José Roberto Batochio

José Roberto Batochio: A democracia convoca seus defensores

Inoculado o mal, o remédio para tantas ofensas a ela será sempre a resistência

“Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança”
Benjamin Franklin, no ‘Almanaque do Pobre Ricardo’

Uma das inteligências mais portentosas de seu tempo, Benjamin Franklin não só dominou a eletricidade como iluminou o caminho do homem pela saga virtuosa da liberdade. De suas numerosas contribuições ao progresso da humanidade há a destacar a colaboração para o texto da Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776, um dos documentos-síntese da grande marcha humana pela igualdade, fraternidade e liberdade, que, avant la lettre, 13 anos depois inspiraria a Revolução Francesa. Um dos brasileiros que mais se identificaram com Franklin em sua época, José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, foi além ao afirmar que “a liberdade é um bem que não se pode perder senão com a vida”.

A democracia evoluiu desde então, com salvaguardas que garantem a vida comunitária ao mesmo tempo livre e em segurança. Porém, como todo núcleo e toda fonte de valores civilizatórios, o sistema democrático está sempre exposto à corrosão do mal – com a particularidade de, malgrado sua enorme resistência, estar sujeito a recaídas. Nem sempre se imuniza como um corpo resiliente, isto é, não retorna imediatamente ao estado original depois de sofrer ele uma ação deformadora. Daí, como diz o bordão, a necessidade da eterna vigilância.

Nossos tempos e costumes estão repletos de tais abusos e usurpações. Levantamento do V-Dem, o Instituto de Variações da Democracia, observatório da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, registra que pela primeira vez no idealizado século 21 a democracia se mostra em minoria no mundo. Enquanto 87 nações vicejam no regime democrático, 92 definham sob o tacão autoritário – e o Brasil corre o risco de passar do primeiro para o segundo grupo.

Se há turbas nas ruas dispostas a cair na armadilha denunciada por Benjamin Franklin, é também a vez de os democratas de raiz se inspirarem em José Bonifácio e defenderem o Estado Democrático de Direito. Depois da redemocratização de 1985, ingressamos no período mais longo de amplas liberdades democráticas de nossa História, mas hoje corremos o risco de retroceder a um obscuro autoritarismo. A grosseria antirrepublicana que cultiva a autocracia galgada pela facção fundamentalista encastelada no Poder Executivo almeja a concentração da autoridade quando agride outros Poderes, pisoteia a Constituição, malversa a lei como expressão da vontade comum e exclui do aparelho de Estado a legalidade administrativa.

A usina de irregularidades age em moto-contínuo, forjando deformidades como medidas provisórias restritivas da liberdade, redução da transparência nos assuntos de Estado, concessão a agentes públicos do direito de matar impunemente – e os acontecimentos de Minneapolis mostram o perigo dessa licenciosidade. Assistimos ainda ao desvio de função das instituições republicanas à vista de interesses de familiares, intimidação de correligionários e perseguição de adversários, anúncio de formação de milícias, hostilidade à imprensa profissional e incentivo à horda robótica que inventa e calunia à sorrelfa no submundo digital, agressões a minorias, celebração de episódios e figuras ditatoriais do passado, tendo como ápice dessa trajetória insana o confronto com o Judiciário, sobretudo o Supremo Tribunal Federal, em ações de desprezo e afronta ao ordenamento jurídico nacional típicas de republiquetas de banana. A disrupção antidemocrática em nossos dias é um processo de mil tentáculos, tecido lentamente, não mais abrupto como no tempo dos tanques inopinadamente amanhecidos ante a Nação surpreendida.

