Governo Militar

BBC Brasil: Brasil de Bolsonaro tem maior proporção de militares como ministros do que Venezuela

O Brasil de Jair Bolsonaro já tem, proporcionalmente, mais militares como ministros do que a vizinha Venezuela, onde há muito tempo as Forças Armadas abdicaram da neutralidade e se tornaram fiadoras da permanência de Nicolás Maduro no poder

Luis Barrucho, BBC News Brasil em Londres

Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, essa presença expressiva de militares, especialmente da ativa, atuando dentro do governo, contribui para a ideologização de uma instituição que deveria ser neutra.

Fortalece esse argumento a recente fala do ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Augusto Heleno, que chamou o Congresso de "chantagista".

A declaração de Heleno inspirou a convocação de manifestações contra o Congresso para o próximo dia 15 de março. Em um áudio captado durante uma transmissão em rede social, o ministro foi flagrado dizendo que Bolsonaro não poderia aceitar que o Legislativo queira avançar sobre o dinheiro do Executivo.

"Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente. F*da-se", disse aos ministros da Economia, Paulo Guedes e da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos.

Bolsonaro encaminhou a amigos um vídeo que convoca a população a ir às ruas para defendê-lo. Lideranças políticas, como os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso, criticaram o presidente e falaram sobre "crise constitucional".

"As evidências históricas nos mostram que a democracia tem uma sobrevida maior quando há um controle civil das Forças Armadas. Ainda que, por ora não se veja um movimento mais efetivo dos militares no sentido de gerar desgaste democrático, trata-se de uma mudança na correlação de forças que gera preocupação e, se não houver esse controle, certamente representa uma das fontes de risco para a democracia", diz à BBC News Brasil Rafael Cortez, cientista político da Tendências Consultoria Integrada.

"Os regimes políticos são mais instáveis quando não há esse controle. Gerir o monopólio da força não é trivial e não é por um acaso que boa parte dos regimes autoritários do mundo ou regimes com forte instabilidade tem um papel político dos militares bastante efetivo", acrescenta.

Para Christoph Harig, pesquisador da Universidade Helmut Schmidt, em Hamburgo, na Alemanha, e doutor em Estudos de Segurança na Universidade King's College, em Londres, onde estudou Brasil, "já é problemático ter vários militares da reserva no governo, mas convidar aqueles da ativa afeta diretamente as Forças Armadas como instituição e evidentemente ridiculariza seu suposto papel 'não partidário' na democracia brasileira".

Composição ministerial

Atualmente, os militares controlam oito dos 22 ministérios do governo de Jair Bolsonaro (36,36%). Com a recente nomeação do general Walter Souza Braga Netto para a Casa Civil, o Palácio do Planalto ficou totalmente 'militarizado', embora Jorge de Oliveira Francisco, da Secretaria-Geral da Presidência, não seja egresso das Forças Armadas — ele é major da Polícia Militar do Distrito Federal.

Os militares que estão no governo atual, além de Braga Netto, são: tenente-coronel da reserva Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), general da reserva Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), general da reserva Fernando Azevedo e Silva (Defesa), general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), almirante Bento Costa Lima (Minas e Energia), capitão da reserva Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União) e capitão da reserva Tarcísio Freitas (Infraestrutura). Braga Netto e Ramos ainda estão na ativa, embora o primeiro, pressionado, tenha decidido antecipar sua ida à reserva, marcada para o meio deste ano.

Já no caso da Venezuela, militares comandam dez dos 34 ministérios (29,4%), a cifra mais baixa dos últimos anos, segundo a ONG venezuelana Control Ciudadano. São eles: coronel Jorge Elieser Márquez (Despacho da Presidência e Continuação da Gestão do Governo), major-general Néstor Reverol (Relações Interiores, Justiça e Paz), general Vladimir Padrino López (Defesa), coronel Wilmar Castro Soteldo (Agricultura Produtiva e Terras), general Ildemaro Moisés Villarroel Arismendi (Habitação e Moradia), major-general Manuel Quevedo (Petróleo), major-general Carlos Leal Tellería (Alimentação), general de divisão Raúl Alfonso Paredes (Obras Públicas), Almirante Gilberto Pinto Blanco (Desenvolvimento de Mineração Ecológica) e major-general Gerardo Izquierdo Torres (Nova Fronteira de Paz).

O número de militares como ministros no governo de Jair Bolsonaro também é superior a três dos cinco presidentes da ditadura militar (Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo) — cada um deles tinha na composição de seus ministérios sete nomes das Forças Armadas. Na mesma base de comparação, o governo de Bolsonaro empata com o de Costa e Silva, mas ainda está atrás de Castelo Branco, que tinha doze militares como ministros.

