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José Goldemberg: Modernização e políticas públicas

É útil começar já a entender o que fazem os países da OCDE e comparar com o Brasil

Está aberto o caminho para que o Brasil passe a integrar a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mais conhecida como o “clube dos países ricos”. Fazem parte dela os 36 países mais avançados do mundo, onde se concentram mais de 40% da riqueza mundial.

Na prática, o Brasil, a oitava economia mundial, não é mais considerado um “país em desenvolvimento”, como é o caso de muitos países da África. E o ingresso na OCDE vai nos levar a alinhar certos procedimentos na economia e administração do País com os demais países do grupo.

Umas das áreas em que isso vai ter de ser feito é a do desenvolvimento científico e tecnológico, que é um componente essencial da modernização. É útil, portanto, começar a entender desde já as políticas públicas e os instrumentos que os países da OCDE utilizam e compará-los com os que estão sendo adotados hoje no Brasil.

Um documento útil para esse fim é o intitulado Colaboração Universidade-Indústria, publicado em 2019 pela OCDE, que analisa as políticas públicas dos países-membros da organização para apoiar a transferência de conhecimentos das universidades para a indústria. Esse não é um problema novo no mundo, nem no Brasil, e nos força a tentar entender o papel das universidades em geral na sociedade.

Até a criação da Universidade de Bolonha, por alunos e mestres independentes, há mais de 800 anos, todo o ensino e os estudos eram feitos apenas em estabelecimentos religiosos. Após a sua criação, seguida pela fundação de muitas outras, as universidades tornaram-se centros de pensamento intelectual e nelas se desenvolveram as grandes ideias filosóficas e científicas que abriram novos horizontes, para além dos permitidos pela Igreja Católica na época.

Sucede que as áreas mais técnicas, como a engenharia, se mantiveram fora das universidades, o que não significa que não se tenham desenvolvido nas próprias indústrias. Elas só foram incorporadas às universidades muito mais tarde, em alguns países, como na Inglaterra, isso só foi feito no século 20.
Essa é uma das razões por que muitas universidades adquiriram a reputação de ser elitistas e acadêmicas, verdadeiras “torres de marfim” desligadas da realidade.

Os países da OCDE, contudo, já superaram o preconceito de que as “grandes ideias” e inovações somente se originam nas universidades e que “técnicos”, fora delas, as põem em prática, ou seja, que existe uma hierarquia entre “acadêmicos, superiores”, e “técnicos, inferiores”.

Ambos trabalham em paralelo e se realimentam. Na indústria dos Estados Unidos, pesquisas acadêmicas contribuem de maneira decisiva e rápida para a produção de menos de 10% dos produtos fabricados por ela. É por essas razões que não são as universidades as grandes geradoras de patentes, mas os egressos delas que criaram empresas ou trabalham em empresas já existentes. Em muitos casos os próprios professores das universidades são sócios de empresas.

Um dos melhores exemplos é dado pela Universidade Stanford, que com seu excelente sistema de ensino e pesquisa acadêmica de alto nível deu origem ao Vale do Silício, que se formou em torno dela e onde seus ex-alunos se estabeleceram, criando inúmeras empresas.

O relatório da OCDE lista 21 políticas adotadas nos seus países-membros para estimular esse tipo da interação criativa de transferir conhecimentos das universidades para o setor industrial: 11 delas são instrumentos financeiros, como subsídios, bolsas de estudos, compras públicas, manutenção conjunta de laboratórios de pesquisa e outros. Cinco são instrumentos regulatórios, sobretudo na área de patentes. E outros cinco são estímulos à cooperação, programas de treinamento e formulação conjunta de estratégias de desenvolvimento.

A grande maioria dessas políticas já existe no Brasil, pela ação dos diversos órgãos do governo, como Capes, CNPq, Finep, e das fundações de amparo a pesquisas estaduais, das quais o melhor exemplo é a Fapesp, em São Paulo. Somam-se a elas os fundos setoriais, que são alimentados por uma taxa de 1% do produto bruto do faturamento de empresas de energia e telecomunicações.

Quando a demanda por tecnologia era elevada, como foi no País durante a construção de grandes obras de infraestrutura, como em petróleo, estradas e hidrelétricas, surgiram empresas de engenharia como a Promon e a Hidroservice, entre outras, formadas por egressos das nossas universidades que utilizaram seus serviços e sua competência.

A visão de que as universidades vivem numa “torre de marfim” no Brasil é incorreta. Elas estão funcionando satisfatoriamente, de modo geral, para os fins para os quais foram criadas, que são a formação de recursos humanos em todas as áreas (incluídas as de humanidades), mas a demanda por seus serviços e sua competência é ainda baixa e só aumentará com uma retomada vigorosa de investimentos em infraestrutura e da economia em geral, que depende de políticas governamentais.

* Professor emérito e ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), foi ministro da Ciência e Tecnologia


José Goldemberg: O papel da ciência no desenvolvimento do País

Como transformar a pesquisa universitária em benefícios diretos para a população?

Ciência e tecnologia não tiveram praticamente nenhuma relevância nos debates do período eleitoral de 2018, apesar dos esforços da Academia Brasileira de Ciências, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e de algumas vozes isoladas.

