inflação

Vinicius Torres Freire: Óleo de soja e arroz aumentaram muito mais que diesel. Bolsonaro vai intervir?

Óleo de soja e arroz aumentaram muito mais que diesel. Bolsonaro vai intervir?

Em um ano, o óleo de soja ficou 96% mais caro. O óleo diesel, 2% mais barato, segundo o IPCA de janeiro. Nas contas da Agência Nacional do Petróleo, o diesel encareceu 2% de fevereiro de 2020 para cá.

Talvez um ano apenas não conte bem a história da carestia do combustível. Considere-se então o que aconteceu desde outubro de 2016, quando a Petrobras passou a reajustar seus preços com mais frequência, com base na cotação internacional. O óleo de soja ficou 123% mais caro. O óleo diesel, 23%. O arroz, 67%. O quilo de alcatra, 41%.

O problema não seria apenas o preço alto do combustível, se diz por aí, mas sua variação excessiva. No entanto, os preços do diesel ou da gasolina são menos voláteis do que os de arroz, feijão, alcatra ou óleo de soja, pelo menos desde 2016.

Jair Bolsonaro vai intervir nos preços da comida, como ameaça fazer com a Petrobras? Mais difícil. Não existe uma Vacabrás ou uma Arroz Pátria Amada S.A. Por falar nisso, assim como ferro e petróleo, grãos e carnes têm preços definidos no mercado mundial.

Não há Vacabrás nem tampouco grande grupo organizado de protesto daqueles que não podem comprar arroz. O povo definha quieto, ainda mais em tempo de esquerda semimorta. Mas existem movimentos caminhoneiros e empresariais fortes o bastante para quase levar o Brasil ao colapso rodoviário. Alguns são falanges de Bolsonaro, animador do caminhonaço de 2018.

Obrigar a Petrobras a cobrar abaixo do preço de mercado não apenas diminuiria seu faturamento, os dividendos que paga ao governo, elevaria seu custo de financiamento e limitaria seu crescimento. Se a crise ficar barata, a Petrobras vai perder dezenas de bilhões de reais (centena?).

Por ora mais relevante, a mera percepção de que o governo possa vir a meter a pata em empresas tende a elevar custos de financiamento (juros mais altos, inclusive para o governo) e limitar investimentos na economia em geral.

Bolsonaro partiu para a demagogia econômica explícita. Abriu mais um buraco no Orçamento ao isentar gás e diesel de impostos, embora ainda gaste menos do que Michel Temer no pagamento desse suborno-resgate. Cometerá crime fiscal caso não corte outro gasto ou não aumente algum imposto para compensar.

A história de que o governo “responsável” procurava compensações para a nova despesa com o auxílio emergencial se torna assim mais ridícula. O auxílio está à beira de passar no Congresso com compensações apenas para inglês ver, mais uma promessa como o trilhão das privatizações de Nostradamus de Paulo Guedes (acontecerão em algum momento dos séculos por vir). Por falar nisso, quem vai comprar refinaria da Petrobras quando o governo mete a mão nos preços?

Sim, esta análise tem a perspectiva limitada da gerência elementar de uma economia de mercado e seus requisitos mínimos de funcionamento. É o máximo que se pode esperar sob o governo militar bolsonariano.

Como um projeto de tirano aloprando em um bunker ou porão, Bolsonaro não dá a mínima para o risco de arruinar o país: ele é capaz de tudo, e incapaz também. Corre agora risco maior de implodir seu próprio governo e prestígio, popularidade que poderia manter à tona vacinando em massa e obedecendo ao menos à mediocridade habitual de sua equipe econômica. Mas, se um quarto de milhão de cadáveres e outras ruínas não o derrubaram, por que não dobrar a aposta na monstruosidade ignorante e tocar o golpe por outras vias?

Donos do dinheiro grosso vão reagir ou continuam achando que Bolsonaro ainda está no preço?


Benito Salomão: Crescer, Estabilizar, Preservar e Distribuir

Este é o meu primeiro artigo de 2021 e também o meu primeiro artigo desta década que se inicia agora. Para mim simbólico porque em 2020 completei 10 anos desde meu primeiro artigo de jornal publicado em 22 de setembro de 2010. Ao contrário do que imaginava quando eu me lancei neste desafio de dialogar com o público sobre os grandes temas nacionais, os desafios do Brasil se ampliaram em muito. Na passagem da década de 2000 para a de 2010, o Brasil não apresentava os agudos problemas fiscais, ou a exacerbação das desigualdades e era a 6ª economia mundial. Era ainda considerado uma potencia ambiental e uma nação capaz de influenciar decisões internacionais como as missões de pacificação no Haiti e as negociações sobre o programa nuclear do Irã.

Dez anos se passaram e o Brasil é hoje a 12ª economia mundial e tem a difícil missão de reverter a trajetória de exacerbação das desigualdades, da pobreza, da miséria e da fome em um contexto de estabilização fiscal. As soluções perpassam por uma conciliação política aparentemente distante de se alcançar sobre a infeliz liderança de Jair Bolsonaro.

O título deste artigo resume bem os desafios a serem enfrentados nesta década que se inicia.

Crescer porque ao longo da década passada a taxa média de crescimento da economia brasileira foi próxima de 0%, o que indica um per capita negativo. O Brasil tem hoje um PIB per capta de igual magnitude ao que tinha em 2007, ou seja, todos (ou quase todos) se tornaram mais pobres. A melhor literatura que estuda o desempenho de longo prazo das economias atribui esta capacidade ao formato institucional. As instituições criam incentivos e os incentivos estimulam os agentes econômicos a pouparem e, portanto, acumularem capital (físico ou humano) e o processo de acumulação de capital dirige, ao lado dos aumentos de produtividade, o desempenho das economias. Para que o país volte a crescer é preciso que volte a poupar e para tanto é preciso de instituições estáveis que deem previsibilidade e segurança às relações econômicas.

Estabilizar porque, antes de mais nada, as instabilidades macroeconômicas desestimulam a poupança e o investimento. O Brasil tinha uma dívida pública de 51% do PIB em dezembro de 2013, em 2020 este endividamento segue para 92% do PIB. Esta trajetória de dívida pública que praticamente dobrou em 7 anos tornam as incertezas quanto a solvência do governo ainda mais fortes. Não se pode vislumbrar um futuro de médio prazo que não contemple volatilidade na taxa de câmbio; pressões inflacionárias; elevações da carga tributária e também da taxa de juros.

Preservar devido às características do capitalismo do século XXI. Por várias razões. Primeiro, os setores industriais de grande produtividade e de fronteira científica são, por definição, sustentáveis. Isto porque são setores relacionados a energias renováveis (baixo carbono, telecomunicações, inteligência artificial, nanotecnologia que dão escala à produção, poupando recursos. Investir em um padrão de desenvolvimento poluente é insistir em uma economia de segunda revolução industrial, de baixa produtividade e alto custo. Se o Brasil não for capaz de abandonar o padrão tradicional de crescimento e adentrar na quarta revolução industrial, conciliando isto com um padrão ambiental rigoroso, não será possível recuperar o crescimento perdido.

Por fim distribuir. Em uma análise retroativa de longo prazo, o padrão de desenvolvimento do milagre econômico (anos 1970) foi calcado no crescimento com concentração de renda. A partir da promulgação da Constituição dita cidadã, o padrão foi deslocado para a distribuição sem crescimento. O desafio desta década é crescer e distribuir simultaneamente. A distribuição aqui precisa assumir uma conotação mais ampla do que a simples mitigação da fome e da pobreza. Para tanto é preciso mais do que políticas de transferência de renda aos moldes do Bolsa Família ou do Auxílio Emergencial, é preciso educar centenas de milhares de brasileiros. É preciso dar a eles a possiblidade de um futuro melhor do presente, com melhores empregos, melhores condições de vida o que só será possível investindo pesadamente em educação de base.

Mas como distribuir em um cenário de insuficiência de recursos públicos por esgarçamento da situação fiscal do país? É preciso rever privilégios, sobre isto, retomo em artigo futuro. No momento desejo a todos um feliz ano novo e uma década nova mais promissora do que a que vivemos até aqui.

*Benito Salomão é economista.


Armando Castelar Pinheiro: Economia das narrativas

Três narrativas em 2021: desaceleração com o fim do auxílio, retomada com vacinação e choque temporário da inflação

De acordo com o dicionário Merriam-Webster, uma narrativa é “uma forma de apresentar ou compreender uma situação ou série de eventos que reflita e promova um particular ponto de vista ou um conjunto de valores específicos”. Essa definição está no instigante livro de Robert Shiller, “Narrative Economics” (Princeton University Press, 2019). Como indica o título, o livro é uma grande análise das narrativas econômicas, que expande a palestra proferida no encontro de 2017 da Associação Americana de Economia (bit.ly/38mq5SX). Nesta, o autor observa que o “cérebro humano tem sido sempre altamente sintonizado com narrativas, factuais ou não, para justificar ações em curso, mesmo ações tão básicas como gastos de consumo e investimentos. Histórias motivam e conectam atividades a valores e necessidades profundamente enraizadas”.

O objetivo de Shiller é construir um referencial teórico sobre como as narrativas influenciam o comportamento dos agentes econômicos e como isso, por sua vez, determina o que ocorre na economia. A obra que se encaixa, portanto, no campo mais amplo da Economia Comportamental, a cujos conceitos Shiller recorre em diferentes partes do livro. É o caso, por exemplo, do conceito de “framing”, que enfatiza a influência da forma como as coisas são apresentadas (“framed”) nas decisões tomadas pelos agentes econômicos.

De fato, uma narrativa nada mais é que uma forma de apresentar e organizar as informações que circulam em certa comunidade, sejam elas verdadeiras ou não. Ou, como define o próprio Shiller, “narrativas são construções humanas que são misturas de fato, emoção, interesse humano, e outros detalhes estranhos que formam uma impressão na mente humana”.

Ao contrário do que ocorre nos trabalhos mais tradicionais de Economia Comportamental, porém, o foco de Shiller é a macroeconomia e, em especial, os ciclos econômicos. Assim, como ele coloca, “uma proposição chave deste livro é que as flutuações econômicas são substancialmente impulsionadas pelo contágio de variantes simplificadas e facilmente transmissíveis de narrativas econômicas. (...) Como com as epidemias de doenças, nem todos ficam infectados. (...) Mas em uma epidemia histórica, para a maioria das pessoas a narrativa será fundamental para suas razões para fazer, ou não fazer, coisas que afetaram a economia”.