Além disso, o Palácio do Planalto conta com cargos de destaque ocupados por egressos das Forças Armadas, como o próprio presidente, que é capitão reformado do Exército, o vice-presidente Hamilton Mourão, general da reserva, além do porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, também general da reserva.

No último dia 14 de fevereiro, Bolsonaro também nomeou o almirante Flávio Augusto Viana Rocha para comandar a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), que ganhou novas funções e agora está subordinada diretamente ao presidente. Oficial-general da ativa da Marinha, Rocha estava à frente do 1º Distrito Naval. A SAE estava ligada anteriormente à Secretaria-Geral da Presidência, uma das quatro pastas com status de ministério que funciona no Palácio do Planalto.

'Neutralidade'

Segundo Cortez, da Tendências Consultoria Integrada, o papel das Forças Armadas deveria ser "apolítico".

"A partir do momento em que os militares passam a exercer um papel mais político, sofrem desgaste e passam a ser percebidos como atores políticos, não só os da reserva como os da ativa. Isso gera um choque entre mundos: um que funciona como base na hierarquia e disciplina e outro com base em relações mais horizontais. Não há uma escala formal no universo da política. São dois modus operandi bastante complicados", diz.

"Quando os militares passam a fazer parte do governo, politiza-se a instituição e essa separação vai se tornando mais difícil, especialmente quando se combinam membros da reserva e da ativa. Essas relações vão se tornando mais delicadas e mais complexas. Boa parte da legitimidade das Forças Armadas é ter esse papel não político", acrescenta.

Christoph Harig, da Universidade Helmut Schmidt, concorda. Ele relembra o caso do general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, que foi ministro-chefe da Secretaria de Governo e deixou o cargo em junho do ano passado, seis meses depois de ser empossado, após se envolver em uma crise com o filho do presidente, Carlos Bolsonaro, e o escritor Olavo de Carvalho, guru ideológico de Bolsonaro.

Santos Cruz se tornou, então, crítico do governo.

"Não acho que isso (presença de militares no governo) enfraqueça diretamente o conceito de democracia, mas levanta questões sobre responsabilidade e relações civil-militares (especialmente porque alguns são da ativa que foram apenas 'emprestados' ao governo federal). Os militares insistem que a instituição não se envolve na política do governo e que quem integra o governo não representa os militares como instituição."

"Mas essas linhas divisórias estão cada vez mais embaçadas, especialmente se os militares puderem retornar à ativa posteriormente. Eles podem dizer que estão sempre agindo no melhor interesse do país, mas os militares estão cada vez mais sendo identificados como parte do governo Bolsonaro", acrescenta.

"Basta comparar com os EUA, onde o presidente Donald Trump agora critica Kelly (general da reserva John Kelly, ex-chefe de gabinete de Trump) por se manifestar depois de deixar o governo: se, hipoteticamente, alguém como Braga Netto brigasse com Bolsonaro (como Santos Cruz 'brigou'), ele seria capaz de retornar à suposta atividade apartidária como oficial militar?", questiona.

'Diversas fases'

Cortez lembra que a relação de Bolsonaro com os militares passou por diversas fases.

"Não há dúvida de que parte do processo de legitimização da candidatura de Bolsonaro passou por esse apoio dos militares", diz.

Mas, uma vez iniciado o mandato, houve atritos. Além de Santos Cruz, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, também foi alvo de críticas.

"Num primeiro momento, houve um ativismo do vice-presidente, general Hamilton Mourão, bastante relevante de equilibrar e olhar com cuidado determinadas ações presidenciais. E isso perdeu fôlego ao longo de 2019", diz Cortez.

"Havia uma expectativa que me parece que não condiz tanto com a realidade de que as Forças Armadas iriam controlar eventuais abusos do presidente Bolsonaro, que imprimiriam um pragmatismo na administração do governo, que também é muito marcada por certa guerra ideológica. Os militares seriam assim um grupo que exerceriam esse poder de veto desses excessos. Essa expectativa não se confirmou", acrescenta.

Para Cortez, mais recentemente, ocorreu "uma segunda etapa desse papel mais ativo dos militares de ocuparem pastas mais importantes".

"A ideia de se cercar de militares reforça o mandato Bolsonaro diante de um conjunto bem relevante de críticas do estilo bolsonarista. É um movimento estratégico", diz.

Outro risco da atuação política de militares dentro do governo, também apontado por especialistas, é a contaminação da caserna, cuja simpatia ao bolsonarismo é amplamente conhecida. Soldados poderiam sentir-se assim 'avalizados' em possíveis reivindicações pelo posicionamento ideológico de seus superiores.

