intervenção federal

Elio Gaspari: Marielle, Manuel Fiel e Riocentro

Execução é recado da bandidagem a Braga Netto. Só as investigações poderão dizer quem armou os assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Pedro Gomes. O crime aconteceu 26 dias depois do “lance de mestre” de Michel Temer, decretando intervenção federal na Segurança do Rio de Janeiro.

Um dia antes de sua execução, Marielle denunciou o assassinato de Matheus Melo, um jovem trabalhador que saíra da igreja, deixara a namorada em casa e ia para o Jacarezinho, onde vivia: “Chega de matarem a nossa gente”, escreveu Marielle. A família de Matheus acusa uma patrulha da PM de ter atirado nele.

A execução da vereadora revela que os criminosos mandaram um sinal ao governo e à sociedade, demarcando a extensão de seu poder: Aqui a gente manda e mata. Quando delinquentes se julgam protegidos pela anarquia e, sobretudo, pela desorientação e derretimento da autoridade, esse é um desdobramento natural da crise.

O presidente Michel Temer preferiu o “lance de mestre” da intervenção federal na Segurança do Rio a uma natural intervenção ampla e desmilitarizada no governo de Luiz Fernando Pezão e do PMDB. Dois episódios de demarcação de território ocorridos com chefes militares merecem ser lembrados.

1976: GEISEL MOSTRA QUEM MANDA
Na noite de 18 de janeiro de 1976, na hora do “Fantástico”, o governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins, telefonou para o presidente Ernesto Geisel:

— Desculpe incomodá-lo. Morreu outro preso no DOI. Outro enforcamento.

— Paulo, não tome providência nenhuma. Você terá notícias minhas.

Morrera no DOI do II Exército o metalúrgico Manuel Fiel Filho. Três meses antes, haviam matado o jornalista Vladimir Herzog no mesmo DOI.

Enquanto viveu, o general Geisel esteve convencido de que a morte de Fiel foi um desafio direto à sua autoridade. Em pouco tempo ele decidiu demitir o comandante da guarnição de São Paulo. Passou a noite sem dormir, pensando nas consequências. Não consultou ninguém e, na manhã seguinte, o general estava fora do comando.

Se alguém queria demarcar autoridade, a linha estava traçada.

1981: FIGUEIREDO MOSTRA QUE NÃO MANDA
Na manhã de 1º de maio de 1981 o presidente João Batista Figueiredo soube que explodira uma bomba no Riocentro, matando o sargento que a carregava e ferindo um capitão do DOI do Rio, que estava ao seu lado. Na primeira versão, teria sido coisa da esquerda, e Figueiredo rejubilou-se. Mais tarde, veio a correção: “Há indícios de que foi gente do nosso lado.”

(O atentado pretendia demarcar território, colocando no seu lugar o coronel que chefiava a seção de informações da guarnição local e prometera reprimir explosões de bancas de jornais, uma delas comprovadamente saída do DOI.)

Figueiredo era um cavalariano cinematográfico, desbocado e impulsivo. O leão miou e, naquele dia, começou uma operação abafa que persiste até hoje, pois o capitão que estava no carro chegou a coronel e jamais foi repreendido.

Os autores do atentado demarcaram o território da autoridade, corroeram a Presidência de Figueiredo e o regime. Ele se acabaria quatro anos depois, com o general deixando o palácio por uma porta lateral.

2018, QUEM MANDA?
As execuções de Marielle e Anderson foram uma mensagem da bandidagem pública e privada ao general Braga Netto. Foi serviço de profissionais, tanto pela escolha do alvo como pela própria ação. A ideia de que há “direitos humanos”, mas não podem existir “direitos dos manos” é apenas um trocadilho vulgar. Para os criminosos privados e públicos esse é o melhor dos mundos. Quando o dilema é ter medo do bandido ou da polícia, não faz diferença temer a um ou a outra.

A intervenção no Rio começou com o exercício demófobo da ameaça de buscas, apreensões e capturas coletivas, seguida pelas retroescavadeiras da prefeitura destruindo quiosques na Vila Kennedy. Brasília continuou produzindo planos e parolagens. Havia até um evento programado para comemorar o primeiro aniversário do “lance de mestre.” Contra a bandidagem do estado, até agora nada.

Nessas cabeças, uma negra que cresceu em favela do Rio defendendo mulheres pobres e homossexuais é apenas mais uma. Assim como um seringueiro do Acre era apenas mais um. E assim, mataram Chico Mendes.

