invasão do Capitólio

O Globo: Diplomatas criticam reação de Araújo à invasão do Capitólio

Chanceler de Bolsonaro condenou violência em ataque ao Congresso dos EUA, mas ecoou acusações infundadas de Trump sobre fraude eleitoral; nota de associação de ex e atuais integrantes do Itamaraty explicita mal-estar na diplomacia brasileira

Henrique Gomes Batista, O Globo

SÃO PAULO — A invasão do Capitólio por apoiadores do presidente Donald Trump, no dia 6, não gerou uma crise política apenas nos EUA: ela tem respingado também no Itamaraty. Dentro da diplomacia brasileira, é forte o movimento de críticas ao posicionamento do chanceler Ernesto Araújo no episódio, considerado por muitos ideológico e contraproducente para os interesses nacionais. A divulgação de um novo posicionamento da Associação e Sindicato dos Diplomatas Brasileiros (ADB), na sexta-feira, tornou público o mal-estar dentro da instituição. A percepção é que o posicionamento do chanceler pode prejudicar a relação entre Brasil e EUA no governo de Joe Biden.

— Este foi um movimento de repúdio ao ministro, feito por quem está ativo no Itamaraty. Grande parte das manifestações de ex-chanceleres ou de aposentados, no passado recente, era uma forma de suprir uma dificuldade dos diplomatas da ativa, que não podem se manifestar devido à hierarquia. Muitos têm medo de se expor. Mas a situação está chegando a um ponto inimaginável, não há precedentes na História — afirmou o embaixador e ex-chanceler Rubens Ricupero.

Ele afirma que nunca houve um ministro tão dissociado dos postulados básicos da diplomacia, o que gera essa manifestação inédita.

— Uma pessoa decente deveria apresentar sua renúncia diante disso — afirmou.

Procurados, nem o Itamaraty e nem a ADB quiseram se pronunciar sobre o caso. Mas fontes ligadas aos dois grupos, além de diversos outros diplomatas, afirmaram, sob sigilo, que o clima dentro da diplomacia brasileira nunca esteve tão ruim.

Um diplomata de carreira disse que “o clima está quente” e que “vários embaixadores aposentados declararam apoio à nota e aplaudiram a ADB reafirmar os princípios da diplomacia brasileira”. Segundo ele, a entidade externou uma posição velada entre os diplomatas da ativa, que não se pronunciam por causa da hierarquia. O diplomata indicou, também, a existência de um grupo “muito minoritário, mas estridente”, que se posiciona contra a manifestação da ADB em temas de política externa.PUBLICIDADE

A Associação — com 1.600 filiados, sendo que 75% destes diplomatas da ativa — de forma sutil, escreveu que “o exercício dos direitos à liberdade de expressão e à livre reunião e associação deve ocorrer de forma pacífica”, e que ele “não se confunde com tentativas de subversão da vontade soberana do eleitor, por meio da violência e da destruição do patrimônio público, como as vistas na sede do Legislativo norte-americano”. Tal posicionamento foi visto como uma afronta pelo grupo que defende a atuação de Ernesto Araújo.

Atuação ideológica

O chanceler de Jair Bolsonaro, apesar de afirmar que condenou a invasão, escreveu no Twitter que “há que distinguir ‘processo eleitoral’ e ‘democracia’” e que “grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral”, fazendo eco às alegações infundadas de fraude no processo eleitoral americano por Trump.

Fã público do presidente americano — que ele já afirmou ser um “salvador do Ocidente” — Araújo descumpriu uma regra da diplomacia brasileira, de não interferir em questões internas de outros países, e chegou a duvidar das investigações da invasão.

Para diplomatas ouvidos pelo GLOBO, este foi um estopim de insatisfações dentro do Itamaraty. Muitos afirmam que Araújo tem, cada vez mais, agido por questões ideológicas, e citam, como outro exemplo, a complicada relação com a Argentina desde a vitória de Alberto Fernández.PUBLICIDADE

Um diplomata ouvido pelo GLOBO lembrou que a Constituição estabelece que a diplomacia brasileira deve seguir princípios como independência nacional, autodeterminação dos povos e não intervenção. Para ele, “isso tem se perdido desde que o atual governo chegou ao poder”, e ele lembrou que a atual gestão tem até censurado livros e determinado apenas uma corrente de pensamento da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), do Itamaraty.

Sem fiscalização isenta

Além de repercutir na imagem do Itamaraty, que segundo Ricupero “vai levar mais que uma troca de gestão para ser recuperada”, estes posicionamentos com bases ideológicas, segundo diplomatas e especialistas, afetam a relação do Brasil com os EUA.

— Converso com alguns membros da equipe de transição de Joe Biden, e Araújo tem uma péssima reputação entre os democratas. Há uma percepção em Washington de que não há como evitar uma ruptura na relação bilateral se Ernesto permanecer no cargo — afirmou Oliver Stuenkel, da FGV. —Não se trata do presidente americano pedindo a troca de um chanceler, mas de um chanceler que não reconhece a legitimidade da eleição de Joe Biden.

Para diplomatas, o Congresso não tem fiscalizado a diplomacia com isenção. O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente à frente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, passou a usar uma foto de Trump em sua conta no Twitter. (Colaborou Camila Zarur)


Fernando Dantas: E se acontecer no Brasil?

