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Foto reprodução: Nádia Pontes / DW Brasil

Joenia Wapichana: "Foi um mandato de resistência à boiada"

Nádia Pontes | DW Brasil

Perto do fim de seu mandato como deputada federal, Joenia Wapichana, a primeira mulher indígena eleita para o Congresso, sabia que teria uma estreia difícil. Líder do seu partido (Rede) na Câmara, a advogada diz ter evitado muita "tratorada" e "boiada" nos embates com deputados, em referência a projetos de lei considerados anti-indígenas e antiambientais.

Formada em Direito pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), ela atua há décadas como assessora jurídica em movimentos indígenas. Em 2008, foi a primeira advogada indígena a defender no Supremo Tribunal Federal (STF) o polêmico caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Durante a recente 27ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP27), no Egito, ela conversou com a DW sobre suas expectativas em relação a um Ministério dos Povos Originários, promessa de campanha do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva que foi confirmada após a vitória dele na corrida presidencial contra Jair Bolsonaro.

"Esperamos, principalmente, um avanço na proteção territorial", disse Wapichana sobre a demarcação de terras indígenas, paralisada sob Bolsonaro.

"Nós esperamos muito tempo por uma recomposição do Estado brasileiro que reconhecesse a importância dos povos indígenas. Então esse espaço tem que ser de respeito. Os povos indígenas têm toda a capacidade hoje de estarem fazendo e encaminhando suas próprias demandas", afirmou.

DW: A senhora está chegando ao fim do mandato de deputada federal, eleita como a primeira mulher indígena na Câmara. Como foram esses quatro anos de trabalho sob o governo de Jair Bolsonaro?

Joenia Wapichana: Foram difíceis, mas quem disse que seria fácil? Dentro de um governo fascista, negacionista, dentro de um governo anti-indígena, antiambientalista.

Foi um momento de resistência, de resiliência, mas também de mostrar a capacidade de uma indígena vinda de Roraima, um estado que rebate direitos indígenas como demarcação das terras e que tem posicionamento antiambiental. Um estado com uma série de casos a serem resolvidos, como a invasão dos garimpeiros na Terra Indígena Yanomami.

A minha atuação parlamentar, a partir do meu estado, do meu povo, sendo indicada a partir de uma assembleia indígena, mostrou que é possível fazer uma política diferente. Uma política que vem trazer o olhar indígena, a questão do valor da coletividade, de manter a floresta em pé. Como indígena originária, eu diria que foi um mandato de resistência. Não tem nome mais apropriado que esse.

Tentamos resistir à boiada, à tratorada, seguramos o máximo possível todos os projetos antiambientais e anti-indígenas. Conseguimos segurar muitas coisas. Acho que esta nova legislatura que vem aí vai continuar sendo uma questão de resistência, mas também propositiva.

O meu mandato contou muito também com o apoio da sociedade civil organizada, que nos deu a força para ser coerentes com os compromissos que nosso país precisa avançar.

Mesmo com essa maioria bolsonarista dentro do Congresso, dentro da Câmara, onde eu estava, a gente conseguiu algum espaço para propor projetos de extrema importância.

Aqui na Conferência do Clima eu falei sobre isso, sobre o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) da Segurança Climática. Foi fruto de uma mobilização de pessoas em todo o país. Nós conseguimos aprovar o relatório na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no mês passado.

Foram muitos embates com a bancada ruralista?

Muitos. Mas a gente conseguiu manter alguns direitos. Lutamos no momento que era mais necessário em favor dos povos indígenas. Fui relatora do projeto que foi aprovado, o plano de enfrentamento à covid.

Além do negacionismo de Bolsonaro neste desgoverno, a gente enfrentou anos de uma pandemia que matou muitos brasileiros e afetou também as comunidades indígenas. Então, o fato de eu ser parlamentar permitiu que outras autoridades pudessem ouvir os povos indígenas e a gente pudesse construir uma política para salvar vidas.

O mandato teve essa visão de trazer os povos indígenas não só pela voz, pelo simbolismo, mas pela capacidade que nós temos de representar o nosso povo politicamente dentro do Parlamento brasileiro e, assim, usar as ferramentas que o Parlamento nos dá.

Congresso que assume no ano que vem contará com duas mulheres indígenas eleitas e um grande número de candidatos que se elegeram apoiando Bolsonaro. O que esperar desta legislatura?

A gente já tinha um Congresso, digamos, bastante pesado. Infelizmente, o Executivo também era pesado. O governo fechou o diálogo com povos indígenas, rompeu com toda a sociedade civil, fechou participação.

Agora vem o governo Lula, que eu defendi, mesmo sendo ameaçada lá no meu estado de Roraima por garimpeiros. Mas eu vejo que é um novo governo que vai dar possibilidade de diálogo. 

Agora a gente tem uma questão essencial, que é o presidente Lula no Executivo, que é uma pessoa que tem demonstrado abertura para o diálogo, principalmente, e maturidade muito importante de exercer uma presidência e juntar pessoas.

Espero que esse seja o diferencial desta legislatura em que, antes mesmo de ele tomar posse, já inicia diálogo com os partidos. É assim que é a política, uma conversa, um diálogo, para ter espaço para propor e decidir.

A partir do Executivo, é possível trabalhar políticas públicas, reformar, resgatar, recuperar agendas importantes, como a socioambiental, indígena, climática. Dá para fazer ações e programas positivos no sentido de proteger a floresta, os guardiões que estão na ponta.

Eu sei que vai ser um desafio muito grande. No Brasil, como em todo o mundo, existe uma crise social, uma crise econômica, que a gente precisa conciliar. Mas só o fato de ter um compromisso afirmado, e reafirmado pelo presidente aqui na COP, nos dá a clareza que vai ser importante ele ali, mesmo tendo um Congresso majoritariamente tendo sido eleito pelo bolsonarismo.

Como a senhora imagina um Ministério dos Povos Indígenas, algo inédito na história do país?

Primeiro, que precisa ser em construção com os povos indígenas. Um espaço de articulação, de fortalecimento das políticas públicas, de direito, de implementação. Nós temos muitos planos, mas falta implementação. 

Esperamos diálogo com os povos indígenas, que vêm de diferentes regiões, biomas, culturas. Esperamos, principalmente, um avanço na proteção territorial.

Nós esperamos muito tempo por uma recomposição do Estado brasileiro que reconhecesse a importância dos povos indígenas. Então esse espaço tem que ser de respeito. Os povos indígenas têm toda a capacidade hoje de estarem fazendo e encaminhando suas próprias demandas.

Foram quatro anos de desmonte de políticas públicas e que merecem urgência. Seria o ministério para fortalecer a relação dos indígenas com o Estado brasileiro.

https://www.youtube.com/watch?v=b1XbbOqIeWA

Matéria publicada originalmente no DW Brasil