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Janio de Freitas: Estapafúrdio produzido por Bolsonaro e apoiado por generais tem a ver com intenções definidas

Intenções inconfessas que enlaçam as atitudes do presidente têm corrido sem dificuldade

A incógnita mais expressiva, dentre as muitas atuais, é simples como formulação e inalcançável na resposta. Dado que estão explicitados os indícios de golpismo e a incompetência espetaculosa dos militares no governo, o que fará o Exército na possível transformação da pandemia em tragédia de massa, um país sufocado pela peste, carente de tudo menos de morte?

A marca de um ano exato do primeiro caso de Covid-19 no Brasil encontrou os estados em desespero com o recorde de casos e a ausência de leitos, vacinas, pessoal e outros recursos. Uma antevisão das previsões e alertas que as vozes mais competentes estão fazendo, inclusive a Organização Mundial da Saúde, caso persista o incentivo de Bolsonaro e do seu governo à calamidade.

O já célebre depoimento do general Eduardo Villas Bôas sobre a ameaça que fez ao Supremo, em nome do Exército, é claro na desmistificação da conversão desses militares ao Estado constitucional de Direito e à democracia.

Ressalva a fazer-se é a ausência até de mera informação aos comandos da Marinha e da FAB sobre a ameaça, como dito pelo entrevistado. Risco de discordância, é claro. E isso, não sendo certeza, pode ser indício de promissora evolução na Marinha e na FAB, oficialidades muito mais dotadas de preparo geral, para civilizar-se, do que no Exército.

Já é bem difundida a impressão, ou a convicção, de que todo o estapafúrdio produzido por Bolsonaro e apoiado pelos generais tem a ver com intenções definidas. Há bastante coerência nos atos amalucados, que são bem aceitos pelos generais também por uma comunhão não declarada nem gratuita.

A propaganda do falso tratamento com cloroquina cedo se mostrou como objetivo. Não só para desacreditar as recomendações científicas. Também para ações de governo que custaram milhões ao dinheiro público —e aí estava o Exército a fabricar quantidades montanhosas da droga enganadora.

O próprio Ministério da Saúde, o mais militarizado setor civil da administração pública, foi posto como indutor da droga ineficaz. Bolsonaro continua condenando as máscaras e estimulando aglomerações. E, sobre tudo o mais, a sabotagem a vacinas excedeu a incompetência. É muito mais e muito pior.

Por trás disso houve e há algo. Esse desatino não resistiria, para chegar à dimensão que alcançou, sem um propósito a sustentá-lo.

Não faz sentido o envolvimento, sem motivações especiais, de um governante em propaganda de remédio e em combate ao conhecimento científico provado e comprovado. Com esse meio de disseminar a morte, porém, combina-se um outro de fim idêntico.

No seu primeiro ato pela difusão da posse de arma, Bolsonaro alegou direito da cidadania de se defender. Sucessivos agravamentos dessa facilitação à criminalidade chegaram, agora, ao desmentido definitivo do propósito apresentado por Bolsonaro: novos decretos permitem até 15 armas para o cidadão comum, 30 armas para quem se apresente como caçador, 60 armas para quem se registre como atirador, munição a granel. Arsenais sem relação alguma com defesa pessoal. Mas não sem objetivo de quem os libera e dos militares, em especial do Exército, que dão o apoio.

As intenções inconfessas que enlaçam as atitudes de Bolsonaro, em temas como a pandemia e o armamento de civis, têm corrido sem dificuldade. Mas alguma coisa mudou nas últimas semanas. O Supremo mudou. Por quanto tempo e se para ser supremo sem temor e sem prazo, no momento, importa menos. Aproveite-se enquanto dure, que a necessidade do país é extrema.

Quando quatro ministros do STF decidiram trabalhar nas férias de dezembro e janeiro, a boa novidade foi noticiada como precaução contra propensões do recém-eleito presidente Luiz Fux. Revelou-se muito mais do que isso.

De Ricardo Lewandowski vieram, e continuam vindo, decisões que enfrentam desvios na política antivacinas do governo, o mesmo quanto às mais recentes revelações de ordinarices judiciais, políticas e policiais na Lava Jato, e outras de mesmo peso.

Alexandre de Moraes encarou, e não tem cedido nem milímetros, as ameaças ao Supremo, as patifarias nas redes, os indícios que recaem na Presidência da República.

Rosa Weber deu ao governo cinco dias, expirados ontem, para justificar o pacote das armas. Edson Fachin tomou a defesa verbal do Estado de Direito. E vai o Supremo por aí, ou parte dele, mudado, posto de pé e cabeça erguida.

Os negociantes do Congresso continuam negociando. O poder econômico, idem. Se a defesa da democracia não vier do Supremo, talvez só tenhamos resposta para a incógnita de Bolsonaro sob a forma de fato consumado. E a pandemia, como se agrava aqui, facilita.


Janio de Freitas: A Folha merece corrigir seu caminho

Os meus 40 carregam a satisfação de três contribuições aos 100 anos do jornal

Nos 100 anos da Folha, estendi por 40 anos, completados em novembro de 2020, um equívoco que se desdobrou em incontáveis outros. Um telefonema de Boris Casoy, então diretor de Redação, com um convite para minha colaboração no jornal, dava seguimento a uma sugestão de Flávio Rangel a Otavio Frias Filho, que procurava novo ocupante para a coluna fina da página 2.

Não ia durar mesmo, então comecei, não com os esperados seis textos por semana, três cabiam. Não se conversou sobre o gênero de coluna. Meu antecessor viera de décadas como editorialista de política, com estilo e temática dessa linhagem. Esperavam de mim, supus, a continuação assim. Nem tentei: em São Paulo com o nome de Janio, jornalista do abominável balneário do Rio e incapaz de fazer o que não sabia, na certa seria o horror dos leitores experimentais. Corri para uma crônica de fundo político, com temperos improváveis e cardápio variado.

O oposto do que Otavio desejava, vim a saber não muito depois. O convite foi um equívoco. De Otavio nunca ouvi uma referência positiva a artigo meu. A rigor, ouvi dois elogios: um, ao artigo “Cuba ida e volta”, quando me disse sentir-se em culpa por me haver retido no trabalho estiolante da coluna; outro, no artigo sobre a Grécia do mar Egeu, onde me emocionara muito. Um elogio para cada 20 anos é ao menos uma média original.