Para cientista político Octavio Amorim, invasão do Capitólio reforça que centrodireita e militares têm papel fundamental para evitar que Bolsonaro atente contra a democracia nos próximos dois anos. Mas para derrotar Bolsonaro nas urnas, o dever de casa principal está com a esquerda

A invasão ontem do Capitólio por uma horda de extremistas, atiçada pelo presidente derrotado Donald Trump, trouxe de imediato o temor de que fatos semelhantes, ou até piores, possam ocorrer no Brasil em 2022, caso de Bolsonaro seja batido nas urnas.

Após o tumulto em Washington DC, Bolsonaro voltou a lançar suspeitas completamente infundadas sobre a eleição nos Estados Unidos e sobre o sistema eleitoral brasileiro.

Para o cientista político Octavio Amorim Neto, da Ebape-FGV, o risco é real: “Se uma democracia tradicional e antiga com os Estados Unidos podem passar por isso, imagina a nossa no Brasil, que tem 35 anos – está claro que bravatas presidenciais podem ter consequências radicais e deletérias para a democracia”.

Por outro lado, ele nota, “a ideia da necessidade de defender a democracia do extremismo de extrema-direita se fortalece no mundo inteiro com a invasão do Capitólio”.

Amorim cita editoriais da The Economist e do Financial Times, bíblias do establishment global, de ontem para hoje, com esse teor.

Mesmo aliados importantes de Trump, como o seu vice, Mike Pence, e o líder no Senado, Mitch McConnell, se distanciaram como puderam do episódio de ontem, condenando fortemente os invasores e contribuindo para que a certificação de Joe Biden como próximo presidente dos Estados Unidos ocorresse hoje com tranquilidade no Congresso.

O caos de ontem fez com que vários membros republicanos do Congresso que sinalizavam votar contra os resultados da eleição no Arizona e na Pennsylvania mudassem de posição. Ao final, a vitória de Biden foi confirmada por maciça maioria.

Amorim Neto lembra também da carta aberta, do início de janeiro, exortando as forças armadas norte-americanas a não se envolverem nas tentativas desesperadas de Trump de invalidar a eleição. O documento foi assinado pelos dez ex-secretários de Defesa ainda vivos, incluindo dois que serviram ao próprio Trump. A iniciativa foi coordenada pelo arquiconservador Dick Cheney, que serviu ao presidente George W. Bush.

No Brasil, essa ficha global que caiu, da necessidade de a direita que se pretende decente desembarcar definitivamente do trem do populismo de extrema-direita, pode ter efeito até na eleição para presidência da Câmara, na visão do analista.

O temor do risco à democracia representado pelo extremismo de direita poderia trazer mais alguns votos de centro-direita para a candidatura do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), que disputa a presidência da Câmara com Arthur Lira (PP-AL), apoiado por Bolsonaro.

“Os políticos têm que analisar seriamente esse tipo de decisão, é hora de deixar de lado o cálculo individualista e a política do varejo, e pensar de forma mais ampla em qual candidatura fortalece o regime democrático no Brasil”, diz o cientista político.

Segundo Amorim Neto, “a bola está com a centro-direita e o Exército”, em termos de conter as ações antidemocráticas de Bolsonaro nos dois anos que lhe restam de governo. Na sua visão, são esses dois atores que mais têm o poder de subtrair do atual presidente a capacidade da atentar contra a democracia.

O cientista político diz que é difícil traçar a linha entre direita e centro-direita hoje em dia, com atores políticos em constante mudança (como João Doria). Mas a frase acima, sobre o papel da centro-direita, abarca, na sua definição, todos aqueles do centro à direita que não fazem parte do grupo extremista que apoia Bolsonaro de forma incondicional.

O papel do Exército também é fundamental. Amorim Neto observa que, em entrevista hoje à BBC sobre a invasão do Capitólio, o célebre cientista político norte-americano Steve Levitsky, autor do recente bestseller “Como as Democracias Morrem”, declarou que o “autogolpe” de Trump só fracassou por não ter apoio dos militares.

Um complicador adicional no caso brasileiro – e também americano, de certa forma – é o cultivo constante que Bolsonaro faz das forças policiais, especialmente da PM, a cujas formaturas o presidente comparece o mais que pode.

Embora em última instância o poder armado superior esteja com os militares, a capacidade de forças policiais, mobilizadas em favor de um presidente, de facilitar e até alimentar movimentos revoltosos não deve ser subestimada. Há uma especulação, inclusive, de que certa leniência da polícia diante dos invasores do Congresso americano poderia estar ligada à simpatia por Trump de grande número dos policiais envolvidos.

Amorim Neto nota que, durante a campanha presidencial, uma associação policial dos Estados Unidos chegou a apoiar Trump, o que deveria ser um ato impensável, a seu ver.

Mas o cientista político acrescenta que, se, em termos de refrear as ações autoritárias de Bolsonaro até 2022, “a bola está com a centro-direita e os militares”, em termos de derrotar o atual presidente na próxima eleição, “a bola está com a esquerda”.

Para ele, “se a esquerda continuar no seu gueto, lançar um candidato como Lula e fazer uma campanha radical, estará ajudando Bolsonaro a se reeleger, caso o presidente sobreviva ao dificílimo ano de 2021 e chegue competitivo a 2022”.

Segundo Amorim Neto, “a esquerda precisa ter sabedoria, se unir, e pensar seriamente em apoiar um candidato de centro em 2022”.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 7/1/2021, quinta-feira.