Poder-se-ia argumentar que o que estava em jogo nas eleições presidenciais eram problemas mais importantes, como corrupção, criminalidade e carência de serviços públicos em geral. Nesse contexto, preocupações com ciência parecem menos urgentes e são restritas a uma parcela pequena da população, que se encontra quase toda ela nas universidades públicas. Essa parcela da população era considerada politicamente radical e assim tratada pelo regime militar, que não entendia claramente a complexidade do sistema, que, por um lado, era importante para o desenvolvimento do País, mas, por outro, uma área onde se encontravam muitos opositores do regime militar ansiosos pelo restabelecimento da ordem democrática.

O setor de ciência e tecnologia não foi inteiramente negligenciado nesse período e algumas universidades se tornaram centros importantes de ciência, cultura e desenvolvimento tecnológico, exemplo das quais a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Apesar de problemas pontuais, a atividade científica e tecnológica do País cresceu muito, sobretudo, em São Paulo, graças a duas medidas adotadas pelo governo estadual: a autonomia financeira das universidades públicas, garantindo-lhes uma porcentagem fixa do ICMS, e a ação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que também recebe uma fração fixa dos impostos.

Há, porém uma característica do sistema de ciência e tecnologia do País que o governo militar e os governos democráticos desde 1985 não conseguiram resolver: como transformar excelentes trabalhos dos grupos de pesquisa universitários em mais benefícios diretos para a população.

Essa é a preocupação de muitos de nossos políticos e governantes, mas de novo aqui ela revela uma compreensão parcial dos problemas.

Ela é parcial porque o atual sistema universitário já tem um enorme impacto positivo na sociedade, o que justifica os gastos feitos com ele: só a USP, desde sua criação, formou mais de 300 mil profissionais em todas as áreas, desde Engenharia até História Medieval. Praticamente todas as indústrias, os bancos, as organizações sociais e os próprios quadros governamentais têm significativo porcentual – principalmente nos cargos de direção – de egressos da USP.

Poder-se-ia argumentar que ela poderia fazer mais, sobretudo dinamizar a atividade industrial, que está caindo em volume e qualidade no País. O problema aí não se encontra na universidade, mas na política econômica que isolou o País e o tornou um dos mais fechados do mundo, com barreiras alfandegárias que limitam as importações. A indústria nacional tem, pois, uma reserva de mercado, à qual oferece produtos de qualidade baixa ou média, e exportações limitadas a produtos agrícolas, minérios e outros de baixo conteúdo tecnológico. Para melhorar essa situação ela necessita de tecnologias modernas que existem no exterior, mas isto só ocorrerá se tiver de exportar e competir no mercado externo, o que poucas indústrias fazem.

As nossas universidades formam quadros capazes de escolher essas tecnologias, adaptá-las se necessário e em alguns casos desenvolver novas tecnologias. Um excelente exemplo é o da Escola Superior de Agricultura, umas das melhores instituições de ensino nessa área do mundo (sétimo lugar no ranking mundial). Em torno dela, em Piracicaba e municípios vizinhos, criou-se um verdadeiro “vale do silício” de empresas que são a base do magnífico setor agropecuário paulista. O mesmo se verifica na UFRJ, que atende, em parte, às necessidades tecnológicas do setor de petróleo no Rio de Janeiro.

Nesses exemplos o setor universitário não se queixa da falta de apoio do governo porque ele vem das empresas que o procuram. Existe, contudo, ampla capacidade ociosa de ciência e tecnologia, que não é demandada pela indústria.

Em outras palavras, o setor universitário é um setor que produz pessoal qualificado e tecnologia de nível internacional. Não há problema da oferta. O que falta é demanda, por causa das políticas macroeconômicas do governo federal e do fato de a economia brasileira ser muito fechada. À medida que esses problemas forem resolvidos a demanda vai aumentar e a sociedade brasileira vai ter a boa surpresa de verificar que universidades podem ajudar a resolver os seus problemas.

Uma grande abertura comercial parece estar nos planos do novo governo federal, mas ela não vai surgir da noite para o dia. De imediato os diversos ministérios (sobretudo os da área de defesa) e as empresas estatais deveriam ser encorajados a procurar mais os serviços das universidades, como se faz nos Estados Unidos, onde as encomendas das Forças Armadas nessa área são uma fonte importantíssima de apoio às pesquisas.

No Brasil as agências reguladoras ANP (petróleo), Aneel (eletricidade) e Anatel (telecomunicações) têm poderes para redirecionar recursos a pesquisas com os fundos setoriais – que determinam que 1% do faturamento bruto das empresas do setor seja direcionado à pesquisa.

Esses fundos setoriais tiveram papel importante quando foram criados, mas foram desvirtuados nos últimos anos e usados em programas demagógicos, como o Ciência sem Fronteiras. Esse é um problema relativamente simples que o governo pode resolver.

O que parece urgente é, pois, atuar no lado da “demanda” da tecnologia, e não apenas no da “oferta”, que algumas universidades do nosso país já fazem bastante bem.

*José Goldemberg é professor emérito e ex-Reitor da USP, foi secretário de Ciência e Tecnologia da presidência da República e presidente da Fapesp