Quando Frias pai quis me passar para um espaço próprio e fixo, seis dias na semana, relutei muito comigo mesmo. Fui vencido por outro equívoco. Ano a ano, o canto alto e junto à dobra da página 5 recebeu e entregou um assunto exclusivo, em geral relevante e um tanto atrevido. O ponto final de uma coluna sinalizava o início do trabalho para a seguinte, ou as seguintes. Uma insensatez. Que pressenti, porém não aliviei, como é mais comum, pelo orgulhoso fascínio desta profissão imprópria para os países de falso “em desenvolvimento”.

Frias pai é merecedor de um reconhecimento ainda não feito pelo jornalismo. Nem mesmo na Folha. A extensão peculiar da liberdade informativa, base da identidade que o jornal veio a formar, só foi possibilitada por um fator contrário à pressão tradicional do poder econômico para conter o jornalismo entre limites estreitos. Tem um nome: é o fator Octavio Frias de Oliveira.

O jornal já se tornara o polo da rejeição pública à ditadura, com a campanha das Diretas Já induzida por Otavio. No regime civil, manteve a posição privilegiada com o jornalismo crítico aos problemas governamentais da abertura. E “esse movimento [do jornal] veio acompanhado do exercício do jornalismo investigativo”, como disse a O Globo, sobre o centenário da Folha, o presidente da Associação Nacional de Jornais, Marcelo Rech. “A Folha não inventou o jornalismo investigativo, mas a denúncia da fraude na licitação da ferrovia Norte-Sul (...), em 1987, foi um divisor de águas.”

Deu-se uma corrida obcecada às revelações do jornalismo investigativo. O que só foi possível porque Frias acionou uma capacidade extraordinária de reduzir ressentimentos e obter o convencimento dos atingidos, nos interesses e no prestígio, pelas revelações da Folha. Aos atos traumáticos do jornalismo, foi comum seguir-se imediata operação de Frias, regada a simpatia natural e completada com a oferta de espaço à resposta do atingido —argumento definitivo da inexistência de qualquer propósito que não o jornalismo democrático. A Folha compunha uma identidade única.

Os olhares de mútuo entendimento entre mim e a Folha macularam-se no governo Fernando Henrique. Desde a campanha eleitoral, toda a “mídia” serviu a ele, não só ao Plano Real e sua eficácia anti-inflacionária. O senso crítico e a responsabilidade social e institucional reprimiram-se. Houve muita ilegalidade e muita imoralidade, mas o comprometimento político e partidário contrapôs-se, com mais força, à crítica necessária e ao jornalismo investigativo.

O governo Fernando Henrique foi um período tão nefasto para a “mídia” —não considerado o aspecto financeiro, de grandes benefícios— que essa influência vigora até hoje. Mostrou-se em todas as campanhas eleitorais desde aqueles anos 1990. Fez o grande espetáculo da barragem protetora às violências judiciais e políticas da Lava Jato de Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Mostra-se na complacência com a corrupção dos Aécios do PSDB. Já se entorta para a eleição presidencial de 2022.

Das crônicas de fundo político, o anteparo da Folha me levou a uma coluna de informações quentes e buriladas. Daí, isolado, passei à reação ao deletério fernandismo-peessedebismo. Por fim, terceirizado, a expor percepções perdidas ou relegadas no afundamento do país em crise total e mortal.

Quarenta anos que sinto sem divisões anuais, volume uniforme de tempo, nada que desejasse reviver. Os meus 40 carregam a satisfação de três contribuições aos 100 da Folha: logo aos primeiros textos, tratar o assunto militares como qualquer outro, contra o velho tabu; aproveitar os desequilíbrios de Gilmar Mendes e invadir a intocabilidade do Supremo, com mais um tabu que caía; e revelar, com a Norte-Sul e muitas outra fraudes desvendadas e anuladas, a corrupção que é a alma do “desenvolvimento” no Brasil.

A imprensa está em crise, mundo afora. A Folha merece corrigir seu caminho para vencer mais essa pressão.


Janio de Freitas: Habituados às delações traidoras, integrantes da Lava Jato se delataram em gravações

Próprios integrantes da Lava Jato se delataram em gravações

 “Presente da CIA.”

A frase começa por suscitar curiosidade com seu sentido dúbio e logo ascende, vertiginosa, à mais elevada das questões nacionais —a soberania. As três palavras vêm, e passaram quase despercebidas, entre as novas revelações das tramas ilícitas de Sergio Moro e Deltan Dallagnol, envoltas em abusos de poder e de antiética no grupo de procuradores.

Seca, emitida como um repente fugidio de saberes velados, a frase de Dallagnol celebrava a informação mais desejada: Sergio Moro determinara, no começo da noite daquele 5 de abril de 2018, primórdio da campanha para a Presidência, a prisão do candidato favorito Lula da Silva. Na véspera, o Supremo Tribunal Federal acovardou-se ante a ameaça golpista do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas. Por um voto de diferença, entregou a candidatura e, para não haver dúvida, o próprio Lula à milícia judicial de Curitiba.

A frase pode dizer presente “da CIA” porque destinado à agência do golpismo externo dos Estados Unidos. Ou “da CIA” porque vindo da articuladora do presente. Não importa o que agora Dallagnol diga. Não será crível. O mesmo sobre quem embalou e entregou o presente, Sergio Moro.

A dubiedade cede à certeza quando se trata do pré-requisito para que Dallagnol compusesse a frase. Em qualquer dos dois sentidos, a preliminar é a mesma: o coordenador da Lava Jato tinha conhecimento da relação entre pretensões da CIA na eleição brasileira e a exclusão da candidatura de Lula. Nem lhe ocorreu falar de candidatos favorecidos, nem sequer do êxito da ideia fixa que dividia com Moro e disseminara nos companheiros. Era a CIA na sua cabeça.

Não faz muito, foi noticiado o envolvimento de agentes do FBI com a Lava Jato de Curitiba. FBI como cobertura, mas, por certo, também outras agências (NSA, Tesouro, CIA, por exemplo). Um grupo de 17 desses agentes chegou à Lava Jato em outubro de 2015, acobertado por uma providência muito suspeita: Dallagnol escondeu sua presença, descumprindo a exigência legal de consultar a respeito, com antecedência, o Ministério da Justiça. Eram policiais e agentes estrangeiros agindo com a Lava Jato, não só sem autorização, mas sem conhecimento oficial. Violação da soberania, proporcionada por procuradores da República, servidores públicos. Caso de exoneração e processo criminal.

O sigilo é tão mais suspeito quanto era certo que o governo nada oporia, como não veio a opor. Há até uma delegação permanente do FBI no Brasil, trabalhando inclusive em assuntos internos como as investigações de rotas do tráfico. O motivo real do sigilo é desconhecido, e só pode ser comprometedor.

