortos com muita frequência pelos traficantes, que resolveram escorraçá-los de seus territórios. A crise financeira do estado e a desmoralizaçao completa da elite política local levaram a segurança pública ao colapso. A alternativa encontrada para restabelecer a ordem, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, foi a intervenção das Forças Armadas.

Nessa intervenção, porém, além das inúmeras questões aqui suscitadas, existe um ingrediente político importante. A ação é vista no Palácio do Planalto como uma grande jogada de marketing político, na qual o presidente Temer acredita que pode melhorar a sua popularidade, ao empunhar as bandeiras da ordem e do combate ao crime organizado. A população aplaude a iniciativa e espera que dê os resultados almejados. De fato, não deixa de ser uma oportunidade para reposicionar sua imagem, em meio ao desgate provocado pelas denúncias da Operação Lava-Jato e às vésperas da votação do pedido de admissibilidade da denúncia contra o presidente da República pela Câmara.

 

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