Não bastassem tantos despautérios, salta aos olhos o flagrante despreparo do governo para conduzir um país de tamanhos complexidade e desafios. Assim como lhe falta um atributo que confere a regimes autoritários algum apoio popular, ou seja, a forja de crescimento econômico que anestesia a liberdade em parcelas da população, como aconteceu no nazi-fascismo na Europa e, entre nós, no Estado Novo e em fases da ditadura de 64. Ao contrário, aumentam a precarização da economia, o obsoletismo da indústria, a devastação do meio ambiente, a hostilidade a importantes parceiros comerciais, o descrédito internacional, a desconfiança dos investidores e, de quebra, a desigualdade social e indigência de amplas parcelas da população – chaga agravada pela pandemia, minimizada como “gripezinha”. As patas do cavalo de Átila não fariam maior estrago.

Inoculado o mal, o remédio para tantas ofensas à democracia será sempre a resistência, como, por sinal, indicou a Declaração da Independência americana, que Franklin ajudou a redigir e inspirou Bonifácio, no Brasil. Ainda ecoa eloquente seu alerta de que na vigência de uma forma de governo abusiva e usurpadora dos princípios da ordem e da liberdade “cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo”.

Com a palavra, os verdadeiramente democratas.

*José Roberto Batochio é advogado criminalista, foi presidente do Conselho Federal da OAB e deputado pelo PDT-SP.


José Roberto Batochio: Dois Poderes da República sob ataque

Convocar manifestação contra o Congresso e o STF constitui atentado à democracia

“Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais que têm sido experimentadas de tempos em tempos” - Winston Churchill, discurso na Câmara dos Comuns em 1947.

Quando pronunciou a frase que se tornaria o mantra da democracia através dos tempos, Churchill era um deputado que acabara de experimentar as agruras desse sistema político, baseado no voto popular. Dois anos antes, a 2.ª Guerra Mundial ainda nem havia acabado, mas o gigante que conduzira a Inglaterra na vitória dos Aliados contra o nazi-fascismo foi derrotado nas eleições e deixou o cargo de primeiro-ministro. Muitos se revoltaram contra o que entenderam ingratidão dos ingleses, porém o estadista não se abalou: “Eles têm o direito perfeito de nos enxotar. Isso é democracia. É por isso que estamos lutando”.

Noutras circunstâncias, quando os inimigos da democracia insistem em atacá-la, os democratas é que devemos arrogar não só o direito, mas o dever de defendê-la. Nossos tempos talvez sejam, desde a grande corrente libertária forjada pelo pós-guerra dos anos 1940, os mais adversos a esse sistema de governo em que o povo detém, pelo voto igualitário, o controle de seu destino político. A democracia representativa, em especial, é submetida a um descrédito que no fundo alveja a política como instrumental de administração e solução institucional dos conflitos na sociedade. A todo instante se escreve o epitáfio da representação política e são, de fato, visíveis os sinais de insatisfação dos eleitores com seus representantes. A pesquisa Barômetro das Américas, realizada de dois em dois anos pela Universidade Vanderbilt, dos Estados Unidos, com apoio no Brasil da Fundação Getúlio Vargas, revelou em sua última rodada, em 2019, que 58% dos brasileiros não estão satisfeitos com o funcionamento da democracia no País, mas, dando razão a Churchill, um porcentual maior, 60%, acha que ela ainda é a melhor forma de governo. Um hiato autoritário imposto por um golpe antidemocrático conta com a simpatia de 35% dos brasileiros, mas a maioria de 65% rejeita a ideia.

Os dados permitem a ilação de que, por maior que seja o desalento com a democracia, é majoritária a preferência nacional por mantê-la como a melhor forma de governo. Trata-se, portanto, de aperfeiçoá-la, extirpar-lhe os defeitos, que mais se devem aos que estão no topo da representação do que às vicissitudes dos representados. Constitui truísmo observar que as instituições democráticas são maiores do que os homens que as conduzem.