Assim, a estrutura de análise utilizada no livro é: surge uma narrativa econômica que organiza ou confirma ideias e sentimentos ou paixões que flutuam na sociedade. Essa narrativa em algum momento é expressa publicamente por uma celebridade e isso gera um surto semelhante ao de uma epidemia, fazendo a narrativa se espalhar e influir no comportamento de um número grande o suficiente de pessoas para afetar o que ocorre na economia.

O livro ilustra esse argumento com diferentes exemplos, incluindo bolhas e recessões. Mas a proposta central não é tanto identificar e analisar narrativas que ajudem a entender fenômenos históricos, mas sim propor que uma metodologia como essa ajudaria a prever o que vai ocorrer à frente. Ou seja, que ao pensar o futuro não devemos olhar apenas preços e restrições econômicas, mas também as narrativas que podem vir a moldar o comportamento dos agentes econômicos.

Pensando no Brasil, por exemplo, eu enxergo três narrativas que podem exercer esse tipo de influência em 2021. Uma é que o fim do Auxílio Emergencial levará a uma significativa desaceleração da economia. Essa narrativa já parece influenciar a confiança de consumidores e empresas, o que pode levar a uma profecia auto-realizável, se desencorajar compras e investimentos. O Congresso, porém, parou de discutir a extensão do Auxílio, o que diminuiu a frequência com que o tema aparece na imprensa e isso vai enfraquecer a propagação dessa narrativa.

Uma segunda narrativa, na direção contrária, é a da recuperação econômica que virá com a vacinação e o controle da pandemia. Esta ainda é, por ora, uma narrativa do mercado financeiro, mas ela deve se disseminar conforme a primavera chegue no Hemisfério Norte. Veremos muitas histórias de consumo e, penso, uma narrativa se desenvolverá de que é justificado “exagerar” no consumo no pós pandemia, em especial de serviços.

A terceira narrativa diz respeito à alta dos preços. O Banco Central (BC) tomou a dianteira, argumentando que os 6% de inflação esperados para meados de 2021 são um choque temporário. Esse é um exemplo de algo que Shiller não enfatiza, mas que é uma conclusão direta de sua análise: que a construção e disseminação de narrativas é uma forma como o governo pode fazer política pública. Ainda que pense que o BC está certo em propor essa narrativa, acredito que ele enfrentará uma forte corrente de narrativas contrárias, já iniciadas por celebridades do mercado financeiro, que reportam uma maior preocupação com o controle da inflação em 2021. Preocupação para a qual vão concorrer, no segundo semestre, as pressões advindas da retomada do setor de serviços.

2020 foi um ano muito difícil para todos. Que o Natal e 2021 nos tragam muita felicidade. Sem receio de exagerar!

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ


IHU Online: Para superação das crises, Brasil precisa abandonar o liberalismo econômico, diz Bresser-Pereira

Para economista, com pensamento liberal não pode haver crescimento. Por isso, reedita sua tese novo-desenvolvimentista e assegura que imprimir moeda não é sinônimo de inflação descontrolada

João Vitor Santos, IHU Online

crise econômica que temos vivido em decorrência da pandemia de covid-19 parece ter pego o Brasil de cheio. Segundo o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, é preciso compreender que essa crise é nova, mas que vem no bojo de grandes crises nunca realmente superadas e que têm origem no projeto liberalBresser defende que o Estado não pode se retirar do jogo. “O mercado é uma maravilhosa instituição, não é mecanismo e nem ‘ente’, é uma instituição, um sistema de normas que coordena de maneira ótima uma economia, mas apenas na sua parte competitiva”, alerta. E, por isso, “os outros setores não competitivos, mais a macroeconomia, a distribuição de renda e ainda a proteção do meio ambiente, tudo isso depende da intervenção do Estado”. “Coisa que o neoliberalismo esquece e nós esquecemos também, desde 1990, quando o presidente Fernando Collor de Mello fez a abertura comercial”, dispara.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o economista recupera a tese de que o Brasil vem sofrendo um processo de desindustrialização. Sem confiança para investir, as indústrias são sucateadas ou vão embora enquanto a ‘poupança pública’ míngua. É aí que entra sua Teoria do Novo-Desenvolvimentismo. Mas, como investir em desenvolvimento no meio da crise? Para ele, o governo precisa criar condições, especialmente manter o câmbio mais depreciado e a taxa de juros baixa. “Tem que mudar o regime de política econômica, tem que abandonar o liberalismo econômico e voltar a ser desenvolvimentista. É preciso voltar a acreditar que deve haver uma intervenção moderada do Estado na economia e que é preciso ser nacionalista econômico”, aponta.

E uma das vertentes dessa intervenção estatal moderada, para ele, é a emissão de moeda. “É preciso pensar que a moeda é uma espécie de óleo lubrificante que permite que as transações aconteçam. E o sistema econômico precisa de um certo grau de liquidez”, endossa. Sua defesa está na experiência de outros países que fizeram a manobra para conter, por exemplo, a crise de 2008. Além disso, Bresser destaca que essa operação tem sido retomada por muitos justamente para custear os gastos decorrentes da pandemia. “São despesas de subsídios às pessoas para as manter vivas, de subsídios às empresas para evitar que quebrem etc. Foram enormes gastos e grande parte está sendo financiada dessa maneira”, acrescenta.

No fim da entrevista, o economista ainda avalia as políticas econômicas do atual governo, que define como “o pior governo que já vi em toda história de minha vida, de longe”. E conta ‘um causo’: elementos da teoria novo-desenvolvimentista foram apresentados – e muito bem aceitos – pessoalmente por ele a Ciro Gomes e Fernando Haddad, nomes que considera muito preparados para assumir a Presidência em 2022. Além disso, olha para a experiência chinesa e destaca que o país resolveu seus problemas desde a realidade local, sem se abraçar a cânones do pensamento econômico. “Existem soluções para o problema brasileiro, mas é preciso que não se pense de acordo com os livros-textos escritos pelos americanos e ingleses. É preciso que tenhamos capacidade de ver nossos problemas por nossa conta”, resume.

Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas, atuou como professor visitante de desenvolvimento econômico na Universidade de Paris I (1978), de teoria da democracia no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo - USP (2002/03), e de Novo-Desenvolvimentismo na École d’Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, entre outras universidades pelo mundo. Também foi ministro da Fazenda, da Administração Federal e Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia no governo Fernando Henrique Cardoso. Bacharel em Direito pela USP, é mestre em Administração de Empresas pela Michigan State University, doutor e livre docente em Economia pela USP. Entre os livros publicados destacamos A construção política do Brasil: Sociedade, economia e Estado desde a Independência (São Paulo: Editora 34, 2016),Desenvolvimento e Crise no Brasil (1968/2003), Construindo o Estado Republicano (2004), Macroeconomia da Estagnação (São Paulo: Editora 34, 2007) e Globalização e Competição (Rio de Janeiro: Elsevier-Campus, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor defende que é preciso abandonar a ortodoxia econômica. Por quê?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Sou um crítico da Teoria Econômica Neoclássica ou Ortodoxa, que é a Teoria ensinada principalmente nas universidades americanas e inglesas. Entendo que essa teoria é essencialmente errada porque ela utiliza o método hipotético dedutivo ao invés de adotar um método empírico, histórico. Ao invés de ela observar a realidade e tentar generalizar a partir dessa realidade, o que os economistas neoclássicos ortodoxos fazem é partir de dois axiomas, como se faz em Matemática.

É o axioma do homem econômico, sempre racional e portanto seu comportamento é totalmente previsível, e a ideia das expectativas passionais, pois os agentes econômicos além de serem racionais e oniscientes, conhecem os modelos certos de economia e se comportam de acordo com isso. É um absurdo que resultou na crise de 1929, pois essa teoria foi dominante no mundo desde o final do século XIX até 1929. Mas que teoria é essa? É o liberalismo radical que voltou a ser dominante no mundo rico a partir de 1980 com a virada neoliberal de Thatcher e Reagan, e agora desde 2008, quando houve novamente uma grande crise provocada por essas ideias, chegando até o momento atual, em que estamos em profunda crise.

Sou um economista heterodoxo e, entre os economistas ortodoxos, venho desenvolvendo desde 2001 uma teoria chamada de Novo-Desenvolvimentismo. Essa teoria novo-desenvolvimentista tem origem em Keynes e nos desenvolvimentistas estruturalistas como Celso Furtado e Raul Prebisch.

IHU On-Line – Que respostas o Novo-Desenvolvimentismo pode trazer a essa crise que vivemos?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – O Brasil vive uma crise econômica muito grande desde 2014, que foi agravada por um impeachment em 2016 e agora ainda mais por uma pandemia terrível. Diante disso, o governo precisa reagir e as medidas que defende são de austeridade, ou seja, de reduzir o gasto público em toda parte e de manter a taxa de câmbio elevada (com elevada quero dizer não competitiva). E isso, evidentemente, é incorreto.

A tese de que nos momentos de crise o Estado precisa aumentar sua despesa contraciclicamente é uma coisa que foi originalmente desenvolvida por Keynes nos anos 30 do século XX e está mais que comprovado que é a forma correta de se fazer a política macroeconômica. Uma coisa curiosa é que, embora o governo seja contra esse tipo de política, ele, pressionado pelo Congresso, criou um auxílio emergencial muito grande. Foi voltado mais para os pobres, mas que, de alguma forma, sustentou a demanda neste ano e impediu que a crise econômica fosse mais forte ainda. Estava se prevendo uma queda no PIB de 9% e hoje a queda esperada é de 5%.

IHU On-Line – Então, o senhor considera já termos aí uma prova de que o Estado tem de gastar mais em situações de crise?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – A prova disso existe em toda parte, em mil casos. Em 2008 nós só não tivemos uma crise monumental porque todos os governos, tanto americano quanto chinês, também o brasileiro e os europeus, imediatamente fizeram elevadíssimos gastos fiscais. Além de irem correndo salvar os bancos que tinham quebrado. E isso deu certo, caso contrário a crise teria sido tão grave quanto foi a crise de 1929 e a grande depressão nos anos 1930. Assim, reitero, isso está mais do que claro.

O problema é que, além de termos de enfrentar essa crise de curto prazo, nós precisamos pensar que o Brasil vive um regime de quase estagnação há 40 anos. Isso é muito sério. O Brasil, entre 1950 e 1980, crescia a uma taxa per capita de 4,5% ao ano. Era uma taxa muito elevada, a segunda maior do mundo; só o Japão tinha uma taxa um pouco maior do que a do Brasil. Desde 1980 e, principalmente, desde 1990, quando o Brasil resolveu adotar o regime de política econômica liberal ortodoxa ao invés de desenvolvimentista, a taxa de desenvolvimento do país tem sido de 0,8% ao ano. Veja: de 4,5% para 0,8% é uma diferença brutal.