Também interessante é outra providência do coordenador. Logo depois da prisão de Lula, o obcecado Dallagnol viajou. Para os Estados Unidos. “Foi à Disney.” Logo naqueles dias tumultuosos, que lhe pareceram até exigir, como recomendou, medidas especiais de segurança dos integrantes da Lava Jato.

Talvez se tenha que esperar por livros estrangeiros para saber o que foi e como foi, de fato, a Lava Jato conduzida por Deltan Dallagnol e Sergio Moro, este, hoje, integrado a uma empresa americana que lida com procedimentos do submundo empresarial. Mas nem tudo continua sob sombra ou como dúvida.

Habituados às delações traidoras, os próprios integrantes da Lava Jato delataram-se em gravações. A procuradora Carolina Resende, por exemplo, não disfarçou o objetivo do grupo: “Precisamos atingir Lula na cabeça (prioridade número 1) pra nós da PGR”. Falou no melhor vernáculo miliciano.

UM SHOW

No mesmo dia em que era noticiado o próximo fim do estoque de vacinas, o general do Ministério militar da Saúde dizia no Senado que “a Pfizer oferece 2 milhões de vacinas ao Brasil, mas não vamos comprar. É muito pouco”.

O general Pazuello mostrou, o tempo todo, desfaçatez admirável. Um exemplo, dos mais inofensivos: “Vamos vacinar 50% da população vacinável no primeiro semestre e 100% até dezembro”. O Brasil vacinou apenas 1,3% da população e já está parando, não se sabe até quando.

Sabe-se, isto sim, que, se a variante do vírus, chamada no exterior de Brasil ou Amazonas, se espalhar aqui, ocorrerá uma calamidade. Americanos e europeus estão assustados com essa variante, mas aqui o governo e seus 26 militares do Ministério militar da Saúde nem sabem dessa nova criação da sua incúria.


Janio de Freitas: Eleição na Câmara e no Senado deixou Bolsonaro com centenas de dívidas

Não sendo vitória política, dívida é igual a cobrança, e cobrança em política é incerteza e instabilidade

Os que viram o fim da possibilidade de impeachment na entrega da Câmara a comando bolsonarista, ou antes estavam esperançosos demais, ou agora estão conclusivos demais. Apesar da aparência, o que Bolsonaro obteve não foi uma vitória política. Antes e mais, está para negócio bem-sucedido, como podem ser os negócios que operam à margem dos formalismos legais.

Mas não faltaram os formalismos próprios de certa clandestinidade. E deles resultou que Bolsonaro está com centenas de dívidas, é provável que até perto de umas três, a pagar aos deputados que venderam seus votos por cargos e verbas. Bolsonaro não pagará essa dívida, não tem como pagá-la a mais do que uma parte dos credores.

Não sendo vitória política, fruto de liderança e não de corrupção, dívida é igual a cobrança e cobrança em política é incerteza e instabilidade. Já no primeiro momento da nova presidência, isso se mostrou: Arthur Lira não conseguiu assegurar a presidência da Comissão de Constituição e Justiça, a principal, à extremista Bia Kicis, como exigido por Bolsonaro no acordo de ambos.

Ainda assim, o butim de Bolsonaro deu-lhe o que queria —a obstrução do novo presidente a pedidos de impeachment (os problemas criminais da família, citados por muitos, na verdade transitam fora do Congresso, em mãos investigatórias e judiciais).

Controlar a Câmara, porém, é insuficiente. O procurador-geral da República, Augusto Aras, por exemplo, decidiu por uma investigação preliminar sobre a influência de Bolsonaro e do general Pazuello na formação e no desenrolar da crise asfixiante no Amazonas e no Pará. Mais político do que outra coisa, Aras se disse movido por um requerimento do PC do B. Para não mencionar a numerosa manifestação de ex-procuradores, com presenças notáveis, cobrando-lhe uma denúncia contra a conduta de Bolsonaro na pandemia.

O objetivo por trás da medida de Aras é incerto. Tanto mais por seu recente e falso argumento, para escapulir da mesma medida, de que “ilícitos de agentes políticos são da competência do Legislativo”.

Se Aras pretende criar a conclusão de inexistência de práticas puníveis, para dar por infundados novos pedidos contra Bolsonaro, é esperável que passe ele a ter dificuldade de permanecer. Há ex e atuais procuradores decididos a agir, e sabem como fazê-lo. Em outra hipótese, a investigação desenvolve-se com honestidade —logo, impeachment à vista.

No Senado, estão reunidas mais do que as assinaturas suficientes para uma CPI sobre as condutas de Bolsonaro e Pazuello relativas à pandemia. O novo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, e Arthur Lira lançaram uma nota cínica com as alegadas prioridades do Congresso: “soluções e não problemas”.

Nada de CPI, pois. Pacheco parece não querer demora para desmoralizar-se. Mas não tem controle de nada no Senado, muito menos das disputas que exprimem maior animosidade ao governo.

Bolsonaro voltou à polêmica das armas, para dirigir as atenções gerais. É sinal, mais uma vez, de que está se sentindo em dificuldade. E que a corrupção, da qual participaram generais, não afastou a assombração do impeachment. Sua vitória na Câmara e no Senado foi real em números. Não, porém, na essência da situação política.

DISTORÇÕES

Um crime de 1958 volta à tona. Na sua versão pública, esteve sempre distante da realidade. O estupro e morte da jovem Aida Curi, agora objeto do pedido judicial de direito familiar ao esquecimento, foi brutal também na deformação dos fatos tanto pela investigação como no julgamento. A figura central do crime foi favorecida pela ação articulada de três pessoas, que usaram de suas influências respectivamente no Judiciário, na opinião pública e na polícia.

Um general, Adauto Esmeraldo, ex-diretor da Divisão de Ordem Política e Social do então Distrito Federal, com ligação estreita aos outros dois. David Nasser, que lançou pela revista O Cruzeiro “reportagens” escandalosas com uma versão sua do crime, dos autores e da jovem vítima. E, muito próximo de Nasser, o famoso Zica, dono de um grande bar na praça Mauá, zona portuária, que era centro de câmbio negro de moeda, contrabando, tóxicos e, ponto da marujada, prostituição.

Enteado do general, Cássio Murilo teve reduzido à irrelevância, e transferido a um companheiro, o seu papel no crime. Esse outro, de família sem influência, foi o condenado e cumpriu pena. Cássio Murilo, não muito depois, envolveu-se em mais um caso policial, e mais outro, sempre com o mesmo resultado, pelos mesmos meios.