Fundamento básico da democracia é uma Constituição que avalize a isonomia republicana, assim como a clássica separação e independência harmônica dos Poderes, os quais, desempenhando papéis específicos, atuam como contrapesos recíprocos. Como no preceito bíblico, a democracia dá a César e a Deus o quinhão que lhes compete. Daí ser inadmissível que integrantes de um dos três Poderes do Estado, extrapolando suas funções discricionárias, embarque na temeridade de limitar a atuação de outro. Quando disputam a preferência do eleitor, os membros do Parlamento e do Executivo podem até apresentar programas eleitorais contendo tais limitações, mas para aplicá-las, já investidos no cargo, devem observar a liturgia constitucional. E na maioria das vezes, como regra do processo democrático, carecem do concurso do Poder em questão para alcançar seus objetivos reformadores. O que não podem é apelar para as “vozes das ruas” com o fim de se fortalecer e intimidar o Poder que, em avaliação autoritária, lhe nega um quinhão maior do que aquele que lhe está atribuído, invocando a fúria dos 35% que apoiam o hiato autoritário.

Divergências de governança entre os Poderes são naturais, mas cabe ao Executivo, embora igualmente eleito pelo povo, reconhecer que o Legislativo é o poder popular por excelência, porquanto diverso, plural, reunião eclética e sincrética das correntes que pulsam na sociedade, formando um mosaico que a contradição democrática tende a transformar em síntese da vontade nacional. Todo ato que emana do Parlamento, obviamente chancelado pela maioria, é um ato federativo que as minorias são obrigadas a respeitar - e o axioma vale para os demais Poderes, cabendo apenas ao Judiciário escrutinar a conformidade constitucional das decisões.

Quando o Executivo exorta seus acólitos em busca de apoio não propriamente à sua linha política, mas para intimidar os demais Poderes, expõe de forma condenável sua incapacidade de governar segundo a ordem democrática. Tal procedimento é típico de governos que não lograram cumprir promessas de campanha, frustraram eleitores e deram razão à oposição, buscando responsabilizar um “inimigo externo” por seu fracasso. Se a regra era culpar a imprensa, agora agitam as redes sociais. No andar dessa carruagem, a convocação do presidente da República para que seus correligionários venham às ruas, em manifestações contrárias à independência e autonomia do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, constitui um atentado à democracia que faria Churchill novamente ir à luta, como o fez contra o Terceiro Reich.

*Criminalista, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), foi deputado federal (PDT-SP).


José Roberto Batochio: A afronta à Constituição e a volúpia de prender

Oxalá a sensatez deite raízes e iniba de vez a fúria do indevido encarceramento

“Não há tirania mais cruel que aquela que se exerce à sombra das leis e com as cores da justiça”
Montesquieu, em Do Espírito das Leis

Uma das formas mais comuns de a tirania se manifestar no Estado “punitivista” é o encarceramento que desrespeita o princípio da presunção de inocência do cidadão investigado – sobretudo quando nem foi condenado e sequer denunciado se acha como autor de um suposto crime ainda em apuração. Como abundantes jabuticabeiras penais, essa forma de violência institucional está em permanente expansão na esfera do aparato da persecução penal do Brasil. Antes de investigar, prende-se. Antes de denunciar, prende-se. Antes de condenar, prende-se. E a prisão, que deveria ser a resposta final imposta como punição ao réu induvidosamente culpado, passa a ser uma aleatória e opressiva antecipação do imprevisível desfecho do que seria o devido processo legal.

A volúpia, se não sanha, de aprisionamento que empolga certas autoridades, tradicional e abusivamente lançada no lombo de centenas de milhares de pessoas do povo, agora deu para se estender a ex-presidentes da República cujo crime é figurar em depoimentos de terceiros (delatores premiados) em inconclusos inquéritos policiais ou outros feitos. Um foi detido recentemente por breve tempo e um segundo agora teve sua detenção pretendida pela Polícia Federal com a impenitente e jamais demonstrada alegação de que poderia obstruir investigações.

