guerra contra o vírus

Cristina Serra: Ge-no-ci-da!

Peço que você repita a palavra comigo, escandindo as sílabas

Em meados do ano passado, o Brasil já ia pela casa dos 50 mil mortos pela pandemia. E o que fez o genocida? Incentivou seus cães ferozes a invadir hospitais. Na época, o cartunista Renato Aroeira traduziu numa charge a indignação de muitos brasileiros. No desenho, a cruz vermelha dos hospitais é convertida na suástica nazista pelo genocida. Uma imagem forte e poderosa. O Ministério da Justiça decidiu perseguir Aroeira, mas deu um tiro no pé. Em solidariedade, mais de 70 artistas republicaram a charge e amplificaram a crítica.

Movimento semelhante ocorreu nesta semana, quando o Brasil já está perto de alcançar cinco vezes mais mortes do que em junho. Cinco manifestantes foram presos em Brasília por expor um cartaz que reproduz o trabalho de Aroeira e acrescenta a palavra que está no centro do debate nacional: genocida. A mesma palavra motivou uma intimação policial ao youtuber Felipe Neto, que a usara para criticar o presidente"¦ genocida.

Rapidamente, uma frente de advogados criou a plataforma "Cala boca já morreu", que oferece defesa gratuita para quem for processado ou preso por críticas ao genocida. Felipe Neto não se deixou intimidar e revidou à altura no ecossistema que conhece como poucos e por meio do qual alcança milhões de pessoas. Ele postou o vídeo "Bolso família", programa de transferência de renda para uma única família, no caso, a do genocida.

Bem que a oposição poderia tomar aulas de comunicação com o youtuber. Graças ao seu alcance, o epíteto pegou e estará colado para sempre na testa de Bolsonaro: genocida! Seus atos estimulam a reprodução do vírus que está matando milhares. Por isso, Bolsonaro não é um assassino comum. É um genocida.

O país derrete no colapso hospitalar e sanitário. Todos os dias são de despedidas. Para não adoecer de Brasil, temos que expressar nossa indignação. Neste texto, usei 11 vezes o termo genocida. E peço que você repita comigo, escandindo as sílabas: GE-NO-CI-DA!


Hélio Schwartsman: No mundo de Bolsonaro

É possível conciliar o seu mundo ao mundo dos fatos?

No mundo dos fatos, Jair Bolsonaro negou a gravidade da epidemia de Covid-19, sabotou medidas de distanciamento social, promoveu tratamentos "mágicos" que não funcionam e foi omisso na compra de vacinas. Ainda provocou aglomerações com suas aparições públicas e espalhou "fake news" sobre as máscaras. Objetivamente, ele responde por parte das quase 300 mil mortes que o Brasil registra.

No mundo de Jair Bolsonaro, a história é bem diferente. No início deste mês, o presidente fez uma avaliação de sua performance ao longo de um ano de pandemia: "Desculpe aí, pessoal, não vou falar de mim, mas eu não errei nenhuma desde março do ano passado".

É possível conciliar esses mundos, isto é, há uma explicação lógica para pelo menos compreender a discrepância? Sim, e ela é de ordem psicológica. O cérebro humano é um trapaceiro. Ele não hesita em torcer a linguagem e os fatos para poupar-se das dores de dissonâncias cognitivas e construir para si próprio uma autoimagem aceitável.

Meu exemplo favorito da magnitude dessa capacidade é a declaração de um "serial killer" capturado nos EUA em 1994: "Além das duas pessoas que matamos, das que ferimos, da mulher em que demos coronhadas e das pessoas que fizemos comer vidro, não machucamos ninguém".

E Bolsonaro acredita mesmo que foi impecável em relação à Covid-19? A pergunta é traiçoeira. Gostamos de pensar nossos cérebros como um comando centralizado, mas a realidade é bem mais multifacetada. Uma imagem interessante é a proposta pelo neurocientista David Eagleman, segundo o qual o cérebro é uma democracia representativa, na qual diversos módulos e sistemas podem ter opiniões divergentes sobre o mesmo tema. Vence quem, num dado momento, grita mais alto.