E se nesse mesmo período compararmos esses 0,8% do Brasil com os países ricos, que nós deveríamos estar alcançando, veremos que eles cresceram 1,5% ao ano, ou seja, o dobro do Brasil. E os demais países em desenvolvimento cresceram 3% ao ano, quatro vezes mais do que nós. O Brasil está quase estagnado desde 1980 e nada é feito sobre isso. Nada é feito tanto pela direita, que está hoje no governo – aliás, desde 2016 –, quanto pela esquerda, que no Governo Lula tentou fazer alguma coisa, mas infelizmente no Governo Dilma tudo desmoronou. E uma das causas que se desencadeou em 2014 para a queda do governo, não foi a principal, mas uma delas, foi a má gestão econômica da Dilma.

IHU On-Line – Gostaria que recuperasse seus argumentos para a ‘semiestagnação’ que o senhor coloca.

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Para isso é importante lembrarmos que o desenvolvimento econômico depende fundamentalmente da taxa de investimento do país. Quanto maior for a relação do investimento em capital e o PIB, mais alta tende a ser a taxa de crescimento. Os países do Leste asiático tinham, normalmente, 35% de taxa de investimento. A China, que nos últimos 40 anos apresentou o mais extraordinário crescimento – na história do mundo nunca houve nada semelhante –, cresceu durante esse tempo cerca de 7,5% ao ano.

estratégia de desenvolvimento usada pela China sempre foi desenvolvimentista e não liberal. Enquanto isso, em 1980 o mundo fazia uma virada neoliberal. É uma virada de um regime de política econômica desenvolvimentista – que pressupõe uma intervenção moderada do Estado na economia, com exceção dos setores não competitivos, com uma perspectiva de nação, em defesa do interesse nacional – para uma virada neoliberal com Thatcher e Reagan, na qual se espera que o mercado seja um ente ou um mecanismo milagroso capaz de coordenar tudo. Ora, isso é algo profundamente equivocado. O mercado é uma maravilhosa instituição, não é mecanismo e nem ‘ente’, é uma instituição, um sistema de normas que coordena de maneira ótima uma economia, mas apenas na sua parte competitiva. Aliás, o mercado funciona bem com competição, senão, não existe mercado.

Os outros setores não competitivos, mais a macroeconomia, a distribuição de renda e ainda a proteção do meio ambiente (mecanismos para frear aquecimento global etc.), tudo isso depende da intervenção do Estado. Coisa que o neoliberalismo esquece e nós esquecemos também, desde 1990, quando o presidente Fernando Collor de Mello fez a abertura comercial. Abertura essa que fez com que as tarifas aduaneiras caíssem de 45% para 12%, além da eliminação de subsídios à exportação de manufaturados que eram também de 45% e foram zerados.

Desde então, a economia brasileira cresce muito pouco, porque a taxa de investimento é muito baixa. Isso ocorre porque, devido a essa mudança de regime para o modelo liberal, os investidores foram desestimulados a investir. O investimento acontece quando o empresário tem uma boa expectativa de lucro e sua taxa de juros, o seu custo do capital, é baixo. É uma lei geral e óbvia, ninguém vai investir sem esperar lucro e esse lucro tem que ser maior do que a taxa de juros.

Perda de competitividade

O que houve foi que as políticas adotadas pelo Brasil, a começar pela liberalização comercial e em seguida financeira, que foram adotadas ainda no Governo Collor e depois mantidas e aprofundadas no Governo Fernando Henrique, tonaram as indústrias brasileiras não competitivas. Mesmo as muito bem geridas que usavam a melhor tecnologia do mundo passaram a ter uma enorme desvantagem competitiva em relação às empresas do resto do mundo. Não apenas as empresas nacionais, mas também as multinacionais. E isso fez com que muita empresa falisse e também levou muitas multinacionais a irem embora.

Quando se tem uma taxa de câmbio apreciada no longo prazo e uma taxa de juros muito alta, se é completamente desestimulado a investir. E isso aconteceu desde 1990 até recentemente, porque veio a crise de 2014 em cima dessa semiestagnação. Essa crise foi desencadeada pelo preço da queda das commodities. Na medida em que o Brasil passou a ter uma taxa de câmbio muito apreciada, entrou num processo de violenta desindustrialização, justamente pela apreciação da taxa de câmbio e porque a “doença holandesa” que existe no Brasil deixou de ser neutralizada – a doença holandesa é uma apreciação de longo prazo da taxa de câmbio de um país que exporta commodities, pois essa taxa é determinada pelas commodities. Essa taxa de câmbio deve cobrir o custo com lucro satisfatório das empresas produtoras de commodities, que são as dominantes. E quando há a doença holandesa, a taxa de câmbio corrente é substancialmente mais apreciada do que a taxa de câmbio das empresas industriais do país. Eu chamo isso de equilíbrio industrial, ou seja, tem o equilíbrio corrente dado pelas commodities que equilibra a conta corrente do país, que é conta comercial mais os serviços. A diferença entre o equilíbrio da taxa corrente e essas que as empresas industriais precisam para serem competitivas é a doença holandesa.

Desindustrialização e os efeitos do câmbio

doença holandesa era neutralizada até 1990 com tarifas aduaneiras muito altas, aqueles 45% que referi anteriormente. E, desde 1967, também por subsídios elevados à exportação de manufaturados. Tudo isso foi desmontado em 1990 de acordo com a lógica neoliberal e foi um desastre. A desindustrialização foi brutal e a taxa de crescimento também caiu brutalmente. Para se ter ideia, o investimento no Brasil representava 26% do PIB nos anos 1980, em média, e hoje representa 10%.

Isso aconteceu por causa da taxa de câmbio muito apreciada e por causa dos juros muito altos que atraíam capitais. Ou seja, havia duas causas para essa apreciação de longo prazo da taxa de câmbio que tornava as boas empresas não competitivas. Uma causa era a doença holandesa não neutralizada e a outra era a intenção de crescer não com endividamento externo, o que significaria que se está importando pouco de outros países e aumentando a sua capacidade de investimento. Isso é um enorme equívoco que a teoria novo-desenvolvimentista critica de maneira muito firme. Os brasileiros, não só os economistas ortodoxos neoclássicos, mas também os demais desenvolvimentistas e pós-keynesianos, acreditam que se o Brasil tiver um déficit de conta corrente de cerca de 3% do PIB e se esse déficit for principalmente financiado por empresas multinacionais, então estamos nos melhores dos mundos possíveis. Estaremos aumentando nossa capacidade de investimento, porque esse dinheiro que vem de fora trazido pelas multinacionais vai aumentar a taxa de investimento e em seguida a taxa de crescimento do país.

Só que isso é completamente falso. Na verdade, quando se aprecia o câmbio, se resolve crescer com endividamento externo, entra-se em déficit em conta corrente, e quando entra nesse déficit é preciso que haja mais entrada do que saída de capitais no Brasil. Devido a isso, a taxa de câmbio se aprecia, pois também é determinada pela oferta e procura de moeda estrangeira. E quando isso ocorre, o poder aquisitivo não apenas dos trabalhadores, mas também as rendas dos rentistas (os juros, os dividendos e os aluguéis que recebem) aumentam, de forma que todo mundo fica feliz.

Mais consumo e menos investimento

E o que fazem com esse dinheiro? Consomem mais. Não investem porque na hora em que se tornou a taxa de câmbio apreciada, as boas empresas perderam competitividade, tornando-se mais barato importar aqueles produtos que antes se produzia localmente. Assim, evidentemente elas não investem, são desencorajadas a investir. Tudo isso explica uma parte fundamental dessa quase estagnação da economia brasileira desde 1990 até hoje.

Poupança pública

Há, ainda, uma segunda causa para a semiestagnação, que está relacionada à poupança pública. A poupança pública (toda a receita do Estado menos a despesa corrente ou de consumo) deve existir para financiar os investimentos públicos, que são sempre muito importantes. Uma economia que cresce bastante geralmente tem uma taxa de investimentos públicos de 20 a 25% do PIB.

poupança pública brasileira era, na última década em que o Brasil cresceu fortemente, nos anos 1970, de cerca de 4 a 5% do PIB. Isso fazia com que o investimento público fosse perto de 7% do PIB, porque o governo também usava um pouco de endividamento público. Mas desde os anos 1980 a poupança pública se tornou negativa e os investimentos públicos caíram fortemente, passando de 7% para 2% mais ou menos. Isso é uma segunda causa dessa quase estagnação.

IHU On-Line – O que muda com a crise de 2014 e com o cenário que ela traz?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Isso que destaquei acima vinha acontecendo no Brasil até 2014. No ano de 2014 veio essa grande crise, semelhante à ocorrida durante o governo de Fernando Henrique Cardoso entre 1998 e 2002.

Agora, é importante perceber que a crise de 2014 começa ainda no governo do PT, de Dilma, e depois continua em tempos de Bolsonaro, até agora quando temos uma crise econômica nova. Essa crise nova teve uma consequência interessante: a taxa de juros caiu fortemente pela primeira vez. Eu venho criticando a taxa de juros muito alta desde 2001 e sempre dizendo que é absurda, a mais alta do mundo e, na verdade, essa taxa de juros era uma captura do patrimônio público pelos rentistas e financistas, que assumiram muito poder no governo desde 1990, enquanto os empresários industriais perdiam poder.

Essa taxa de juros tão alta vinha caindo aos poucos, tendo já estado muito alta em 1992, quando houve a abertura financeira, mas em 2014, com a enorme recessão, a taxa de juros teve realmente uma queda. O Banco Central foi obrigado a baixar a taxa porque a inflação quase desapareceu, havia falta de demanda, e a justificativa que o Banco Central usava para manter aquelas taxas de juros altíssimas (que era de combater a inflação) já não se sustentava mais. Na verdade, a taxa de juros vinha alta para atrair os capitais e levar adiante aquela perspectiva de crescimento com endividamento externo.

A consequência dessa queda da taxa de juros, mais a crise que o Brasil vive hoje e a perda de confiança dos credores lá fora, foi uma depreciação da taxa de câmbio. Acredito que uma taxa de câmbio competitiva no Brasil hoje deve estar em torno de 4,80 Reais por dólar. E a taxa de câmbio está a 5,50 Reais, ou seja, está depreciada. Então, ótimo. A economia brasileira estava numa armadilha de juros altos e câmbio apreciável. Essa armadilha não existe mais neste momento.