O aluvião de prisões cautelares avoluma-se hoje naquilo que Rui Barbosa chamou em 1920 de “praga pública”. O Brasil contava em agosto 812 mil presos, segundo o Banco de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça. Nada menos que 337 mil desses reclusos são os chamados provisórios, é dizer, aguardam um julgamento em que, afinal, será decidido se ao rigor da lei merecem ou não ficar na cadeia. Pela lei, são presumidamente inocentes. Julgados, muitos serão absolvidos e libertados, ou seja, foram presos indevidamente, entre eles grande parcela de pretos e pobres, condições que em geral se conjugam na legião de despossuídos humilhados e ofendidos, vítimas de uma certa polícia que, quando não prende, aleija ou mata – considerando que, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 morreram 5.159 pessoas em decorrência de intervenções policiais.

Apesar de escandalosos, os oceânicos números parecem não satisfazer a vontade incontrolável de aprisionamento que tem animado nossas autoridades. Os holofotes não chegam a eles. Maior repercussão tem essa cruzada quando lança sua rede de arrasto em figuras proeminentes da República. Foi por essa modalidade de extração midiática que o ex-presidente Michel Temer acabou detido em plena rua, em maio, em espetáculo cercado de câmeras, com base em delação premiada – aquela modalidade de investigação penal que se sustenta num castelo de palavras a que falta o alicerce da prova e da verdade.

Talvez animados pelo sucesso dessa ação espetacular, por ordem de um desses juízes “celebridades”, embora instâncias superiores o tenham libertado imediatamente pelo fato de reconhecerem a ilegalidade do ato, nossos insaciáveis carcereiros vêm de dirigir sua sanha de aprisionamento à ex-presidente Dilma Rousseff. Ao investigar supostos fatos ilícitos da campanha eleitoral de 2014, e novamente com base na verbiagem das delações premiadas, solicitaram ao Supremo Tribunal Federal a decretação da sua prisão processual, novamente recorrendo ao artificioso argumento de que ela, em liberdade, hipoteticamente poderia obstruir as investigações – já documentadas num volume de 218 páginas. O sofisma processual é tamanho que, decorridos quase 2 mil dias dos fatos, que utilidade social ou mesmo investigativa haveria em a Polícia Federal manter a ex-presidente presa por exíguos cinco dias? A resposta é simples: a prisão humilha, desprestigia, fragiliza a dignidade do ser humano – e quanto mais famoso ele o é, mais empoderados se sentem os algozes. O pormenor esdrúxulo do episódio em si já de todo extravagante é que a ex-presidente nem sequer fora intimada a prestar esclarecimentos sobre os fatos em apuração, em suma, acerca das suspeitas que os policiais consideram tão comprometedoras a ponto de quererem levá-la odiosa e prematuramente ao cárcere.

Que sentido haveria em aprisionar uma pessoa por fatos de cinco anos pretéritos, ainda em investigação, se é precisamente esta que deve determinar a existência material de crime e apontar os seus autores, que serão devidamente processados e, se culpados e condenados, enfim punidos? O indisfarçável e único propósito dessa prisão é, sem dúvida, a volúpia de aprisionamento, que acomete determinados agentes da autoridade do Estado.

Desta vez, porém, falou mais alto o Direito e a arbitrariedade foi barrada, contando com o raro concurso do Ministério Público, também afeito às penas antecipadas, mas com sensibilidade para detectar e repelir a excrescência. Decisiva, no entanto, foi a ausência na cadeia de arbitrariedades do elemento nuclear desses atentados aos direitos fundamentais vigentes no Estado Democrático de Direito, ou seja, o juiz justiceiro, que manda prender por dá cá aquela palha. Relator da matéria no STF, o ministro Edson Fachin negou o pedido de prisão, com a lúcida observação de que “a pretensão de restrição da liberdade de locomoção dos investigados não se encontra provida da indicação de concretas condutas atentatórias às apurações que evidenciem a necessidade da medida extrema”. Ademais, com a diligência de julgador que deve zelar pela legalidade do processo, determinou que a ex-presidente fosse, apenas e enfim, intimada a depor.

Oxalá o sensato decisório deite raízes e iniba de vez a fúria de encarceramento indevido – espécime maligno da imposição legal da tirania de que falou o grande Montesquieu.

*Advogado criminalista.