 


Luiz Carlos Azedo: O drible a mais

A intervenção federal no Rio de Janeiro agastou ainda mais as relações entre o presidente Michel Temer e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que não digeriu até hoje o fato de ter sido atropelado pela decisão, que somente aceitou a pedido do governador Luiz Fernando Pezão. Apesar de ter viabilizado a aprovação da intervenção na Casa, numa votação que entrou pela madrugada, Maia ontem abriu as baterias contra o pacote de 15 medidas econômicas que o governo pretende aprovar, entre as quais a autonomia do Banco Central: “Não li, nem vou ler”.

“Foi um equívoco, foi desrespeito ao parlamento, já que os projetos já estão aqui e nós vamos pautar aquilo que nós entendermos como relevante, no nosso tempo”, afirmou Maia. “Este anúncio precipitado de ontem (segunda), sem um debate mais profundo, eu acho que não colabora e essa não será a pauta da Câmara. O governo não precisa ficar apresentando pautas de projetos que já estão aqui. Isso é um café velho e frio que não atende à sociedade”, garantiu.

Vamos aos bastidores: Maia estava numa posição confortável em relação à política fluminense, cada vez mais poderoso em razão do colapso do governo de Luiz Fernando Pezão e do fortalecimento do ex-prefeito carioca César Maia, seu pai, como alternativa ao Palácio Guanabara. A intervenção virou o jogo na política estadual, devido ao crescente protagonismo do secretário-geral da Presidência, Moreira Franco, ex-governador do estado, que tenta resgatar o MDB fluminense da crise em que mergulhou depois da Operação Lava-Jato. Os altos índices de aprovação da intervenção federal na segurança pública do estado pela opinião pública praticamente anularam sua capacidade de resistência à medida.

O governo, porém, deu um drible a mais ao anunciar o pacote de medidas econômicas sem consulta a Maia. Uma coisa foi a aprovação da intervenção, com apoio maciço em plenário, outra é pautar a agenda da Câmara sem negociar com seu presidente. Não tem a menor chance de dar certo. Por duas razões: Maia tem o poder de pautar ou não as matérias que vão à discussão em plenário, a não ser que sejam adotadas por medida provisória, o que agravaria o estresse; segundo, o presidente da Câmara exerce uma liderança muito compartilhada com o colégio de líderes, onde a negociação pressupõe a formação de maioria antes de qualquer matéria ir a plenário para ser votada.

Já havia uma tensão entre o presidente da Câmara e o Palácio do Planalto na questão da reforma da Previdência. O ministro Carlos Marun, da Secretaria de Governo, responsável pela articulação política, pressionava Maia para pôr a PEC em votação mesmo sem garantia de que o governo teria maioria para aprová-la. Maia refugava, não queria queimar a reforma numa derrota anunciada. De uma hora para a outra, o governo deu um cavalo de pau e enterrou a bandeira da nova Previdência. Maia ficou com um mico na mão.

Do outro lado do Congresso, o presidente do Senado, Eunício de Oliveira (MDB-CE), que também pautou para votação a intervenção no Rio de Janeiro, endossou as críticas de Maia. Afirmou que a pauta do Congresso é definida pelo Congresso e não pelo Palácio do Planalto. Eunício reagiu a declarações do líder do governo, Romero Jucá (MDB-RR), a favor da aprovação da agenda econômica de Temer pelo Congresso.

Presas
A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu prisão domiciliar a presas gestantes sem condenação ou que forem mães de filhos com até 12 anos. Serão beneficiadas 4,5 mil detentas, cerca de 10% da população carcerária feminina. Cada tribunal terá 60 dias para implementar a medida, que valerá também para mães que tiverem crianças com deficiência. Relator da ação, o ministro Ricardo Lewandowski foi o primeiro a votar favoravelmente ao pedido.

Destacou que apenas 34% das prisões femininas contam com dormitório adequado para gestantes, só 32% dispõem de berçário somente 5% dispõem de creche. “Partos em solitárias sem nenhuma assistência médica ou com a parturiente algemada ou, ainda, sem a comunicação e presença de familiares. A isso se soma a completa ausência de cuidado pré-natal”, destacou o ministro.

O relator foi acompanhado por Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Edson Fachin divergiu parcialmente, para que fosse feita análise mais rigorosa da situação das mulheres presas, considerando apenas o interesse da criança. A decisão se deu com base em um habeas corpus coletivo, o que reforça a tendência no Supremo Tribunal Federal (STF) de aceitação de mandados de busca e apreensão coletivos, como pleiteia o governo para combater o tráfico de drogas no Rio de Janeiro.