IHU On-Line – Mas o crescimento não veio. Por quê?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Não veio porque continuamos em crise. Quando se está em crise, quer dizer que não se tem confiança de que a demanda será mantida – como a demanda criada agora pelo auxílio emergencial –, que a taxa de juros será mantida baixa e que a taxa de câmbio continuará competitiva. Vendo como reagem as elites brasileiras e seus economistas, vai-se achar que isso não dura. E, ainda, a confiança dos mercados financeiros internacionais no Brasil hoje está baixíssima. O resultado é que começa a entrar capital financeiro no Brasil, que novamente vai fazer com que a taxa de câmbio volte a se apreciar. Os empresários não investem por isso, porque não têm confiança.

IHU On-Line – O que fazer para reverter esse quadro?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – O que o governo deveria fazer é não apenas ter uma meta de inflação, mas além disso deveria assegurar que a taxa de câmbio será mantida basicamente nesse nível. Em segundo lugar, assegurar que a taxa de juros permanecerá baixa. Pode ser aumentada quando houver um pouco de inflação, mas o nível da taxa de juros será civilizado, semelhante à taxa de outros países do mundo. Se o governo desse essas garantias para os empresários e se recuperasse a sua capacidade de poupança, então nós poderíamos voltar a crescer. Agora, para voltar a crescer não basta sair da armadilha da taxa de juros, é preciso que o governo também volte a investir.

IHU On-Line – Qual a solução para isso?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – A mais óbvia é a austeridade. Mas, ora, a austeridade é um desastre. Porque austeridade quer dizer reduzir a demanda, causar desemprego, diminuir salário e isso não resolve o nosso problema de jeito nenhum. É preciso recuperar as finanças públicas e voltar a ter uma poupança pública, mas isso só pode ser feito gradualmente, com muito cuidado e muita firmeza.

Agora, há uma coisa nova que surgiu no mundo e que promoveu uma revolução completa na macroeconomia mundial: a emissão de moeda pelos Bancos Centrais e os Tesouros Nacionais. A emissão de moeda foi sempre considerada o pecado máximo. Aqui no Brasil se explicava a inflação com emissão de moeda; no exterior os monetaristas explicavam a inflação com aumento de moeda.

IHU On-Line – Justamente, e como responder a esses economistas sobre essa perspectiva de emissão de moeda ser sinônimo de inflação descontrolada?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – No começo dos anos 1980, eu e [YoshiakiNakano desenvolvemos toda uma teoria de inflação inercial, o livro principal é “Inflação e Recessão” (São Paulo: Brasiliense, 1984) [a versão PDF da obra pode ser acessada aqui], e nesse livro demonstramos com muita clareza que o aumento de moeda não causava inflação. Já num artigo de 1983, intitulado “Fatores aceleradores, mantenedores e sancionadores da inflação”, dizíamos que o fator acelerador da inflação – por exemplo, uma inflação de 1% ao ano subir para 2% – é o excesso de demanda, segundo explicação keynesiana.

O fator que mantém a taxa de câmbio num valor elevado, o fator inercial, é a indexação. O que mantém a inflação mesmo quando há recessão é o fato de que os agentes econômicos no Brasil, especialmente na época da alta inflação, indexavam formal (com base na lei) ou informalmente (segundo o costume) todos os preços de modo que a inflação só subia e não caía.

Em terceiro vem o fator sancionador, ou validador, que era o dinheiro. O dinheiro é consequência, endógena, do processo de crescimento. O dinheiro aumenta ou diminui numa economia na medida em que o crédito e as despesas do governo aumentam ou diminuem. Se tivesse uma inflação muito alta – durante anos a nossa inflação foi mais de 1.000% ao ano, mas vamos considerar uma inflação de 100% ao ano –, se o governo conseguisse impedir que a quantidade de moeda, que nasce do mercado, não aumentasse em nada, ficasse nominalmente exatamente igual ao começo do ano, tendo havido uma inflação de 100% nesse ano, isso causaria uma crise enorme, uma crise de liquidez.

É preciso pensar que a moeda é uma espécie de óleo lubrificante que permite que as transações aconteçam. E o sistema econômico precisa de um certo grau de liquidez. Isso estava lá em nossa teoria, que não era só nossa porque havia alguns economistas que afirmavam coisas semelhantes, mas o grosso dos economistas ignorava isso, tanto alguns ortodoxos quanto heterodoxos. Aí veio a crise de 2008 no Norte e primeiro houve uma reação muito correta, que já citei, keynesiana, e grandes aumentos de gastos. Mas isso foi em 2009.

Quando chegou em meados de 2010, definiram que deveriam voltar à austeridade. E de fato voltaram para a austeridade fiscal, mas os bancos centrais ignoraram esse fato e, vendo que a economia não se recuperava, começaram a fazer as políticas de afrouxamento quantitativo. Isso consiste em o banco central do país comprar títulos do governo ou das empresas em grande quantidade e, ao fazer isso, acelerar o processo endógeno de criação de moeda. Isso foi feito em volumes absolutamente extraordinários, principalmente no Japão, também nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e em países menores como a Holanda. Só não aconteceu nos países das zonas do Euro porque eles não têm um banco central para cada país para que seja feito o processo.

O funcionamento dessa operação

Nesse processo, quando se aumenta a quantidade de moeda e se compram títulos do Tesouro, e títulos novos ao invés de comprar títulos velhos ou títulos de empresas, se está emitindo moeda direta para financiar. Como a despesa pública estava muito baixa, esse dinheiro servia para reduzir a dívida pública. Para se ter ideia da importância disso, no caso do Japão, que foi o que mais fez isso, calculei que a dívida pública japonesa, que era de 260% do PIB, caiu em termos reais em 77%.

As estatísticas do Japão mantêm o mesmo nível de dívida porque não consideram essa operação. O Banco Central comprou do Tesouro, e a contabilidade pública deles define que quando o Tesouro deve para o Banco Central isso é dívida pública, o que é ridículo. A dívida pública é a dívida do Estado; o Tesouro e o Banco Central estão dentro do Estado. O Tesouro pode dever, mas o Estado não deve.

Emitindo moeda e financiando despesas da covid-19

Mas aí veio a inflação? Não, não veio inflação nenhuma, absolutamente nenhuma. O tempo todo havia o medo da deflação e não da inflação. Podem dizer que essa revolução morreu aí, mas não morreu, porque neste ano de 2020, o ano da pandemia, esses mesmos países que têm seus bancos centrais e são ricos voltaram a emitir dinheiro enormemente. O Tesouro, então, está vendendo títulos novos para o Banco Central para financiar as despesas da covid-19.

São despesas de subsídios às pessoas para as manter vivas, de subsídios às empresas para evitar que quebrem etc. Foram enormes gastos e grande parte está sendo financiada dessa maneira. Isso é uma forma muito heterodoxa e correta de fazer, desde que realizada com cuidado. Nós aqui no Brasil não fizemos. Isso chegou a ser discutido, eu fiz minha briga pessoal nos artigos que publiquei, mas não adiantou. O medo da inflação ainda é muito grande, esse medo de que a emissão de moeda causa inflação está muito no fundo da alma brasileira. O resultado é que a dívida pública brasileira estava em 80% do PIB e está subindo para 100%, o que é péssimo. Depois será preciso pagar isso.

IHU On-Line – Diante do atual cenário e das estratégias adotadas pela equipe econômica do atual governo, como o senhor vê o Brasil dos próximos anos? Como esse cenário deve impactar 2022, o ano eleitoral?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – As perspectivas para a economia brasileira são muito ruins. Em princípio, continuaremos nessa crise. Em 2021 certamente, porque a pandemia ainda não está resolvida e seus efeitos negativos estão aí. Agora, a partir do final do ano que vem, a confiança poderia voltar. E não só a confiança dos empresários e dos credores estrangeiros, o que não me importa, pois o crescimento não deve ser feito com endividamento externo. Mas se os empresários brasileiros e as multinacionais existentes aqui no Brasil voltarem a ter confiança, e vendo a taxa de juros baixa e a taxa de câmbio competitiva, poderão voltar a investir.

Agora, será que isso vai acontecer? Será que vai voltar a confiança com o governo que está aí? É impossível ao meu ver. Esse é o pior governo que já vi em toda história de minha vida, de longe. O que temos aí é gente absolutamente incapacitada para governar e está nos governando, ou desgovernando. São políticas econômicas contraditórias e realmente ineficientes. Acho que as eleições de 2022 ainda vão ser tomadas nesse quadro de baixíssimo crescimentodesemprego elevado; acho que não muda não.

IHU On-Line – Mas realmente não tem solução para isso?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – É claro que tem. Não é fácil, mas tem que mudar o regime de política econômica, tem que abandonar o liberalismo econômico e voltar a ser desenvolvimentista. É preciso voltar a acreditar que deve haver uma intervenção moderada do Estado na economia e que é preciso ser nacionalista econômico, ou seja, pensar que o Brasil é um Estado-Nação que compete com todos os demais Estados-Nação do mundo. Não só as empresas que competem, são os Estados-Nação também. E para o Brasil poder competir, precisa ter um projeto nacional de desenvolvimento.

IHU On-Line – Em que consistiria esse projeto, dada a atual conjuntura?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Contaria com uma garantia de manter a taxa de juros num nível baixo, em torno do qual o Banco Central faz a sua política monetária. Significa, portanto, ter uma taxa de câmbio competitiva e uma taxa de inflação baixa. Para isso o governo precisa dar garantias de que agirá nesse sentido ao mesmo tempo que vai fazendo gradualmente o ajuste fiscal para recuperar a poupança pública. E é preciso que o governo também passe a ser autorizado a emitir moeda para financiar até 5% do PIB para investimentos públicos. Isso, desde que não haja excesso de demanda.

