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Pedro Doria: O dia em que o Google quase parou a Terra

Para alguns, o Google estar fora do ar é pior do que mero inconveniente

Durou por volta de uma hora a queda completa de serviços do Google — Gmail, Calendário, Drive, Docs, Meet, Cloud, Photos, YouTube. O Google estar down, fora do ar, é daquelas coisas que todo mundo percebe na hora. Os e-mails cessam de chegar, o vídeo não carrega, o compromisso na agenda se torna inacessível. Para alguns, é pior do que mero inconveniente.

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Aqui no Brasil estamos ainda engatinhando nas casas inteligentes, mas, nos EUA, elas são mais e mais comuns. Termostatos da Nest, a marca para estes acessórios do Google, também se tornaram inacessíveis. O mesmo vale para fechaduras e câmeras de segurança. Assim como para as caixas de som inteligentes.

Sempre tivemos situações do tipo — ficar sem água, sem luz, sem gás. Mas quando as utilidades públicas são oferta de uma empresa global o impacto é, igualmente, global. Conforme entramos numa década que será marcada pelo domínio do 5G e da internet das coisas, na qual cada instância de nossas vidas será automatizada, esta concentração dos serviços em poucas empresas deve ser motivo de preocupação.

Se a concentração se mantém, uma interrupção de serviço destas, em dez anos, não afetará só YouTube, as aulas das crianças no Meet e a agenda. Vai fazer o automóvel parar pois não saberá para onde ir — depende dos mapas. Poderá trancar pessoas fora de casa. Não reconhecerá o rosto doutros tantos para atividades essenciais.

Não se trata de criticar o Google — poucas empresas de tecnologia oferecem soluções tão complexas e incrivelmente estáveis como essa turma de Mountain View. São ousados. Quando outros no Vale do Silício perderam a criatividade e se burocratizaram, eles continuam forçando os limites da tecnologia. Da inteligência artificial. Constroem mesmo o futuro.

Assim como constituem um monopólio e quando acontece de seu serviço cair, bilhões de pessoas são atingidas. Quando os criadores da internet a desenharam inicialmente como uma rede descentralizada, não o fizeram à toa. Queriam algo confiável. Se um pedaço da rede cai, o resto continua de pé. Um dos responsáveis pelo protocolo que deu este design elegante à rede é, hoje, alto funcionário do Google. Vint Cerf.

Cerf e os outros pioneiros estavam certos em sua visão. Os serviços digitais precisam ser descentralizados como a internet foi imaginada originalmente. Os monopólios forçam sua centralização. Aí, quando cai — e qualquer serviço cai, por melhor que seja — quase todo mundo é afetado. Da próxima vez poderá ser muito mais grave.


Pedro Doria: O fascismo e o digital

Grandes transições econômicas deixam todos numa grande insegurança

Deixe que uma discussão transcorra por tempo o bastante na internet, diz a Lei de Godwin, e alguém por certo será comparado a um nazista. Mais recentemente, a política do mundo parece ter embarcado nesta – tem muita gente vendo fascistas por todo lado. Há muito de paranoia, nisto. Há também uma intolerância da esquerda com a direita. Por tanto tempo se chamou o centro de direita que quando aquela, a verdadeira, dá suas caras muita gente a recebe com espanto. Mas há também, entre os que veem um mundo assombrado por fascistas, alguma razão.

Esta discussão tem tudo a ver com o ódio nas redes, assim como tem com a reforma da Previdência.

O fascista original é Benito Mussolini, convidado pelo rei italiano a formar gabinete como primeiro-ministro em 1922, e morto pela ira do povo em 45. História é pop e, em geral, o conhecimento que temos de história é aquele dos clipes curtos e uns marcos fundamentais. Fascismo, portanto, é aquele governo totalitário da direita de durante a Segunda Guerra, aquela mesma que fez o Holocausto.

Mas o fascismo original não nasceu totalitário, tampouco surgiu do nada. E, se a afirmação parece polêmica, ela é de Palmiro Togliatti, sucessor de Antonio Gramsci como secretário-geral do Partido Comunista Italiano, que comandou entre 1926 e 1964. O fascismo nasceu como improviso em cima de uma situação atípica.

A Itália imediatamente após a Primeira Guerra vivia uma situação econômica muito complexa. O conflito empobreceu a todos, custou a vida de 7% da população masculina e, não bastasse, a transição de uma economia agrícola para industrial estava a pleno vapor.

Estas grandes transições econômicas deixam a todo mundo numa grande insegurança. Profissões estão desaparecendo. Gente que achou que trabalharia no mesmo ramo de pais e avós, de repente, vê aquela garantia desaparecer. Não há ideia do que será o futuro, sobram insegurança e incerteza. É um cenário tão difícil que o liberalismo não tem respostas imediatas para dar. A democracia liberal é mais frágil quando o mundo está em mudança rápida. Só os radicais têm respostas claras. No biênio imediatamente anterior à repentina ascensão de Mussolini, parecia que os comunistas fariam na Itália sua segunda revolução. Era uma greve após a outra, quase deu. Naquele cenário pós-guerra, com inúmeros veteranos desempregados na rua, Mussolini os reuniu, vestiu-os com camisas pretas, e saiu por ali impondo ordem na base do murro. Morreu muita gente nos embates entre fascistas e sindicalistas.

E é isto que temos em comum com aquele tempo. Cá estamos na transição da economia industrial para a digital. Há muita gente que planejou um futuro e viu sua indústria desmoronar. Vai acontecer com mais pessoas – os sociólogos os vêm chamando de precariado. Como nos anos 1920, a democracia liberal não tem remédios rápidos ou mesmo claros. Não bastasse, mudanças demográficas e indústrias várias em crise fazem com que a previdência em todo o mundo tenha de ser reinventada.

Mas não temos um bando de veteranos de guerra desempregados e treinados para a batalha nas ruas. Tampouco temos sindicalistas que forçam greves para agravar a crise e forçar uma revolução. O fascismo não veio sozinho – com ele veio, também, o comunismo. Radicais e totalitários, ambos. Soluções demagógicas, com promessas fartas de utopias inalcançáveis. Desta feita, não parece que teremos nem um, nem outro. Talvez outras coisas.

Mas isto não muda um fato: nas mudanças econômicas profundas, a democracia liberal entra em crise e demagogos e radicais fazem a festa. O digital virou política, é causa e meio, e com ele não será diferente.