O assassinato a tiros da socialite mineira Angela Diniz, por seu companheiro Doca Street, numa praia de Búzios em 1976, foi muito simplificado em sua versão pública e no processo mesmo. Do contrário, muitos nomes notórios da “sociedade” seriam expostos. Foi, de fato, um crime típico do machismo enciumado.

Angela Diniz, em tudo sedutora, sacudiu o meio intelectual e jornalístico mais destacado. Ibrahim Sued chegou a quebrar todo o apartamento que custara a ele mesmo. Mas jornalista só é notícia quando morre.

Os Bolsonaro, Queiroz, Aécio Neves, peessedebistas vários, Sergio Moro, Deltan Dalagnol, entre tantos, sabem como certas realidades são fracas no Brasil.


Janio de Freitas: Corrupção contra impeachment

A visão de que o impeachment não tem base pública peca por superficialidade

numerosa compra de parlamentares com verbas e cargos públicos, praticada por Jair Bolsonaro e sua tropa para conduzir as eleições internas de Câmara e Senado, viola a Constituição no princípio básico da independência entre os Poderes. Mas o objetivo maior desse ataque ao regime, definindo amanhã quem serão os novos presidentes da Câmara e do Senado, não é a propalada aprovação de reformas. É o bloqueio dos requerimentos de impeachment, os cerca de 65 relegados (até a sexta-feira em que escrevo) e os vindouros.

Bolsonaro, ao fim de reunião com deputados a meio da semana, ofereceu a confissão que, no entanto, não suscitou a defesa da Constituição pelos Poderes disso incumbidos. “Vamos, se Deus quiser, participar, influir na [eleição da] presidência da Câmara.” O que já ocorria e, no Senado, começava a acelerar-se. Nos dois plenários, a venalidade do atual MDB consagrou-o como “partido da bocona”. E o DEM de ACM Neto voltou por uma rachadura ao comércio de tóxicos sob a forma de votos. O DEM de Rodrigo Maia ainda respira, mas enfraquecido por várias facas nas costas.

A escolha de Bolsonaro para chefiar a sua guarda pessoal na Câmara foi por ele explicada com grande antecedência, quando se referiu ao que forma o centrão: “é a nata do que há de pior no Brasil”. Material que ele conhece. Arthur Lira (PP-AL) vem de lá, e com posição de liderança. Um trunfo para escapulir da Lei Maria da Penha e, se não de outras marias, por certo de outras leis.

Bolsonaro supõe comprar uma fortaleza inexpugnável anti-impeachment. É, de fato, um esquema bem nutrido a cifrões e carniça. Seu histórico pessoal no governo, porém, não é menos forte para servir aos críticos. E ainda haverá sua nova produção a cada dia, com os adendos dos pazuellos e demais sequazes.

Nenhum obstáculo deterá o embate entre o jogo pesado de Bolsonaro e a necessidade do impeachment. Só duas eventualidades poderiam impedi-lo: o golpe militar, difícil sem a improvável adesão de Marinha e Força Aérea, ou a retração dos conscientes da terrível situação nacional.

A visão de que o impeachment não tem base pública peca por superficialidade excessiva. As as evidências disponíveis já são bem nítidas. Não é à toa que 380 líderes religiosos —bispos, padres, pastores, bispos, frades de diferentes segmentos cristãos— juntam-se em eloquente pedido de impeachment. Hoje são ex-procuradores do alto escalão da Procuradoria-Geral da República que o fazem. Juristas já o fizeram. A Comissão Arns. Uma quantidade inumerável de artigos, comentários em TV, entrevistas qualificadas, pronunciamentos, diários todos e crescentes na presença e na ênfase.

As limitações pela Covid impedem passeatas eloquentes, mas grupos menores não se privam de sair com os seus “Fora, Bolsonaro”. E, para encurtar, há, sim, valiosa demonstração do eleitorado, por meio de índices colhidos pelo Datafolha. Há uma semana, 53% não aprovavam o impeachment, ao menos agora, e 42% o desejavam. Quase meio a meio. E, observação essencial, a opinião favorável a Bolsonaro é proveniente, em parte volumosa, do recebimento de auxílio pandemia e da expectativa de tê-lo outras vezes. É comum, entre os recebedores, atribuir a Bolsonaro o auxílio dado, na verdade, pelo Congresso.

Como complemento ainda mais revelador do ambiente, apenas nos 30 dias entre 20 de dezembro e 20 de janeiro a avaliação ótimo/bom de Bolsonaro caiu de 37% para 31%; a regular caiu de 29% para 26%; e a de ruim/péssimo subiu de 32% para 40%. Se isso nada demonstra, voltemos a dormir o sono do nosso pesadelo, e pronto.

O argumento de que a eventual substituição de Bolsonaro por Mourão nada mudaria até parece um desatino bolsonarista. Ser mais inteligente e preparado do que Bolsonaro não é vantagem, Mourão já exibiu os componentes goriliformes da sua formação no Exército, mas não é procedente, nem justo, descê-lo ao nível de Bolsonaro. Ao contrário, tudo indica ser o mais inteligente e preparado dos generais instalados na cúpula do governo. Não justifica esperança, mas não é provável que fizesse coisas como matar incautos com a recomendação de cloroquina.

Este país já de 220 mil mortes figura como o de pior desempenho antipandemia no mundo. Prova-se que o projeto autêntico de Bolsonaro é vitorioso. E por isso mesmo deve ser eliminado, para sobrevivência menos indigna do país e mais digna dos brasileiros.


Janio de Freitas: Carta branca para a morte

Governo sabota, à vista de todos, tudo o que pode combater a pandemia

O ser imoral que atende por Jair Bolsonaro forçou o jornalismo a deseducar e endurecer a linguagem em referências ao governo e, ainda mais incisiva, sobre o intitulado mas não presidente de fato.

Com os assassinatos por asfixia cometidos pela incúria e o deboche no Amazonas; mais de 200 mil mortos no país entregue à pandemia e à sabotagem, e a patifaria contra a vacinação vital, mesmo a grosseria realista é insuficiente.

Nem a liberação dos chamados palavrões, feita pela Folha e O Globo há algum tempo, soluciona o impasse. Muitos as consideramos aquém do jornalismo e os demais ficariam expostos a inconvenientes legais.

A asfixia é reconhecida como uma das mais penosas formas de morte, acréscimo ao nosso horror com as mortes em campos de concentração nazistas, nas câmaras de gás para condenações passadas nos Estados Unidos, como nas perversões criminosas. Hoje, é aqui que essa morte terrível ocorre, vitimando doentes que tiveram a infelicidade preliminar de nascer no Brasil.