Uma reforma constitucional autorizaria Banco Central e Tesouro a fazerem essa emissão ao limite de 5%. E o Conselho Monetário Nacional, a cada três meses, se reuniria para, entre outras coisas, decidir se essa transferência de fundos produzidos por emissão de moeda pode continuar a financiar os investimentos ou se a demanda começou a ficar alta e a inflação começou a subir, sendo então preciso parar com esse processo por algum tempo. Existem soluções para o problema brasileiro, mas é preciso que não se pense de acordo com os livros-textos escritos pelos americanos e ingleses. É preciso que tenhamos capacidade de ver nossos problemas por nossa conta.

capitalismo lá do Norte anda muito mal, não tão mal quanto o brasileiro, mas anda muito mal. Quem anda bem sempre são os países do Leste da Ásia, que são desenvolvimentistas. A China, que é quem anda melhor, é claramente um país estadista, mas que fez sua transição para o capitalismo a partir de 1980 e fez uma transição desenvolvimentista. Lá, o Estado intervém moderadamente na economia, controla os bancos, investe na infraestrutura e nos insumos básicos e deixa que o mercado funcione de maneira mais livre possível no setor competitivo da economia. São duas políticas: para os setores não competitivos, macroeconomia, administração do Estado, política econômica, e, para o resto da economia competitiva, dá-lhe mercado. Essa é a lógica chinesa, a lógica novo-desenvolvimentista, e é isso que nós deveríamos fazer.

IHU On-Line – Para além desse grupo econômico que está no governo, o senhor encontra ecos tanto à esquerda como à direita? Suas sugestões são aceitas para que se construa uma alternativa visando as eleições de 2022?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Vou responder contando uma historinha. Em dezembro de 2017, um ano antes da eleição de 2018, eu telefonei para o Ciro Gomes e para o Fernando Haddad. Disse para eles o seguinte:

olha, vocês são, provavelmente, candidatos a presidente e a vice-presidente – eu já tinha na minha cabeça a minha chapa, mas isso era irrelevante; minha chapa era Ciro Gomes para presidente e Fernando Haddad para vice-presidente –, ou, de qualquer forma, vocês vão se candidatar e serão importantes, e estou desenvolvendo uma teoria nova e essa teoria deveria fazer parte das ideias que vocês vão defender caso eleitos. Então, proponho que no mês seguinte – estávamos no fim de dezembro – nós marquemos um dia e vocês reservem a tarde toda desse dia para eu dar para vocês uma aula de Teoria Novo-Desenvolvimentista e depois minha mulher oferece um jantar para vocês”.

Eles vieram os dois juntos, dei minha aula, ficaram muito interessados e, depois, infelizmente, a chapa não aconteceu. Deveria ter acontecido, o PT não pensou bem, mas nos programas dos dois estavam presentes várias coisas que fazem parte da Teoria Novo-Desenvolvimentista e das políticas dela. Isso pode acontecer novamente. O Ciro Gomes vai ser novamente candidato a presidente, acabou de publicar um livro que é ótimo [o livro é Projeto Nacional: O dever da esperança (São Paulo: Leya, 2020)]. Esse livro mostra que o Ciro está mais do que preparado para ser presidente da República. O Haddad é capaz de ser o candidato pelo PT, ele também está preparado. Isso pode acontecer, mas não há nenhuma garantia.

Políticas erradas

As políticas erradas estão do lado liberal e são, obviamente, erradas. O Brasil não poderá crescer num regime político liberal, porque os liberais só defendem uma coisa: ajuste fiscal e reformas, mais nada. E nós fazemos sempre muitas reformas e eles sempre dizem que é preciso mais. Para manter a taxa de juros e a taxa de câmbio no lugar certo, não se pode adotar políticas neoliberais. Para ter uma poupança pública, não se pode ser liberal.

Eles dizem defender responsabilidade fiscal, mas eu também defendo responsabilidade fiscal. Só que eles não querem poupança pública, querem reduzir a despesa do Estado para reduzir a carga tributária e os ricos pagarem menos impostos. Os liberais não têm a menor possibilidade de promover o desenvolvimento do Brasil, e os desenvolvimentistas, alguns têm, mas não todos. Ainda há muito populismo e ideias antigas entre desenvolvimentistas e pós-keynesianos.

IHU On-Line – Em uma das suas reflexões, que reproduzimos no sítio do IHU, o senhor diz que, em nossa sociedade, a “ideia de solidariedade perdeu espaço” e isso nos deixou doentes. Que solidariedade é essa e como reaver essa ideia?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Em primeiro lugar, o capitalismo é uma forma de organização social, um modo de produção, se quisermos usar a expressão marxista, que leva a muita injustiça e tende, naturalmente, ao individualismo. O liberalismo político tem uma parte boa que é a defesa dos direitos civis, o Estado de Direito, mas tem uma coisa horrível que é o individualismo feroz. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, como o país, sendo liberal do ponto de vista político, conseguiu se desenvolver tanto?

A resposta é muito simples: é que nos Estados Unidos havia uma ideologia que neutralizava em boa parte esse individualismo liberal. Isso através de uma coisa chamada republicanismo, uma ideologia clássica que vem de Aristóteles e de Cícero na Grécia e a Filosofia Política que diz que ‘você só é livre quando está disposto a defender o interesse público. E, em certos pontos, está disposto a sacrificar seu próprio interesse para defender o interesse público’. O republicanismo é o oposto do liberalismo, porque este diz que se é livre para fazer tudo que se quer desde que não seja ilegal. Desse jeito não se constrói sociedade nenhuma, para construir uma sociedade é preciso saber que existe algo que se chama bem comum e esse bem comum precisa ser defendido por cidadãos com espírito republicano.

Isso nos Estados Unidos, onde o republicanismo teve uma influência muito grande. Vários daqueles que fizeram a independência tinham uma mistura, um pouco de liberalismo e um pouco, se não bastante, de republicanismo. O republicanismo que domava o capitalismo neoliberal nos Estados Unidos. Na Europa é a solidariedade, pois sabemos que lá o movimento socialista foi muito grande. E se pode pensar o socialismo como modo de produção em que se extingue a propriedade privada, mas se pode pensar o socialismo como a ideologia da igualdade social, da justiça social e da solidariedade.

Essas ideias socialistas foram muito fortes na Europa. E são até hoje, porque os governos social-democratas refletiam essas ideias de solidariedade. Assim, na Europa foi a solidariedade que domou o capitalismo. Então, o capitalismo neoliberal só funciona bem se for domado pelo republicanismo e pelo socialismo, pela solidariedade e a ideia do espírito público ou do bem comum. O neoliberalismo foi um retrocesso muito forte, porque essas duas ideologias que domam o capitalismo individualista foram muito enfraquecidas.

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Celso Ming: Apesar da inflação mais forte, os juros não sobem

A manutenção da Selic a 2,0% ao ano produz um efeito fiscal benéfico, mas pode dar errado, quando se levam em conta outros fatores

A inflação voltou a dar seus pinotes, ameaça voltar aos 6,0% ao ano daqui a cinco meses e, no entanto, o Banco Central, por meio do Comitê de Política Monetária, o Copom, manteve os juros básicos (Selic) nos 2,0% ao ano. Mas sentiu o golpe e avisou que pode ter de rever sua política de dinheiro mais frouxa e puxar novamente pelos juros.

Primeiramente, aos números. Nos 11 primeiros meses deste ano, a inflação acumulada no ano chegou aos 3,13% e foi para 4,31% em 12 meses (veja gráfico). Em junho, a expectativa do mercado, medida pelo Boletim Focus, do Banco Central, apontava para todo o ano uma inflação (evolução do IPCA) não superior a 1,6%. Agora, ninguém espera menos de 4,0%. No segmento dos preços no atacado, houve uma disparada e tanto. O IGP-M, em cuja composição entram 60% de preços no atacado, acumulou neste ano até o final de novembro alta de 21,97% e pode ir mais longe. Como o atacado de hoje tende a ser o varejo de amanhã, parte da alta no atacado pode ser transferida para o consumidor.

Para o Banco Central, essa inflação é o resultado de choques anômalos e temporários. A pandemia desorganizou a cadeia de fornecimentos e suprimentos. Na retomada da atividade econômica, muitas empresas foram apanhadas com estoques baixos demais. A pressão da demanda empurrou os preços para cima. A alta das commodities (cotadas em dólares) foi turbinada também pelo avanço do dólar em reais. E houve, no final de novembro, o reajuste dos preços da energia elétrica.

O Banco Central argumenta que essa esticada da inflação tende agora a refluir, ainda que seus efeitos acumulados se estendam até meados de 2021. Convém juntar os argumentos: o auxílio emergencial que distribuiu mais de R$ 275 bilhões a cerca de 68 milhões de pessoas e foi fator de aumento da demanda de alimentos e materiais de construção civil vai terminar agora em dezembro. E, se tiver continuidade, será por uma fração do valor pago até aqui. Termina, também, o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, que beneficiou cerca de 9,8 milhões de trabalhadores. Portanto, mais desemprego significará também menor pressão de demanda. A alta das commodities agrícolas perderá força e esse enfraquecimento virá acompanhado de uma queda da cotação do dólar em reais, movimento que já começou. Por fim, a reativação da economia reorganizará as cadeias de fornecimento e suprimento. Com isso, o fluxo de estoques também voltará ao normal.

Se essa inflação não é causada por excesso de dinheiro no mercado e tende a perder força, não faz sentido puxar para cima os juros. É o que está subentendido no comunicado divulgado logo após a reunião do Copom nesta quarta-feira. A manutenção da Selic a 2,0% ao ano produz um efeito fiscal benéfico, não mencionado pelo comunicado: reduz as despesas com os juros da dívida e, nessas condições, retarda seu crescimento. Essa estratégia do Copom tem chance de dar certo. Mas pode dar errado, quando se levam em conta outros fatores. O fator político, por exemplo, nunca estará sob controle das autoridades da área econômica e monetária.

O jogo de forças entre o governo e o Congresso é caótico e deve continuar assim. Sabe-se lá até que ponto será possível obter um equilíbrio mínimo nas contas públicas. E ainda há o risco de que a campanha eleitoral de 2022 seja antecipada para 2021 e piore tudo. O comunicado reconhece isso, mas adverte que nem essa hipótese de que os juros subirão será a correta, pois é preciso levar em conta também a fragilidade da recuperação.


Cristiano Romero: Quem fala pela maioria silenciosa?

É antiético alegar problema fiscal para suspender auxílio

Todos os grupos de interesse específico tem representantes em Brasília, dentro e fora do Congresso Nacional, alguns com mais e outros com menos força para fazer valer sua participação no orçamento público. É disso que se trata a disputa pelo poder na capital de qualquer República, sob a vigência do Estado democrático de Direito.

O que torna o Brasil um país particularmente injusto é que os pobres, a maioria silenciosa deste imenso território, não têm representação no centro do poder nem quem os defenda por dever de consciência. Isso pode parecer um exagero, mas não o é, afinal, quando olhamos mais de perto iniciativas de políticos e partidos que se jactam por defender os pobres em Brasília, contradições pululam.

