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RPD || Lilia Lustosa: Cinema argentino e mobilização
Lilia Lustosa destaca a força do cinema que clama por justiça, ao analisar o filme Crimes de Família (2020), do diretor Sebastián Schindel. Para ela, "um verdadeiro chamamento por condições dignas para trabalhadores domésticos e pelo fim da violência de gênero que afeta tantas mulheres na Argentina, no Brasil e no mundo"
Cinema e psicanálise nasceram praticamente juntos. Muito cedo percebeu-se que a nova arte tinha um poder catártico semelhante ao da nova corrente psicológica que surgia naquele final de século 19. Ao sentar-se em uma sala escura, com a atenção totalmente voltada para a tela, o espectador entrava em uma espécie de estado hipnótico, revivendo sensações do passado, seguidas de um certo alívio ao final da sessão. Um sentimento que muitas vezes terminava por converter-se em ação… ou em transformação.
Em Buenos Aires, tive a oportunidade de constatar esse poder do cinema quando fui assistir ao filme Refugiado (2014), de Diego Lerman, em uma villa (como se chamam ali as comunidades), fruto de uma ação promovida pelo PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento –, em conjunto com uma ONG local. O objetivo era incentivar mulheres vítimas de violência doméstica a se pronunciarem sobre o mal que vinham sofrendo, quem sabe até criando coragem para denunciar seus agressores.
O filme, que conta a história de uma mulher grávida que foge de casa e do marido, levando consigo o filho de 7 anos, despertou sentimentos profundos na plateia. Uma senhora, acompanhada do filho pequeno, declarou haver-se identificado muito com a protagonista, afirmando que o que viu na tela era exatamente o que vivia em seu dia-a-dia. Uma angústia sem fim que ela não queria mais na sua vida nem na de seu menino, que, ali sentado, parecia alheio a todo o mal que lhe cercava quotidianamente. O que essa mãe mais temia era que a criança crescesse tendo aquele modelo de pai, de relacionamento e de vida.
A verdade é que, apesar de já ter lido mil vezes sobre a força catártica do cinema, sobre sua capacidade de sensibilização ou mesmo de persuasão, características tão exaltadas pelos vanguardistas russos ou mesmo pela Igreja Católica com suas encíclicas Vigilanti Cura e Miranda Prorsus, nada se compara a vivenciar seu efeito na vida real.
Crimes de Família (2020), do diretor argentino Sebastián Schindel, lançado em agosto via streaming (Netflix), tem os quesitos necessários para repetir o feito de Refugiado. Tendo como tema central um crime cometido pela empregada doméstica Gladys em seu local de trabalho, numa interpretação comovente da atriz iniciante Yanina Ávila – ela mesma empregada doméstica na vida real –, o filme mostra ainda outros crimes que envolvem o filho da família de seus patrões, papéis interpretados brilhantemente por Benjamín Amadeo, Cecilia Roth e Miguel Angel Solá. De forma labiríntica, essa história forte, instigante e muito bem narrada, vai sendo pouco a pouco construída. À medida que o filme avança, o novelo vai-se desenrolando e vamos entendendo as razões que levaram Gladys a cometer tal monstruosidade.
O roteiro de Crimes de Família, baseado em fatos reais, acabou despertando o interesse de organizações internacionais como a ONU Mulheres e a OIT - Organização Internacional do Trabalho, que resolveram apoiar sua produção por enxergarem ali uma ferramenta de sensibilização para as questões de violência laboral, de gênero e assédio sexual. Quiçá capaz de impulsionar o governo argentino a ratificar a Convenção 190 da OIT, que trata justamente desses temas.
Como mulher e mãe, senti-me muito tocada por um outro aspecto do filme: a maternidade. Há várias mães nessa história, cada uma tentando acertar em seus papéis de educadoras, provedoras e protetoras. Mas, o que fazer quando nunca se teve o amor como modelo? Ou quando se sofre assédio constantemente? O que fazer diante de um filho criminoso? Até onde é possível preservar o tal instinto materno de proteção?
Como historiadora e crítica de cinema latino-americana, senti-me orgulhosa de ver a força de um cinema que clama por justiça. Um verdadeiro chamamento por condições dignas para trabalhadores domésticos e pelo fim da violência de gênero que afeta tantas mulheres na Argentina, no Brasil e no mundo.
Não é a primeira vez que Sebastián Schindel dirige um filme que retrata desigualdades nas relações sociais e trabalhistas. Aliás, este é um tema que o fascina! Com formação de documentarista, esse diretor-idealista costuma basear-se em fatos reais para compor seus roteiros, usando seu trabalho e sua arte como ferramentas de sensibilização, conscientização e chamamento por mudanças. Em 2014, seu O Patrão, radiografia de um crime, também usado pela OIT como bandeira para tratar do tema da escravidão moderna na Argentina, obteve excelentes resultados, levando este país a tornar-se o primeiro da América do Sul a ratificar o Protocolo 29 de combate ao trabalho forçado. Uma prova de que o cinema, além de entretenimento, pode ser também eficaz ferramenta de mobilização. Que mais e mais diretores e instituições tomem partido dessa faceta da sétima arte!
*Lilia Lustosa é crítica de cinema