Que considerações valeria tentar sobre esse fato? Seus responsáveis são conhecidos. Um presidente ilegítimo pela própria natureza e pela contribuição para a morte alheia. Um general patético e coautor, sobre os quais apenas vale dizer aqui, ainda, da lástima de que não terão o merecido: o julgamento por um sucedâneo do Tribunal de Nuremberg.

Bebês, 60 bebês, parturientes, operados, cancerosos, infartados, vítimas da pandemia, às centenas, milhares, desesperados pelo ar que os envolve e no entanto lhes falta. Todos diante da morte terrível, não pelo que os internou, mas de asfixia —por quê?

Guardião de 62 pedidos de impeachment de Bolsonaro, Rodrigo Maia enfim dá sua explicação para o não encaminhamento da questão ao exame das comissões específicas: "O processo do impeachment é o resultado da organização da sociedade. Como se organizou contra os presidentes Collor e Dilma".

Não houve uma pressão "que transbordasse para dentro do parlamento. Não foi avaliar ou deixar de avaliar impeachment, e sim compreender que a pandemia é a prioridade para todos nós".

O fácil e esperado. Mas os casos de Collor e Dilma nasceram no Congresso, não na sociedade. Foi a mobilização, lá, de parlamentares que gerou e fez transbordar para a sociedade a exigência do impeachment de Collor.

A "pedalada" contábil do governo Dilma nunca passou pela cabeça de ninguém, na sociedade e no Congresso. Foi o pretexto criado já a meio da conspiração lá urdida por Aécio Neves e Eduardo Cunha, símbolos da pior corrupção, a que corrói a democracia pela política. A mídia (sic) levou para a sociedade o golpismo transbordante no Congresso.

Se a prioridade fosse a pandemia, o governo não continuaria entregue aos que a negam e como governo sabotam, à vista de todo o país, tudo o que possa combatê-la. Para isso recorrendo, sem receio, a ações e omissões criminosas. Uma sucessão delas, incessante até hoje.

​Se nas mais de 200 mil mortes houvesse apenas uma induzida pelas pregações e sabotagens de Bolsonaro, já seria bastante para ser considerado criminoso homicida. Mas são muitos os interesses financeiros e políticos a protegê-lo. Na verdade, mais que isso, porque é carta branca que lhe tem sido assegurada, sobre 212 milhões de brasileiros, como sobre o presente e o futuro do país.


Janio de Freitas: Está claro. Maluco por maluco, o nosso é muito mais

Se não for enfrentado, um poder enlouquecido será cada vez mais autoritário

 “Tirar Donald Trump com um impeachment veloz é o único meio de talvez evitar o que seria seu maior feito: aproximar ainda mais os Estados Unidos de uma convulsão. Até a prevista posse de Joe Biden em 20 de janeiro, serão mais de dois meses concedidos a um presidente ensandecido, que acusa de roubo e corrupção o sistema eleitoral e avisa o país de que resistirá ‘até o fim’.”Aí estão a primeira e a terceira frases do artigo “Trump até o fim”, transmitido à Folha em 6 de novembro, ou três dias depois de encerrada a eleição americana, e publicado no domingo 8. Trump e Joe Bidenesperariam ainda um mês e sete dias para ver a vitória e a derrota respectivas.

Quatro anos antes, Trump vencera Hillary Clinton no Colégio Eleitoral, mas perdera na preferência (inútil) do eleitorado, iniciando aí as acusações de fraude que prometia provar, e nem estranhezas superficiais apontou. O desespero alucinado da contestação à vitória de Biden, explodindo já na apuração inicial, atualizava e exacerbava quatro anos de mentiras, acusações e ameaças sobre a eleição presidencial. Não precisaria de mais para justificar uma reação altiva das instituições feridas em sua moralidade e do ameaçado teor democrático do regime.

invasão do Congresso decorreu de longo processo de incitação generalizada por Trump contra a democracia de cara americana, até a culminância com o discurso à turba convocada —uma hora e dez de enfurecimento concluído com a ordem de rumo ao Congresso. Mas esse processo não avançou por si só. Nem foi o único a esfolar a democracia à americana e levar à invasão do Congresso.

Trump chegou à Casa Branca como portador de um currículo de trapaças e relações violentas, muitas já condensadas em processos, inclusive falência fraudulenta e volumosa sonegação de impostos —o crime dos crimes, por lá. O programa que propôs foi um amontoado de monstruosidades, incabíveis na índole apregoada da democracia americana: expulsão em massa de latino-americanos; um muro na fronteira sul, com a mesma finalidade do muro de Berlim, que os mexicanos seriam obrigados a pagar; retirada de várias entidades da cooperação internacional; acirramento da crise no Oriente Médio, guerra comercial com a China, e incontáveis outras agressões à incipiente civilização.

O partido e a mídia (sic) republicanos aceitaram muito bem a presença dessa figura delinquente, com seu sonho demente, em eventual presidência do país, dito “a maior democracia do mundo”. E todas as instituições, entidades civis e oficiais com o dever de defesa da democracia e da moralidade política, acompanhadas pelo Partido Democrata, fugiram de suas responsabilidades.

Trump cumpriu grande parte do que programara. O que não fez, substituiu por atitudes e decisões equivalentes em imoralidade e desumanidade. Como a separação de milhares de crianças e seus pais, recolhendo-as ao que nos próprios Estados Unidos foi comparado a campos de concentração. Prática típica do nazismo. Essa e as demais, no entanto, insuficientes para motivar a Justiça americana, o Congresso, a mídia, os setores influentes da riqueza, nem alguns deles, a levantar-se a todo risco para impedir a demência no poder, antes que se tornasse a demência do poder.

Donald Trump teve caminho livre para ser Donald Trump, mesmo quando despontou uma tentativa de reação democrata, sob a forma de impeachment derrotado.

Está claro: um poder enlouquecido de autoritarismo, ambição e desumanidade, se não for enfrentado e vencido cedo, será cada vez mais autoritário, ambicioso e desumano.

Está claro: por perturbadoras que sejam, medidas como interdição e impeachment serão sempre menos danosas à população, ao presente e ao futuro do país, do que a omissão fugitiva dos guardiães das conquistas democráticas, se agredidas ou postas em perigo —institucional ou social.

ESTÁ CLARO

Maluco por maluco, o nosso é muito mais.


Janio de Freitas: Traição de Bolsonaro e Pazuello se demonstra com população desguarnecida de vacinas e seringas

Presidente e ministro da saúde deixaram o tempo correr por decisão

O contraste entre a dedicação corajosa do pessoal da saúde e a sabotagem da turma de Bolsonaro à imunização geral reflete, e denuncia, a falta de caráter coletivo das classes e categorias que dominam o Brasil.