Um exemplo: sindicatos de trabalhadores da região do ABC, onde se concentra no Estado de São Paulo a maioria das empresas do setor automotivo, se unem para pressionar o governo, todo ano, a conceder incentivo fiscal às multinacionais. Não se passa um ano, na Ilha de Vera Cruz, desde a década de 1950 sem que essas companhias, originárias das nações mais ricas dom planeta, recebam dinheiro público subsidiado para… permanecerem aqui, onde está o sexto maior mercado (atrás apenas de China, Estados Unidos, Japão, Índia e Alemanha) de automóveis _ este país é também o oitavo maior fabricante.

O último incentivo aprovado para as múltis de carros prevê a liberação de R$ 8 bilhões em dinheiro da Viúva em quatro anos. Provavelmente, esse montante é, em termos relativos, muito menor em relação ao que se dava no passado e deve ser uma mixaria face ao faturamento e ao lucro do setor no país, sejam quais forem esses valores _ sim, leitores, mesmo beneficiário de dinheiro público, as montadoras nunca divulgaram seus números ao povo que as subsidia.

É curioso que ninguém, o parlamento ou mesmo as instituições "democráticas" criadas pelo distinto público para representá-lo e defendê-lo. O dinheiro que essas multinacionais embolsam a título de incentivo não é nada para elas, mas é algo para Ilha de Vera Cruz, onde vivem 50 milhões de miseráveis e, pelo menos, mais cem milhões de pobres.

Ora, como alguém pode achar que a manutenção desse subsídio de alguma forma ajuda pobres e miseráveis deste imenso país? Conceder incentivos ao setor automotivo, a esta altura do jogo, apenas contribui para concentrar ainda mais a renda, tirar de pobres para dar a ricos. Pense duas vezes antes de elogiar o político que defende o "cluster" da indústria automotiva brasileira. Ademais, convenhamos, por que dar incentivo a um setor protegido, contra concorrentes estrangeiros, por barreiras tarifárias (impostos e outros tributos) e não tarifárias (por exemplo, proibição de importação de carros usados)?

Outro exemplo das contradições expostas por grupos políticos que dizem estar em Brasília com a única "missão" de defender os desvalidos vem dos partidos de esquerda, que, por definição, são os mais propensos à formular políticas de combate à pobreza e emancipação das classes menos favorecidas em regimes democráticos. Por aqui, partidos de esquerda estão sempre a postos para proteger privilégios _ e não direitos _ adquiridos pelo funcionalismo público e os servidores de estatais. Não adianta lutar por um salário mínimo mais digno, por mais e melhores escolas, por um atendimento saúde público universal e digno e, ao mesmo tempo, lutar pela manutenção de um Estado caro, ineficiente e injusto, portanto, incompatível com implantação do projeto de nação previsto na Carta Magna de 1988.

É a falta de representação em Brasília que faz com que, nos momentos de dificuldade fiscal, governantes, parlamentares e membros "ilustres" do Poder Judiciário proponham "soluções" que, ao fim e ao cabo, tirem dinheiro de quem já tem pouco (os pobres) e dos que não têm nada (os miseráveis). Por isso, falar de problema fiscal "grave" no momento em que, todos sabemos, milhões de brasileiros (estima-se como algo em torno de 23 milhões de pessoas e suas famílias) ficarão sem renda em meio à maior crise sanitária da história, é terrivelmente doloroso, inclusive, por sabermos que nenhum grupo de interesse específico terá seus direitos suprimidos em nome da emergência que o país e o mundo enfrentam.

Em janeiro, não haverá mais auxílio emergencial. O economista Manuel Pires, do Ibre-FGV, esmiuçou as possibilidades para que Brasília encontre uma solução em relação ao auxílio que não jogue o país numa crise severa em poucas semanas. As conclusões não são animadoras.

  1. A forma talvez mais direta seria passar uma PEC que determinasse que o novo programa, temporário ou permanente, estaria fora do teto de gastos, assim como já ocorre com itens como créditos extraordinários, Fundeb e a capitalização de estatais.

PECs têm muitas etapas de tramitação nas duas Casas, mas suponhamos que, com um hipotético consenso entre Executivo e Congresso, se tentasse fazer tudo em tempo recorde a ponto de 2021 começar já com algum substituto do auxílio.

Há obstáculos muito sérios nesse caminho. Já foram emitidos sinais do Tribunal de Contas da União de contrariedade em relação a excluir novas despesas do teto de gastos, por causa dos riscos fiscais. Adicionalmente, uma forma tão acintosa de driblar o teto de gastos, mesmo que bem recebida inicialmente pelo Congresso, provavelmente causaria grande estrago nos mercados, com possibilidade de disparada do dólar e queda acentuada das bolsas - o que costuma soar o alarme dos políticos e levar ao recuo.

  1. Uma segunda via para excluir um novo programa do teto seria prorrogar o estado de emergência e recriar o orçamento de guerra. Isso exigiria a tramitação de PEC, o que esbarra, como já notado, no pouco tempo de funcionamento do Congresso até o recesso.

Com a recriação do orçamento de guerra, seria possível não só criar um Renda Cidadã, mas também incorrer em qualquer despesa acima do teto, sem nenhuma amarra. Certamente seria medida também de grande impacto negativo nos mercados, a menos que uma segunda onda de Covid-19 muito forte a justificasse.

  1. Finalmente, existe a possibilidade de fazer um programa temporário ou estender o auxílio emergencial - possivelmente com redução de valores e público-alvo - por meio de crédito extraordinário, que não está submetido ao teto. das de lockdown etc. - pode ser caracterizada como algo impossível de prever.

Míriam Leitão: Inflação em alta complica a vida

Os juros não vão subir nesta reunião do Copom, mas a inflação em alta está pondo todos no mesmo córner: o Tesouro, o Banco Central, as contas públicas e as famílias brasileiras. O INPC pode passar de 5% e esse é o índice que corrige várias despesas do Orçamento da União. Os gastos, portanto, subirão mais do que o calculado no projeto enviado ao Congresso, porque a inflação acelerou no segundo semestre. O Banco Central não elevará os juros nesta quarta-feira, mas esse fator novo, a taxa de inflação, tira o Copom da zona de conforto. Quando ele tiver que subir a Selic, a dívida fica mais cara.

Para as famílias, a alta da inflação atinge um nervo exposto. O IPCA subiu 0,89% em novembro. As maiores altas são dos preços de alimentos e de alguns serviços que não podemos deixar de consumir. Para o professor Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio, o que mais pesou nos índices divulgados ontem, depois dos alimentos, foi a luz. E ele calcula que dezembro deve trazer uma taxa de 1%:

— Com 1% em dezembro, o IPCA vai a 4,16%, mas pode ser um pouco mais. O INPC iria para mais de 5%, porque no ano o INPC acumula 3,93%, e o IPCA, 3,13%.

A inflação de alimentos e bebidas teve alta de 12,14% no ano e 15,94% em 12 meses. Quando se mede a alta só dos alimentos no domicílio a taxa chega a 21,13% em 12 meses. Ou seja, ela é maior nos itens que pesam mais no bolso. As famílias estão chegando ao fim do ano num país em que o desemprego subiu, a renda caiu, o auxílio deixará de ser transferido aos mais pobres, e a comida está mais cara. Visivelmente mais cara. E existem aumentos à espreita para o começo de 2021. Muito reajuste foi adiado porque a ideia é que a esta altura estaríamos livres da pandemia. Mas não. Estamos numa segunda onda de aceleração da doença. Planos de saúde, tarifas de serviços públicos, remédios subiram menos ou não foram reajustados em 2020. E essa conta chegará em 2021.

O projeto de orçamento que está no Congresso previa que as despesas indexadas — salário mínimo, benefícios previdenciários e assistenciais —seriam corrigidas por 2,09%. Se o INPC, que indexa, terminar o ano acima de 5%, teremos um aumento muito grande das despesas, como já alertamos aqui neste espaço na semana passada. Talvez R$ 17 bi ou mais. O teto de gastos é corrigido também, mas pelo IPCA em 12 meses até junho, que deu 2,13%. O teto subirá menos que a despesa fixa. Haverá, portanto, mais dificuldade para ajustar o orçamento. E há um problema extra: ainda não temos nem a LDO aprovada.

O Tesouro terá um vencimento de R$ 600 bilhões de dívida nos quatro primeiros meses do ano. O governo tem que estar bem atento a isso, exatamente porque a dívida deu um salto forte com a pandemia. É por isso que o Ministério da Economia está querendo deixar bem claro que pelo menos metade desses recursos de refinanciamento da dívida já está garantida.

— Teremos R$ 100 bilhões de pagamento do BNDES da dívida que o banco tem com o Tesouro, e vamos ficar com R$ 190 bilhões do lucro contábil do Banco Central — diz uma fonte da equipe econômica.

O Tesouro do Brasil tem uma dívida alta, e com muitos vencimentos no curto prazo. A grande vantagem é a Selic estar em 2%. Mas por quanto tempo mais a Selic ficará nesse patamar com a inflação subindo além do previsto? Um dos poucos pontos de alívio dos últimos tempos é a reversão da alta do dólar. O câmbio vinha pressionando muito os preços, mas nas últimas semanas o real se valorizou frente à moeda americana.

A inflação quando sobe de forma rápida sempre desorganiza tudo. Não era previsível que ela subisse, já que o país está em um contexto recessivo. A taxa não está em níveis tão altos quanto, por exemplo, em 2015, mas o que já subiu teve efeito de tornar mais apertado o orçamento das famílias, elevar o gasto público e alimentar a dúvida sobre quanto tempo mais o BC pode permanecer sem elevar a taxa de juros.

Pior do que a inflação de agora é a sensação de que outros preços vão subir quando o país ainda não se recuperou. De que eles estão à espreita, como eu disse. A vida de todo mundo fica mais difícil: do governo e das famílias. Até porque essa é uma inflação que tem muitas origens: a alta de alimentos, a falta de insumos na cadeia produtiva, os adiamentos de reajustes de preços administrados, a subida do dólar. A vida não ficará fácil tão cedo. Em todos os sentidos, mas hoje falo da inflação, aquela velha senhora.


