Lourival Sant’Anna

Lourival Sant'Anna: Golpes à democracia

Rússia, China, Brasil e EUA assistem a processos de enfraquecimento da democracia ao longo do ano

A democracia sofreu golpes na Rússia, China e Estados Unidos na semana que passou, mas recebeu alentos na Europa e no Brasil.

Um referendo aprovou mudanças constitucionais que permitem a Vladimir Putin se eleger para mais dois mandatos de seis anos, a partir de 2024, quando termina o atual. Muitos russos gostam de Putin, que identificam com a estabilidade, depois das rupturas traumáticas dos anos 90. Mas muitos não votaram exatamente pela sua perpetuação no poder. A consulta era sobre um pacote de emendas, que atrela o salário mínimo a um cálculo de renda mínima, corrige as aposentadorias pela inflação e declara casamento união entre homem e mulher. As opções eram sim ou não para o pacote todo.

A propaganda em torno do referendo focou nos benefícios salariais e no ataque ao casamento de homossexuais, numa Rússia que se tornou mais conservadora nas últimas duas décadas sob Putin, aliado da Igreja Ortodoxa. Ele governa a Rússia desde 1999. Em 2036, terá 83 anos.

O regime chinês emendou a Lei Básica de Hong Kong, introduzindo normas de segurança que, essencialmente, criminalizam os protestos, com prisões perpétuas por motivos vagos, como “subversão” ou “vinculação com estrangeiros”. Centenas de pessoas já foram presas. Na prática, deixa de existir o status de semiautonomia, e o modelo de “um país, dois sistemas”, consagrado no acordo da devolução do território à China pelo Reino Unido, que deveria durar 50 anos, até 2047.

O presidente Donald Trump deixou claro que investirá na divisão dos americanos para tentar se reeleger em novembro. Em um tuíte, por exemplo, ele disse que pode revogar uma lei que beneficia moradia de negros nos subúrbios, porque ela “desvaloriza” o patrimônio de “grandes americanos”. Noutro, afirmou que a frase “Vidas Negras Importam”, pintada pela prefeitura de Nova York na 5.ª Avenida, onde ele tem escritório, “denigre uma avenida luxuosa”.

Em contrapartida, a vitória dos Verdes nas eleições municipais francesas, domingo passado, representa um alento para a democracia: trata-se de uma corrente da esquerda europeia que se atualizou, entendeu a importância do papel das empresas na preservação ambiental, e se prontifica a fazer alianças com grupos conservadores. Essas alianças já aconteceram em seis Estados alemães, no governo da Áustria e, há uma semana, no da Irlanda. Os ambientalistas se tornam, assim, uma alternativa à extrema direita e à esquerda estatizante, na formação dos governos europeus.

A Alemanha assumiu a presidência de turno da União Europeia. No que poderá ser a última grande missão da chanceler Angela Merkel antes de se aposentar, a UE tem três desafios este semestre: levar adiante a discussão sobre o aprofundamento de sua integração, cujas falhas ficaram evidentes na gestão desigual e descoordenada da pandemia; repartir os custos das políticas de mitigação frente à crise sanitária; e negociar os termos finais da saída do Reino Unido, cujo prazo termina no fim do ano.

O liberalismo, a expressão da democracia na economia, também ganhou um ânimo, na reunião de cúpula do Mercosul. Brasil, Paraguai e Uruguai mantiveram-se alinhados no projeto de reduzir as tarifas do bloco e negociar acordos de livre-comércio com Canadá, Coreia do Sul, Cingapura, Índia e Líbano. A voz dissonante foi a do presidente argentino, Alberto Fernández.

A democracia brasileira demonstra vitalidade, com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal retomando a iniciativa, para colocar limites às extrapolações de integrantes do governo federal. O cuidado maior com as palavras no círculo do presidente Jair Bolsonaro e a demissão de Abraham Weintraub do Ministério da Educação sugerem um reconhecimento da força dos freios e contrapesos.

Nada está jamais garantido para a democracia. Ela é uma construção cotidiana.


Lourival Sant'Anna: Bolsonaro e a Venezuela

Presidente envolveu País como não se via desde a 2.ª Guerra em assuntos de outra nação

Escrevo de Caracas, onde a disputa de poder entre oposição e o regime de Nicolás Maduro atinge o clímax desde a tentativa de golpe contra o então presidente Hugo Chávez em abril de 2002, que me trouxe à Venezuela pela primeira de incontáveis vezes.

A rejeição do novo mandato de Maduro e o reconhecimento do governo interino do presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, no mês passado, coincidiram com o início do governo de Jair Bolsonaro, que prometeu grandes mudanças na política externa brasileira.

O Brasil agora está envolvido como talvez nunca tenha estado nos assuntos de outro país desde o envio dos “pracinhas” à Itália na 2.ª Guerra. O governo brasileiro está apoiando a tentativa da oposição de forçar a entrada de produtos de primeira necessidade em território venezuelano, atropelando a recusa de Maduro. A montagem da estrutura de armazenamento da ajuda humanitária em Roraima é a materialização de uma nova postura do Brasil em relação aos dramas internos de outro país. Na prática, trata-se da participação em uma estratégia de mudança de regime.

Embora a nova política externa brasileira se alinhe, em quase tudo o que é relevante, à americana, o governo de Donald Trump parece descontente com o alcance do engajamento de seu novo parceiro. Segundo fontes em Washington ouvidas pela reportagem do Estado, o governo americano pressiona para que o Brasil garanta a entrada da ajuda pela sua fronteira.

Os militares brasileiros, no entanto, resistem a abrir caminho para um confronto direto com os venezuelanos — que seria desencadeado pela invasão do território vizinho para a derrubada do cerco erguido por ordem de Caracas. Entretanto, apesar de todos os ultimatos impostos pelas autoridades americanas, também não houve até aqui nenhuma movimentação por parte dos Estados Unidos nesse sentido.

O regime chavista, inaugurado em janeiro de 1999, é longevo o suficiente para ter atravessado o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, os dois de Luiz Inácio Lula da Silva, os oito anos somados de Dilma Rousseff e Michel Temer e mais esse início de governo Bolsonaro.

Nesse período, o Brasil experimentou todas as opções possíveis com a Venezuela — com exceção de uma intervenção militar. Fernando Henrique atuava como conselheiro de Chávez, que apesar da verborragia ainda seguia uma linha relativamente moderada. No último mês de seu governo, em dezembro de 2002, FHC atendeu ao pedido do então presidente eleito Lula de enviar um carregamento de combustível para Chávez fazer frente à greve política da PDVSA, a estatal petrolífera venezuelana, contra o seu governo.

Lula apoiou Chávez de forma crescente e aberta, chegando a pedir voto para ele na inauguração de uma ponte ligando os dois países sobre o Rio Orinoco, em novembro de 2006, três semanas antes da eleição presidencial na Venezuela. Nesse período, que se estendeu pelos governos de Dilma, o Brasil era visto pela oposição venezuelana como um governo hostil a ela e dócil aos chavistas.

Quando Temer assumiu, voltou à política externa anterior, que seguia a linha tradicional do Brasil, de não ingerência unilateral em outros países. O que não o impediu de evocar os princípios democráticos do Mercosul para suspender a Venezuela, como FHC havia ameaçado fazer em 1996, para evitar um golpe no Paraguai.

Agora, o Brasil sai de novo do marco dos princípios e acordos, para exercer uma liderança e uma responsabilidade regionais conforme suas preferências e visões circunstanciais. Não está necessariamente errado. É apenas novo. E terá consequências. Parafraseando o Pequeno Príncipe, um país se torna eternamente responsável pelo regime que ele muda.