O alheamento dessa porção poderosa, historicamente ativa na fermentação dos golpes de Estado e, com menor necessidade, contra reduções das desigualdades, oferece o alicerce para uma traição que passa de presumida a demonstrada.

caso das seringas é eloquente. Há mais de oito meses, ainda com Henrique Mandetta como ministro, a compra de seringas e agulhas estava em questão, inclusive com referência ao Ministério da Economia sobre verbas.

A imobilidade do governo só se rompeu há duas semanas, com um pregão em que o Ministério militar da Saúde fixou e exigiu preços abaixo dos vigentes. Só conseguiu comprar 24 em cada 1.000 seringas que dizia querer.

Por mais retardadas que sejam as mentes de Bolsonaro e do general Pazuello, é impossível admitir que levassem tanto tempo para perceber necessidade assim óbvia e, apesar disso, tão advertida a ambos. Nada os moveu. Além de entupidos nos canais da inteligência e da audição, estavam cegos para a ação do mundo todo.

Bolsonaro, Pazuello e os militares do Exército ao redor de ambos deixaram o tempo correr por decisão. Foi recusa deliberada de adotar as providências simples como nas vacinações em que o Brasil e o SUS se tornaram exemplo planetário.

Nada, absolutamente nada pode explicar que Bolsonaro e Pazuello deixem a população desguarnecida de vacinas e seringas, a não ser a decisão de fazê-lo.

Dupla traição: aos deveres constitucionais das respectivas funções e à população. Logo, ao próprio país, pelas consequências sociais discriminatórias, econômicas e nas relações políticas/comerciais com o exterior.

Outros sinais indicam a permanência da decisão de protelar a compra de vacinas e seringas, por sucessivas trapaças, até onde isso seja possível.

Há pouco, Bolsonaro confirmou que “não dá bola” para a falta de imunizadores nem para o vergonhoso atraso brasileiro. A responsabilidade, na sua explicação, é dos “laboratórios que tinham que estar interessados em vender pra gente. Os vendedores é que tinham que vir atrás”.

Para comprar cloroquina, Bolsonaro em pessoa é que foi atrás de Trump e do indiano Modi.

A explicação imbeciloide recebeu seguimento do coronel Elcio Franco, secretário-executivo do Ministério militar da Saúde. Segundo ele, não houve autorização da Anvisa nem compra de vacina porque não pode “pegar a Pfizer pelo braço” para negociar.

As duas explicações, como de praxe, são falsas. A verdade é que o representante da Pfizer se apresentou no ministério, em tempo hábil para o fornecimento prioritário. Tomou chás de cadeira memoráveis.

E não conseguiu ser recebido pelo general Pazuello. Com justa irritação, em poucas palavras falou a repórteres do seu insucesso. Pazuello e seus camaradas não queriam saber de compra de vacina.

Para quem se iniciou como terrorista contra quartéis do Exército e, como Pazuello, diz que outro manda e ele obedece, ordem de sabotagem e traição são naturais. Tanto que recebem a complacência, ou cumplicidade, do segmento social com poder de influência.

O Bolsonaro que acumula mortes, por exemplo, tem o aplauso de 58% do empresariado —os graúdos.


Janio de Freitas: 'Feliz Ano-Novo', que perigo

Há um esboço de novidades saudáveis, esse gênero que passou de escasso a extinto

Na passagem do mal vivido para o vamos ver, o Brasil recomenda aos seus filhos muito bom senso ao desejar feliz Ano-Novo. Seja qual for sua sinceridade, convém que esses votos sejam certeiros na destinação. Não só para evitar desperdício. Os votos tradicionais, extensivos e indiscriminados, estão perigosos. Podem ser até suicidas.

Não, nada a ver com a Covid-19. Mais um ano feliz para os 37% que aprovam o governo resultaria da permanência de toda a alucinação e destrutividade, desprezo pela vida das pessoas e pelo futuro do país, predominantes nestes dois anos. Seria a continuidade de um ano que 63% dos brasileiros sentiram entre reprovável e sufocante. Sim, resgatar o Brasil e retomar o passo da democracia depende de que os felizes com os dois anos passados sejam os infelizes do próximo ano. E o sejam tanto e tão cedo quanto possível.

Nesse sentido, há um esboço de novidades saudáveis, esse gênero que passou de escasso a extinto. Uma delas é a incipiente aliança de MDB, DEM, PDT, Cidadania e PT com o objetivo de fazer o futuro presidente da Câmara.

Um feito devido, sobretudo, à hábil confiança conquistada por Rodrigo Maia e a uma reconsideração experimental do PT em vista das circunstâncias.

Há reações no petismo. O candidato próprio é uma ideia com longo predomínio no partido. No caso atual, como em tantas ocasiões, candidato à derrota, apenas para marcar posição e mobilizar em torno da militância. Nessa altura, não chegaria a uma coisa nem outra. Agora se trata de defender a democracia, por mais exígua que viesse sendo.Eduardo Cunha proporcionou uma exibição completa, como nunca se vira, do que é possível fazer com o domínio da presidência da Câmara: vai da mais variada corrupção ao golpe de Estado parlamentar.E nem o mínimo de lucidez permite duvidar do que a tropa do governo fará se conquistar também esse poder.

A novidade não pretende ser uma frente, com projeto comum mais longo. É uma aliança tática, portanto efêmera, para finalidade delimitada —o que a faz viável.

Outra novidade induzida pelas circunstâncias é a decisão de quatro ministros do Supremo de trabalhar durante suas férias de verão. A atitude de Lewandowski, Marco Aurélio, Moraes e Gilmar está interpretada, sem confirmação, à defesa da criação de juízes das garantias. Sozinho, Fux ficaria com a palavra decisiva sobre essa inovação importante, contra a qual já se manifestou.

Se isso moveu os quatro, não foi só isso. Cármen Lúcia não abandonará o processo que questiona a política antiambiental. E os processos criminais que assustam os Bolsonaros seguem, no STF, sem manobras salvadoras.

É pouco, por certo, diante das circunstâncias. Mas, em um país que passou dois anos sem ver nem sequer uma instituição, ou seus integrantes, mover-se contra o assalto à Constituição, à democracia e aos bens e interesses maiores do país, chega a parecer verdadeira a tão repetida sentença: “As instituições estão funcionando”.


Janio de Freitas: Os mortos de um e os mortos de outro

A última semana, como um início de cerco a Bolsonaro, deu-lhe os ares e os atos de desespero

 “Periculosidade social na condução do cargo”. Uma qualificação judicial que parece criada para resumir as razões de interdição de Bolsonaro.