Correio Braziliense: Selic deve permanecer em 2% por mais um ano, dizem economistas

Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central se reúne nesta terça (8/12) e quarta-feira (9), e o consenso do mercado é que a taxa básica de juros será mantida

Israel Medeiros*

O Banco Central (BC) deverá manter a taxa básica de juros (Selic) em 2% pelo menos até o fim do ano. A última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) acontece nesta terça (8/12) e quarta-feira (9), e a dúvida é até quando esse patamar histórico permanecerá. De acordo com analistas de mercado ouvidos pelo Boletim Focus, produzido pelo próprio BC e divulgado na última segunda (7), a expectativa é de que a taxa salte para 3% no segundo semestre de 2021, diante de um cenário de recuperação econômica.

inflação prevista pelos analistas para este ano é de 4,21% — valor acima da meta central inflacionária, que é de 4% para 2020, e maior do que os 3,54% previstos na semana passada no mesmo relatório. Na reta final do ano, a inflação tem avançado, impulsionada pelo alto valor dos alimentos.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em novembro, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) avançou 0,89% e já acumula uma alta de 4,21% nos últimos 12 meses — sendo 3,13%, apenas de janeiro a novembro.

Para José Luis Oreiro, professor de economia da Universidade de Brasília, a alta da inflação não justifica uma alta na taxa de juros, uma vez que os efeitos inflacionários causados pela pandemia foram extraordinários, e a tendência é de que os preços diminuam no primeiro semestre de 2021, quando o desemprego deverá estar elevado.

“A inflação que vimos foi um efeito combinado da desvalorização no câmbio e, também, devido ao aumento do preço dos alimentos. Isso ocorreu por causa da pandemia. Os eventos são não recorrentes e sobre isso a taxa de juros não pode fazer muita coisa. Ela deve permanecer baixa porque, em 2021, o desemprego vai estar alto”, comenta o economista.

Outro fator que contribui para uma inflação mais baixa e manutenção da Selic, segundo Oreiro, é o fim do auxílio emergencial, que deve ocorrer este mês. “Isso aumenta a pressão desinflacionária. Porque se, além do auxílio emergencial, houver alta de juros, haverá uma nova recessão. Em 2021, provavelmente, não haverá mais auxílio. Nesse cenário, não existe nenhuma razão para sugerir uma elevação da taxa de juros”, pontua.

Ele também lembra que a recuperação econômica tem sido satisfatória, ao mencionar o resultado do Produto Interno Bruto (PIB) no terceiro trimestre de 2020, divulgado pelo IBGE na última semana. O resultado foi 7,7% melhor que o do trimestre anterior.

Próximo a zero

O professor revela, contudo, preocupação com o crescimento econômico brasileiro para o próximo ano. “Para 2020, o resultado vai ser melhor do que a gente esperava, em maio. Graças ao auxílio emergencial, à injeção fiscal, a economia vai ter um desempenho melhor do que o esperado. Mas o ano de 2021 é muito incerto. As pessoas saíram do mercado de trabalho e vão retornar, só que agora com uma redução do ritmo fiscal. Eu estou muito preocupado com a contração fiscal. Não descarto a economia crescer próximo a zero no próximo ano. Acho que no apagar das luzes, vão estender o auxílio emergencial. Porque se não estender, a situação será bem complexa”, avalia.

Otimismo

Ivo Chermont, economista-chefe do Quantitas, crê que a taxa básica de juros deve permanecer intacta durante todo o ano de 2021. Para ele, a inflação registrada no fim deste ano deverá diminuir nos próximos meses. “A gente acredita que a inflação é mais temporária, porque teve essa demanda dos alimentos e pressão de preços de bens. Esse descompasso entre demanda e oferta fez com que os bens subissem de preço. Quando o preço diminui, isso se equilibra e volta ao normal, é natural que a inflação volte para um patamar mais suave. Eu estou relativamente tranquilo com a inflação, e o BC não vai ter pressa de subir os juros. Ainda temos muito desemprego”, afirma.

Abaixo da meta

Já Marcelo Kfoury, coordenador do Centro Macro Brasil da Fundação Getulio Vargas, vê uma tendência de normalização dos juros no segundo semestre de 2021, como previsto pelo Boletim Focus. “É bem provável que isso ocorra. Nos próximos seis meses, o mercado não vê alta nos juros. Mesmo com a inflação de 2020 subindo, para 2021, a projeção ainda está bem abaixo da meta, porque ainda há muita capacidade ociosa na economia. Espera-se que suba para 3% na segunda metade de 2021, mas acho que pode subir até mais, porque está em um nível baixo há muito tempo”, avalia o especialista.

Ele acredita, também, que há espaço para uma queda do dólar, caso uma melhora fiscal ocorra nos próximos meses. “Ano que vem, nós veremos como está a disposição do governo para manter a questão fiscal. Não haverá mais Orçamento de Guerra. Aparentemente, o governo desistiu de criar uma extensão do auxílio emergencial. E há coisas a serem votadas para diminuir riscos, como reforma tributária e o Pacto Federativo”, completa


Míriam Leitão: A incômoda visita da alta dos preços

Há uma distância entre o número da inflação oficial e como ela é sentida pelos brasileiros. No meio de uma recessão, com impacto maior sobre os alimentos, com queda da renda e alta do desemprego, ela pesa muito mais do que os 4,22% dos últimos 12 meses do IPCA-15. Hoje, sairá o IGP-M de novembro e pode superar 3%, como no último mês. Os IGPs estão nas alturas, em torno de 25%, por causa dos preços por atacado. A inflação tem natureza e peso diferentes desta vez. Não existe hora boa para a chegada da inflação, mas agora ela é uma visita ainda mais incômoda.

Em ambiente recessivo, os preços não deveriam subir. Mas já aconteceu recentemente. Em 2015 e 2016, quando houve o descongelamento de tarifas de energia, o índice passou de 10%. Agora, de novo, há vários motivos específicos. Uma forte desvalorização do dólar, o aumento das exportações de alimentos, um descompasso dentro da cadeia produtiva e até uma pressão de demanda em plena recessão. O auxílio emergencial produziu um aumento de renda temporário, mas a maior alta de preços bateu exatamente nos alimentos, que são os itens que mais pesam no orçamento das famílias.

O Brasil viveu no começo deste ano uma maxidesvalorização. Em 31 de dezembro a moeda americana estava cotada em R$ 4,03. No dia 14 de maio, o pior momento, havia saltado para R$ 5,93. Alta de 47% em cinco meses. De lá para cá, caiu para R$ 5,32, mas ainda acumula uma valorização de 32% este ano. O real mais fraco tem o efeito econômico positivo de estimular as exportações, mas também representa aumento de custos para diversos setores. A indústria utiliza insumos, peças e máquinas importadas, e até alguns segmentos dos serviços sentem o efeito. Nos transportes, por exemplo, os combustíveis estão atrelados a preços internacionais. Há setores que reajustam preços sem dó nem piedade, independentemente da baixa demanda. Passagens aéreas dispararam 39% em outubro e mais 3,5% em novembro.

Outra razão da inflação deste ano é o forte salto nos preços por atacado. Em grande parte, reflexo da desvalorização cambial. Hoje, o IGP-M de novembro será divulgado e a projeção é de uma nova alta forte, de 3,3%, segundo a LCA Consultores, acima dos 3,23% de outubro. Os preços agropecuários no atacado devem disparar mais 8,63%, com aumentos no milho, trigo e na soja, que são matérias-primas para outros elos da cadeia de produção de alimentos. Os preços industriais também estão subindo, e a estimativa é de alta de 2,48%.

O Banco Central alegou que era um impacto temporário, concentrado nos alimentos, e que vários países do mundo estavam enfrentando o mesmo problema. Mas as histórias são diferentes de país para país, como mostrou o próprio presidente Roberto Campos Neto em apresentação na última semana. Nos EUA, os alimentos subiram mais de 5% na taxa anual, no pior momento da pandemia. Mas no Reino Unido o aumento não chegou a 2%. Entre oito países emergentes comparados pelo BC, o Brasil neste momento é o mais foi afetado pela inflação de alimentos, com elevação acima de 15%. Na China, subiu muito, mas está desacelerando. No Peru, não passou de 3%. A principal explicação é, de novo, a forte desvalorização do real.

As projeções de mercado apontam inflação na meta para este ano e o próximo, mas os números têm sido revistos para cima, semana após semana. Essa mudança de cenário tem sido encarada pelos economistas como um “vento contrário não esperado”. Se as estimativas aumentarem muito, o Banco Central terá que elevar a Selic, e o mercado de juros já tem mostrado um descolamento entre as taxas mais curtas e as mais longas.

Alguns economistas começam a olhar preocupados para essa inflação que nos visita em hora totalmente imprópria. A renda caiu, mas os preços que mais sobem são de produtos que não se pode deixar de comprar, os alimentos. Como várias indústrias fecharam as portas durante a pandemia, está havendo em plena recessão uma falta de insumos dentro da cadeia produtiva. Na reabertura, as empresas estão produzindo menos porque não querem acumular estoques num cenário de incerteza. E isso faz com que qualquer retomada econômica possa alimentar a inflação.

Essa é uma inflação bem diferente dos outros eventos do passado recente. Acontece num contexto difícil para as famílias e para o governo, que está muito mais endividado. Uma visita realmente incômoda.


Vinicius Torres Freire: Para onde vai a popularidade de Bolsonaro com comida cara e fim de auxílio

Inflação da comida, auxílio no fim e falta de emprego desanimam brasileiro

A inflação da comida não era tão alta desde 2008, embora naquele tempo a economia e os salários crescessem rápido. Antes disso, carestia da comida tão ruim houvera apenas em 2003. Para piorar, o valor do auxílio emergencial caiu pela metade desde setembro.

Como a economia ainda está muito deprimida e a epidemia ainda muito animada, a perspectiva de emprego é difícil, em particular para o terço mais pobre da população.Há motivos para o brasileiro desanimar. Há números que medem a desanimação.

O Índice de Confiança do Consumidor (ICC) da FGV caiu pelo segundo mês consecutivo em novembro. O ICC é composto de várias medidas de ânimo. A que mais abateu o índice foi a expectativa econômica para os próximos meses.

A inflação da “alimentação no domicílio”, como diz o IBGE, aumentou em média 19,9% nos últimos 12 meses até novembro (na inflação medida pelo IPCA-15). As pancadas mais fortes do mês foram na batata, no tomate, no óleo de soja, no arroz e na carne de boi.

É a mesa comum do brasileiro.Inflação de alimentos em alta costuma ter impacto também no humor político, mesmo que a inflação geral esteja controlada, como agora. Em um ambiente em que a renda média deve diminuir, os ânimos não devem melhorar, é claro. No trimestre junho-agosto, o pagamento médio dos auxílios emergenciais somou R$ 45,3 bilhões por mês no país.