O trágico dessa história é que quanto mais cobramos responsabilidade de Bolsonaro, mais seu cérebro busca refúgio no mundo paralelo no qual o ele "não errou nenhuma".


Demétrio Magnoli: O paradoxo do centro

Siglas têm nas mãos fracassos gravados na memória coletiva, mas não têm narrativa

Lula versus Bolsonaro. As sondagens indicam um segundo turno moldado pela mesma polarização política de 2018. Mas isso, como sabe qualquer especialista em pesquisas, é o som do passado —e eleições são sobre o futuro.

Tanto o ex como o atual presidente comandam minorias consolidadas, potencialmente capazes de impulsioná-los ao turno derradeiro, mas não de garantir-lhes o triunfo diante de uma terceira opção. A paisagem é mais ampla que o cenário numérico: objetivamente, o chamado "centro" tem uma oportunidade singular de bater um e outro em 2022. Em tese, a missão exige apenas uma campanha eficaz de esclarecimento político.

Não se trata de apontar, no plano ideológico, as simetrias verdadeiras e falsas (pois existem as duas) entre as candidaturas polares. Eleições só são sobre ideologia para a minoria que se imagina politizada. Trata-se de identificar e descrever dois fracassos históricos inapeláveis.

O fim do longo ciclo global de expansão das economias emergentes iluminou os contornos completos do lulismo. Lula/Dilma produziram uma devastadora recessão econômica junto com o assalto corrupto às empresas estatais.

A plataforma lulista, um varguismo atualizado, é essencialmente conservadora: perpetuar as engrenagens de um Estado perverso que premia o estrato superior do funcionalismo e os empresários dependentes de contratos públicos suspeitos ou gordos subsídios estatais. Seu resultado é condenar-nos à ineficiência econômica, gerar sucessivas crises fiscais e impedir a qualificação dos serviços públicos universais.

O governo Bolsonaro revelou-se, desde o início, uma regressão autoritária e, no campo econômico, um estelionato eleitoral. Paulo Guedes, o superministro que prometeu as chaves do paraíso, não entregou privatizações, concessões, abertura comercial ou reformas estruturais. No lugar disso, caminhamos a passos largos para uma combinação tóxica de inflação e estagnação.

Mas a perversão bolsonarista evidenciou-se inteiramente durante a pandemia. O negacionismo chucro, a sabotagem perene das medidas de contenção sanitária, a irresponsabilidade na aquisição de vacinas, a inação diante da tragédia em Manaus formam uma coleção de crimes contra a saúde pública. Bolsonaro é um vírus letal.

O centro político tem tudo nas mãos: a experiência recente, gravada na memória coletiva, de dois fracassos consecutivos. Mas não tem narrativa, discurso, programa ou rosto. E isso porque, desde o segundo turno de 2018, rendeu-se ao bolsonarismo. Os principais partidos centristas —o PSDB, o MDB e o DEM— associaram-se, em graus variados, ao governo da extrema direita. A adesão, aberta ou oculta, pesa como chumbo. Não há sabão capaz de limpar as mãos que tocaram uma poça tão pútrida.

A explicação sugerida pela esquerda para o gesto vergonhoso está errada. A coalizão bolsonarista não representa a elite econômica nacional, melhor servida nos governos FHC e Lula. Pelo contrário, é uma liga frágil que reúne fanáticos extremistas, militares ressentidos da reserva, facções da polícia e milícias criminosas, máfias regionais de desmatadores, bispos de negócios e uma franja periférica do empresariado. Bolsonaro capitaneia a nau de um governo lúmpen.

As raízes da estranha adesão podem ser procuradas no antipetismo visceral difundido durante a louca aventura econômica dilmista ou, talvez, numa camada bem mais profunda da nossa história, que remete à truncada, precária absorção dos valores democráticos. Qualquer que seja a explicação, o advento do bolsonarismo provou uma tese angustiante: no Brasil, o centro político desconhece a fronteira de princípios que deveria separá-lo da direita reacionária.