Embora a expressão servisse ao ministro Og Fernandes (STJ) para afastar o secretário de Segurança da Bahia, ajusta-se com apego milimétrico a quem incentiva a população a riscos de morte ou sequelas graves, com a recusa à prevenção e ao tratamento ​científico.

Já em seu décimo mês, e sem qualquer reparo das instituições que, dizem, “estão funcionando”, a campanha de Bolsonaro e as medidas de seus militares da Saúde chegam ainda mais excitadas e perigosas ao seu momento crucial.

Quem observou os movimentos reativos que o caracterizam por certo notou que é também dele a vulgar elevação da agressividade quando o medo, a perda de confiança, o pânico mesmo, são suscitados pelas circunstâncias. A última semana, como um início de cerco a Bolsonaro, deu-lhe os ares e os atos de desespero.

confisco da vacina Sinovac-Butantan pelo governo federal, toda a vacinação concentrada no militarizado Ministério da Saúde, a exigência de responsabilização do vacinado por hipotéticos riscos foram alguns dos foguetes hipotéticos que mostravam um Bolsonaro se debatendo, aturdido. Nem a liberação total para armas importadas abafou a onda crítica.

revelação de participações da Abin na defesa de Flávio Bolsonaro (feita por Guilherme Amado na Época), apesar da rápida e óbvia negação da agência e do general Augusto Heleno, desarvorou Bolsonaro.

Estava em mais uma de suas fugas reeleitoreiras de Brasília, em desavergonhadas advertências de deformações ridículas em vacinados, quando o Supremo desmontou suas trapaças contra a liberdade de ação dos estados e municípios na pandemia.

E, boa cereja, a advogada Luciana Pires confirmou o recebimento de instruções da Abin para a defesa de Flávio, um truque para anulação do inquérito.

A explosão, incontível, não tardou. Na mesma quinta (17), Bolsonaro investe contra a imprensa, atiça as PMs contra jornalistas. Em fúria, faz os piores ataques aos irmãos donos de O Globo. Sem apontar indícios das acusações.

Se verdadeiras, por que não as expôs, para uma CPI, quando na Câmara representava os “militares anticorrupção”? Ou, presidente, não determinou o inquérito, como de seu dever? Nos dois casos, o silêncio é conivência criminosa. Sendo inverdadeiras as acusações, desta vez feitas a pessoas identificadas, sua entrada no Código Penal é pela mesma porta, a dos réus.

O gravíssimo uso da Abin, entidade do Estado, para proteger Flávio Bolsonaro e o desvio de dinheiro público, caiu em boas mãos, as da ministra Cármen Lúcia no Supremo. Troca de vantagens não haverá, medo não é provável.

Isso significa atos mais tresloucados de Bolsonaro. E um problema para e com os militares que, no governo, em verdade são a guarda pessoal de Bolsonaro.

Não só, porque o general Augusto Heleno, o Heleninho sempre protegido e bem situado, está comprometido dos pés à cabeça. A distância pode ser pequena, mas bastante para o autoritarismo militar sacudir a pouca poeira que resta.

A propósito, a menção ao general Heleno no artigo anterior o levou a vários adjetivos insultuosos a mim, concluindo por me dizer “pior como ser humano”. Essa expressão, ser humano, me lembrou uma curiosidade de muitos e que o general é o indicado para esclarecer: quantos seres humanos mortos pesam em suas costas, pela mortandade que ordenou sobre a miséria haitiana de Cité Soleil?

A ONU pediu ao governo brasileiro sua imediata retirada de lá, exclusão sem precedente nas tropas de paz, e a imprecisão sobre as mortes, dezenas ou centenas, perdura ainda.

Já no caso da Abin, pode-se desde logo esperar algumas respostas interessantes. E cáusticas.

O CERTO E O OUTRO

Diretor do Butantan, Dimas Covas venceu a divergência sobre o surgimento das vacinas. Militares da Anvisa só a previam para meado de 2021, até mesmo só no segundo semestre. Muitos pesquisadores e médicos. Dimas esteve só, ou quase, antevendo a vacina ainda para este ano.

Por fim, o Natal vem aí, sim, mas certifique-se. Na quinta, o general-ministro Pazuello disse três vezes, sempre com a segurança de suas estrelas, que “janeiro é daqui a 30 dias”. E depois, sobre a aplicação da vacina: “A data precisa é... janeiro”.

Sem dúvida, é um grande general, como disse Bolsonaro ao apresentá-lo.


Janio de Freitas: A conduta na balbúrdia da vacina basta para justificar impeachment de Bolsonaro

A conduta na balbúrdia da vacina basta para justificar impeachment

É impossível imaginar o que falta ainda para a única providência que salve vidas —quantas, senão muitos milhares?— da sanha mortífera de Jair Bolsonaro. Mas não é preciso imaginar a indecência da combinação de "elites" e políticos, para ver o que e quem concede liberdade homicida em troca de ganhos.

Pessoas com autoridade formal para o conceito que têm emitido, além de suas respeitabilidades, como o jurista Oscar Vilhena Vieira, o ex-ministro da Justiça e criminalista José Carlos Dias e o médico Celso Ferreira Ramos Filho, presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, entre outros altos quilates, têm qualificado com clareza e destemor a anti-ação de Bolsonaro e seus militares na mortalidade pandêmica. Crime, criminoso(s), organização familiar criminosa, homicidas, desumanidade —são algumas das palavras e expressões aplicadas ao que é feito contra a vida. Contra o próprio país, portanto.

A conduta da Presidência e de seus auxiliares na Saúde, na balbúrdia da vacina, basta para justificar o processo de interdição ou de impeachment, sem precisar dos anteriores crimes de responsabilidade e outros cometidos por Bolsonaro e pelo relapso general Eduardo Pazuello. Nem se sabe mais o número de requerimentos para processo de impeachment apresentados à Câmara. Sobre eles, Rodrigo Maia, presidente da casa, lançou uma sentença sucinta: "Não há agora exame de impeachment nem vai haver depois".

Nítido abuso de poder, nessa recusa a priori. É dever do presidente da Câmara o exame de tais requerimentos, daí resultando o envio justificado para arquivamento ou para discussão em comissões técnicas. Rodrigo Maia jamais explicou sua atitude. Daí se deduz que não lhe convém fazê-lo, com duas hipóteses preliminares: repele a possível entrega da Presidência ao vice Mourão ou considera a iniciativa inconveniente a eventual candidatura sua a presidente em 2022.