Em setembro, de R$ 24,2 bilhões. Em tese, zera em janeiro. O ritmo da inflação da comida não deve diminuir de modo notável até o final do ano. Há perspectiva teórica de vacina, um choque positivo. Mas o povo só acredita nisso quando vir a vacina no posto de saúde.

Os indicadores de tensão também aparecem em parte do mercado financeiro. As taxas de juros no atacadão de dinheiro continuam subindo.Essas taxas são o piso do custo do crédito nos bancos e do capital para as empresas (que tomam empréstimos a fim de expandir negócios, construções, comprar equipamentos etc. ou levam em conta o custo do dinheiro para tomar tais decisões).

Os juros estão abaixo apenas do nível de pânico de abril; estão mais altos que faz um ano. As condições financeiras gerais apenas não estão mais apertadas porque a Bolsa viaja alto e o dólar deu uma recuada, melhorias devidas ao cenário externo (perspectiva de vacina e eleição americana).

O motivo da alta das taxas de juros é óbvio e praticamente o mesmo desde agosto ou setembro. Isto é, a dívida pública é alta, não se sabe o que o governo vai fazer do problema, não se sabe se vai ter avacalhação do teto, se o governo terá algum plano econômico crível e se terá capacidade política de aprová-lo.

Jair Bolsonaro não entende nada disso e Paulo Guedes a cada dia se desmoraliza até na praça que o elegeu como salvador da pátria. Os povos dos mercados suspeitam que, na hipótese ou perspectiva de queda de popularidade, Bolsonaro faça bobagem maior com as contas públicas.

Na dúvida, os donos do dinheiro vão cobrando mais caro nos empréstimos para o governo.Para lembrar: a baixa taxa de juros de curto prazo é, no curto prazo, a única alternativa para evitar uma alta convulsiva da dívida do governo e os tumultos decorrentes. Se também a Selic for para o vinagre, teremos problemas muito feios.

A economia despiorou mais rápido do que o esperado até agora, mas ainda deve encolher 4,6% neste ano, na estimativa dos economistas do setor privado. A previsão de crescimento para 2021 é de 3,4%. Nem recupera o que se perdeu neste ano horrível. Imagine-se a situação se não crescermos nem isso.


Affonso Celso Pastore: Riscos da inflação e de repressão financeira

Ainda que em manifestações públicas empresários e economistas expressem confiança no cumprimento do teto de gastos, não é isso que indicam o comportamento do câmbio e da curva de juros, cuja inclinação positiva continua aumentando. Não precisam manifestar sua crítica. O mercado fala por eles.

Para evitar que o risco de insolvência cresça devido ao aumento do custo da dívida, o Tesouro optou por financiar o déficit primário deste ano com títulos de prazos curtos, que têm prêmios de risco mais baixos. Na rolagem da dívida que vence, resgata os títulos de prazos longos com recursos da venda de títulos mais curtos.

Com isso o prazo médio da dívida pública já caiu para 35 meses, e deverá cair ainda mais em 2021, quando ocorrem resgates superiores a R$ 300 bilhões por trimestre. Nesta velocidade, o prazo médio de vencimento da dívida rapidamente cairá abaixo de 30 meses.

A dificuldade na administração da dívida é uma primeira manifestação da dominância fiscal, que leva à inflação e à repressão financeira (a obrigatoriedade imposta aos intermediários financeiros de comprarem títulos com vencimentos mais longos), que já existiu nos anos 70 e 80, quando muitos dos que atuam no mercado financeiro não haviam nascido e desconhecem a magnitude das distorções que provoca.

Os prêmios de risco se manifestam também na taxa cambial, que desde o início do ano já se depreciou perto de 40%. Se o Banco Central atuasse sobre a curva de juros reduzindo sua inclinação positiva, pressionaria ainda mais o câmbio, e se tentasse conter a depreciação cambial com intervenções mais ativas no mercado de câmbio elevaria a inclinação positiva da curva de juros, encurtando ainda mais o prazo médio da dívida.

Estes são exemplos de ações que apenas escondem a manifestação do risco em um dos dois mercados, e como o verdadeiro risco é fiscal, e não desaparece com mágicas, o prêmio apenas migraria de um mercado para o outro.

Nesta situação, o risco de inflação é maior do que se supõe. Há muito aprendemos que o repasse cambial para os preços dos bens tradables não é afetado pelo hiato do PIB. Diante de uma depreciação cambial, os produtores de soja, carne, milho, arroz, açúcar, entre muitos outros, elevam os seus preços no mercado interno e se não conseguirem vender o que produziram exportam todo o excedente àquele preço.

Por isso, a depreciação cambial eleva fortemente os preços pagos aos produtores de produtos agrícolas, que são repassados aos preços nos supermercados e nas feiras livres, elevando o item “alimentação no domicílio” dentro do IPCA, que nos últimos 12 meses já cresceu 15%.

Para os 66 milhões de brasileiros que por quatro meses se beneficiaram de uma ajuda emergencial de R$ 600 ao mês, há enorme diferença. Como a demanda de alimentos tem uma elasticidade-preço muito baixa, e eles têm de se restringir ao seu orçamento, que encolheu com o fim do auxílio emergencial, terão de cortar outros gastos para continuar comendo.

Isto significa que o peso da alimentação no domicílio na sua cesta de consumo será maior do que o usado pelo IBGE no cômputo do IPCA. Sua “inflação percebida” será maior do que a inflação medida por todos os possíveis núcleos computados pelos economistas. Não adianta tentar convencê-los de que houve apenas uma mudança de preços relativos porque as expectativas ainda estão ancoradas às metas.

O Banco Central sabe que a desancoragem ocorrerá, e os indivíduos sabem que sofreram uma dupla perda: da renda nominal, devido ao fim do auxílio emergencial, e da renda real, devido ao aumento da inflação percebida.

Nestas circunstâncias, a reação de um governo populista é transferir mais renda à população, aumentando o desequilíbrio fiscal e piorando o risco de inflação e da repressão financeira.

Se o País não reafirmar com ações concretas, e não com palavras, a sua determinação de atender ao teto de gastos, não há como impedir uma curva de juros mais inclinada e um câmbio mais depreciado.

O Banco Central seria colocado na incômoda posição de ter de elevar a taxa de juros quando a economia ainda se encontra fortemente deprimida, e para fugir desta armadilha pode ser forçado pelo governo a taxar as saídas de capitais ou mesmo impedi-las para evitar uma sangria nas reservas.

Todas estas formas de repressão financeira são extremamente prejudiciais à economia, e a única forma de evitá-las é o retorno rápido e sem subterfúgios à austeridade fiscal.

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.


Míriam Leitão: Inflação em alta na pior hora

Por Alvaro Gribel (interino)

A inflação subiu em má hora e voltou a preocupar. O país ainda vive o pior da recessão no mercado de trabalho, mesmo que tenha atenuado parte de seus efeitos com as políticas de governo e o auxílio emergencial. Os preços sobem nos produtos que os pobres mais consomem. Os índices do atacado dispararam, criando um problema no mercado de imóveis alugados que só será superado com muita negociação. A inflação acelera num momento de dúvida sobre os juros futuros. De um lado, a economia precisa de estímulos, de outro, os sinais confusos do governo na área fiscal pressionam o custo da dívida. O IPCA está baixo, mas a natureza desta inflação, a hora em que ocorre, o peso sobre os alimentos, tudo isso se tornou um complicador.

A inflação de setembro foi a mais alta para o mês desde 2003. Se a análise sobre os índices de preços não pode se concentrar no dado de um único mês, também não dá para ignorar o que diz a trajetória. E a taxa acumulada em 12 meses também voltou a acelerar. Saiu de 1,88% em maio para 3,14% em setembro. É verdade que está bem abaixo da meta do ano, de 4%, mas esse movimento surpreendeu os economistas e deve aumentar a cautela do Banco Central. A possibilidade de um novo corte da Selic já era baixa e agora ficou praticamente descartada. Ontem foi dia de revisões para cima nas projeções de inflação em bancos e consultorias.

Os alimentos foram responsáveis por mais de 70% da inflação de setembro. Isso tira renda das famílias porque são itens essenciais de compra. Mas os economistas dizem que esse choque será temporário e tem pouca capacidade de se espalhar para outros produtos. Ou seja, está muito concentrado, o que é uma boa notícia. Ainda assim, o departamento econômico do Bradesco chamou atenção para a inflação dos serviços, que saiu de -0,47% em agosto para 0,17% em setembro. Esse dado será monitorado com lupa nos próximos meses.

Em situações normais, a inflação no patamar atual preocuparia pouco, porque a taxa em 12 meses permanece abaixo da meta. Mas ela ocorre em uma conjuntura de piora dos indicadores fiscais, de aumento do dólar, risco de rompimento do teto de gastos e estresse de vários ativos financeiros. Já não se trata apenas de números ligados à bolsa de valores, mas sim de aumento do custo da dívida do Tesouro. Nessa circunstância, voltar a falar de inflação é tudo que o Brasil não precisava.

Risco de indigestão

O gráfico mostra a inflação dos alimentos em domicílio.Pelas projeções do banco ABC Brasil, ela vai continuar acelerando em 12 meses, até 18,71% em novembro, para fechar ao ano em 14,11%. Muito elevada.

Emprego prejudica Trump

A economia americana sempre surpreendeu na abertura de vagas em períodos pós-crise, mas isso não está acontecendo agora. Segundo levantamento do economista Marcel Balassiano, do Ibre/FGV, as duas principais pesquisas de emprego nos EUA mostram que o país perdeu cerca de 20 milhões de vagas, mas só recuperou em torno de 11 milhões. Esses dados podem atrapalhar as chances de reeleição do presidente Donald Trump. No mercado financeiro, uma vitória folgada de Biden também seria bem recebida, porque diminui a chance de Trump questionar o resultado judicialmente. O pior cenário seria uma vitória apertada do democrata. Isso poderia estressar as bolsas.

Nem pensar

O mercado financeiro não quer nem ouvir falar na prorrogação do auxílio emergencial no ano que vem. Pelas palavras de um gestor, a reação seria “horrorosa” caso o governo e o Congresso acionem novamente o orçamento de guerra, dentro do pacto federativo, para driblar o teto de gastos. De um jeito ou de outro, a despesa irá pressionar o déficit e a dívida bruta, ainda que legalmente não descumpra a regra do teto.