2022 não está escrito nas estrelas. Mas a eleição que tinha tudo para encerrar duas experiências falimentares parece caminhar rumo à reencenação da farsa vulgar de 2018.


João Gabriel de Lima: Dois presidentes na guerra contra o vírus

O Chile pode ser a inspiração para a reviravolta que o Brasil precisa dar

Em março de 2018, Sebastián Piñera tomou posse como presidente do Chile. Sete meses depois, do outro lado da cordilheira, Jair Bolsonaro venceu o segundo turno no Brasil. Ambos derrotaram as esquerdas em seus países. Piñera triunfou num ambiente um pouco menos polarizado – como brinca o economista Samuel Pessoa, o debate político chileno, na comparação com o brasileiro, lembra uma mesa acadêmica opondo a Universidade de Chicago ao MIT.

No meio do mandato, Piñera enfrentou insatisfação e protestos. Sua popularidade caiu a 6% em janeiro de 2020. Veio a pandemia, e Piñera mostrou senso de urgência. Em maio de 2020, determinou que seu subsecretário de Relações Internacionais, Rodrigo Yañez, se dedicasse exclusivamente à compra de vacinas. O Chile usou a seu favor o fato de ser uma das economias mais abertas do mundo, participante de mais de 30 tratados internacionais. Piñera supervisionou pessoalmente as negociações.

Enquanto o Chile brigava por vacinas, o Brasil as esnobava. De acordo com o presidente do Instituto ButantanDimas Covas, o governo federal recusou, ao longo de 2020, quatro ofertas de lotes da Coronavac. Em dezembro, Bolsonaro desdenhou do imunizante da Pfizer que, segundo ele, poderia transformar seres humanos em jacarés. No mesmo mês, o Chile recebeu o primeiro lote de vacinas, destinadas aos profissionais de saúde. Da Pfizer.

Hoje o Chile é exemplo na América Latina. Na quarta-feira 17 de março, 36,7% da população estava vacinada, ante 5,6% no Brasil. O Chile deve atingir um índice confortável de imunização até o fim de junho. Ao longo desta semana, o Brasil cruzou, na média móvel, o umbral das 2 mil mortes diárias – sem nesga de luz ao fim do túnel. 

Ao negociar com vários laboratórios, o Chile driblou a escassez de imunizantes no mercado – problema que assombra o Brasil. “Só em maio deveremos ter maior disponibilidade de vacinas”, diz a epidemiologista Silvia Martins, da Universidade Columbia, personagem do minipodcast da semana.

Com a boa gestão da pandemia, Piñera recuperou parte da popularidade – está em 24% e em ascensão. Nesta semana, a rejeição a Bolsonaro chegou a 54%, a maior até agora. 43% dos brasileiros culpam o presidente pela proliferação da covid-19. Como observou o Estadão em editorial, os eleitores decidiram responsabilizar Bolsonaro, e não os governadores, pela tragédia humanitária.

Os impactos econômicos já se fazem sentir. A instabilidade do Brasil assusta os investidores, e o Banco Central acaba de elevar os juros para evitar a disparada da inflação. No Chile, houve o tombo regulamentar de 2020. O mercado, no entanto, revisou para cima as projeções para 2021 diante do sucesso da vacinação, como mostrou o colunista Fábio Alves no Estadão – mesmo com o número ainda alto de casos no país, que estuda um novo lockdown.

Em conversa com apoiadores na quinta-feira, 18, o presidente Bolsonaro perguntou: “Qual país do mundo está tratando bem a questão da covid? Aponte um”. Fica a dica. O Chile pode ser a inspiração para a reviravolta que o Brasil precisa dar. Segundo o jornal El País, Peru, Colômbia, Uruguai, Paraguai e México destacaram especialistas para estudar o caso chileno.

De acordo com o STF, todos os entes federativos têm responsabilidades no combate à pandemia. A comparação com o Chile mostra que o presidente tem um papel fundamental. Lá, atuação proativa e senso de urgência fizeram toda a diferença.