Seja como for, Rodrigo Maia macula sua condução da Câmara, bastante digna em outros aspectos, e se associa à continuidade do desmando igualado ao crime de índole medieval. Os constituintes construíram um percurso difícil e longo para o processo de impeachment, e que assim desestimulasse sua frequência. Mas deixaram com um só político o poder de consentir ou não na abertura do processo. Fácil via para o abuso do poder. E sem alternativa para o restante do país, mesmo na dupla calamidade de uma pandemia letal e um governo que a propaga.

Há denúncias protocolares da situação por entidades, não muitas, e por um número também baixo de pessoas tocadas, de algum modo, pelo senso de responsabilidade, a inquietação, a dor. Movimento para que os genocidas vocacionais sejam enfrentados, nenhum. As camadas sociais que continuam tranquilas com seus rendimentos são, entende-se, as que podem manipular os ânimos públicos. São também as que têm mais noção do que se passa, mas sem que isso atenue o seu egoísmo e desprezo pelas camadas abaixo. Assim, não há reação ao duplo ataque. Diante de todos os desastres que o corroem, o Brasil parece morto.

Mas nem com esse aspecto, ou essa realidade, precisaria descer tão baixo na imoralidade. Sobrassem alguns resquícios de decência nas classes que, a rigor, são o poder no Brasil, a descoberta de que a Abin, a abjeta Agência Nacional de Informação, foi mobilizada para ajudar Flávio Bolsonaro no processo criminal da "rachadinha" criaria alguma indignação. E levaria ao pronto afastamento de todos os beneficiários e comprometidos com esse crime contra a Constituição, as instituições, os trâmites da Justiça e a população em geral.

O general Augusto Heleno Pereira negou a revelação da revista Época. É um velho mentiroso. Isso está provado desde os anos 90, quando me escreveu uma carta negando sua suspeita ligação com Nicolau dos Santos Neto, o juiz da alta corrução no TRT paulista. Tive provas documentais para desmenti-lo. Estava então no Planalto de Fernando Henrique. Com Bolsonaro, além de desviar a Abin em comum com Alexandre Ramagem, que a dirige, Augusto Heleno já esteve em reuniões com os advogados de Flávio, que é agora quem o desmente.

Ramagem, por sua vez, é o delegado que Bolsonaro quis na direção da Polícia Federal, causando a saída de Sergio Moro do governo. Fica demonstrado, portanto, pelas figuras de Augusto Heleno e Ramagem no desvio de finalidade da Abin, que Bolsonaro tentou controlar a PF para usá-la na defesa de Flávio, de si mesmo, de Carlos, de Michelle, de Fabrício Queiroz e sua mulher Márcia e demais componentes do grupo.

Se nem essa corrupção institucional levar à retirada de toda a corja, será forçoso reconhecer um finalzinho. Não da pandemia, como disse Bolsonaro. Do Brasil, mesmo.


Janio de Freitas: Mais do que notícias da traição

Bolsonaro e seus generais seguiram o ídolo Trump na pandemia do coronavírus

Os mortos por Covid-19 nos Estados Unidos de Trump já equivalem aos americanos mortos em cinco guerras do Vietnã.

Os 58 mil do número oficial de americanos mortos na guerra iniciada pelo democrata John Kennedy multiplicam-se por cinco com a recusa de Donald Trump a combater a contaminação. A “America great again”, que o impulsionou à Casa Branca, a cada dia fica menor também em vidas.

Mas nada acontecerá a esse genocida, como nada aconteceu aos genocidas das bombas de napalm, com gelatinas em chamas pegajosas nos corpos, lançadas sobre as populações civis: um milhão de mortos, na estimativa autocomplacente dos americanos, e perto de três milhões para centros de estudo da guerra.

Jair Bolsonaro e seus generais seguiram o ídolo, com primarismo ainda maior. Até hoje inexiste um plano de orientação nacional, ficando os estados entregues às ações e inações, precariedades e perplexidades de cada um.

Repete-se o descaso deliberado quando o novo ataque do vírus alcança proporções alarmantes, seja ou não uma segunda onda, discussão ociosa.

Os jornais se deram um prêmio, pelo empenho noticioso apesar dos riscos e grandes dificuldades operacionais dos jornalistas sob a pandemia. Ali atrás, a expressão “empenho noticioso” não pôde acompanhar-se de alusão a outra responsabilidade que os leitores e espectadores tinham o direito de esperar. Aquela que consiste na função social de que os próprios órgãos de comunicação se declaram portadores.

O governo foi noticiado na traição às suas obrigações constitucionais, morais e humanitárias, mas não cobrado à altura, nem mesmo incomodado, para cumpri-las por necessidade vital da população.

Os brasileiros têm o direito e a premência de não estarem sujeitos à incompetência e ao servilismo de alguém que passa por ministro da Saúde ou por presidente. Mas que, na verdade, é uma ameaça idêntica ao vírus.

Sem transbordar do jornalismo, antes pelos meios legais de que dispõem, aos órgãos de comunicação cabia agir para compelir o governo a sanar sua traição aos deveres que, como princípio, o justificam.

A ferocidade do vírus e a traição do governo confraternizam-se outra vez. Noticiadas, só.

NAS SOMBRAS

perda crescente de representatividade de quase todos os partidos leva muito eleitor a decidir o voto sem se importar com a sigla. Isso reduz o poder sinalizador das eleições municipais com vista à presidencial. A abstenção muito alta, não só por efeito da pandemia, impôs redução ainda maior da capacidade sugestiva das eleições recentes.

Afora o óbvio, o que sobrou nos resultados para as análises não provocou extravagâncias nem captações com maior ossatura. Toda a situação é muito instável. A pandemia e sua vacina, as consequências possíveis da vitória de Biden, o esperado agravamento da situação econômica brasileira em 2021, a suspensão ou redução da ajuda em massa —qualquer desses fatores pode influir muito mais, e já em futuro próximo, do que as perspectivas atribuídas ao resultado eleitoral recente.

DE IGUAL VALOR

A empresa de que Sergio Moro se torna sócio e diretor, não por acaso, é americana. O que é um dado interessante. Essas chamadas consultorias internacionais são grandes repositórios de informação captada em empresas nacionais importantes, as quais têm a vida ligada às circunstâncias e propensões políticas, como de relações externas.

Associar-se a uma empresa internacional de porte exige, em condições normais de ambas as partes, investimento relevante. É um aspecto obscuro, mas atraente, na condição desse ex-juiz se ligar à defesa dos interesses das empreiteiras e empresário de que foi, a um só tempo, algoz negociador de benefícios.

Sergio Moro fez bem em deixar a magistratura. Como disse sua mulher, Rosangela Moro, quando soltava rojões para festejar “o mito”, “Sergio Moro e Jair Bolsonaro são uma coisa só”.