Recentemente, motins ilegais de policiais militares se espalharam por todo o Brasil.

"Ao trazer as Forças Armadas para o debate político, isso gera desgaste. Preservar o papel institucional passa por esse distanciamento. Toda essa conjuntura vai gerar um dilema para a instituição", conclui Cortez.


Luiz Carlos Azedo: Resolvam isso aí!

“A carreira militar é um canal de ascensão social, mas não é nem deve ser uma rampa de acesso direto ao poder político”

O aperto de mãos entre o falecido general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército, e o recém-empossado presidente José Sarney, em 1985, na transição do regime militar à democracia, simbolizou o momento em que a tutela militar sobre a nação, iniciada pouco antes da Guerra do Paraguai(1864 a 1870), ainda no Império, havia acabado. Durante mais de um século, até então, militares da ativa atuaram politicamente e se pronunciaram sobre a vida institucional do país, muitas vezes de forma truculenta e brutal. O gesto pôs um ponto final na ditadura implantada após a destituição do presidente João Goulart, em 1964.

Na madrugada de 15 de março de 1985, com a nação perplexa diante da internação de Tancredo Neves no Hospital de Base de Brasília, o então ministro do Exército, com a Constituição na mão, convencera as lideranças políticas da época de que o vice-presidente eleito, José Sarney, deveria tomar posse. Havia controvérsias, alguns achavam que Ulysses Guimarães, o líder do MDB, deveria assumir interinamente e convocar novas eleições. O então chefe da Casa Civil, ministro Leitão de Abreu, ajudou a dirimir dúvidas entre os dois principais protagonistas da democratização: Sarney queria que Ulysses assumisse. Seria o caos. Para evitar a crise, Ulysses sempre defendeu o contrário. O general comunicou a decisão da maioria: “Boa noite, presidente!”, disse-lhe ao telefone.

Nos bastidores do finado governo Figueiredo, alguns generais pretendiam aproveitar a situação para manter o regime. Além do próprio presidente da República, o ministro do Exército, Walter Pires, e o chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), Octávio Medeiros. Durante a madrugada, Pires ameaçou movimentar as tropas para manter João Batista Figueiredo, mas Leitão de Abreu disse-lhe que já não era mais ministro. Sua demissão viria publicada no Diário Oficial. Leônidas Pires Gonçalves era o novo chefe militar. Figueiredo saiu pelos fundos do Palácio do Planalto, não transmitiu o cargo. À Presidência, Sarney convocou uma Constituinte e passou o cargo ao sucessor eleito pelo voto direto, Fernando Collor de Mello, com a Constituição de 1988 em plena vigência. Presidiu o país em meio a turbulências, uma hiperinflação galopante e milhares de greves operárias e ocupações de terras, mas ajudou a construir um Estado democrático.

Certos momentos parecem congelar a História, como aquele do aperto de mãos do general e o político. No século passado, o principal foi Conferência de Yalta, na Crimeia, entre 4 e 11 de fevereiro de 1945, o segundo de três encontros entre Franklin Roosevelt (Estados Unidos), Winston Churchill (Reino Unido) e Josef Stálin (União Soviética), com o objetivo de repartir as zonas de influência entre as três potências vitoriosas. Entretanto, com o fim da União Soviética e o colapso dos regimes comunistas da Europa, o fio da história foi retomado, descongelando um filme iniciado com o atentado de Sarajevo, em 28 de junho de 1914, no qual o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, foi morto por um nacionalista sérvio, pretexto para a Áustria-Hungria, da qual faziam parte a Bósnia e a Croácia, declarar guerra à Sérvia, um mês depois, dando início à I Guerra Mundial.

Ressentimentos

No Brasil dos anos 1980, os militares se retiraram do poder derrotados, mas em ordem. Foram mais bem-sucedidos na estratégia de abertura política iniciada pelo presidente Ernesto Geisel do que na condução da economia, devido ao fracasso do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), colapsado pela crise do petróleo. A anistia recíproca de 1979, consolidada pela nova Constituição, pôs uma pedra sobre o passado. Todas as tentativas de revisão que colocaram em risco esse pacto entre os militares e a antiga oposição foram rechaçadas, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Restaram a eterna dor dos familiares dos desaparecidos e a frustração e ressentimento daqueles que viam na caserna uma via de ascensão ao poder político, e não, exclusivamente, uma vocação militar, como acontece desde 1985. A vida militar, que exige estudo, disciplina e sacrifícios, é um canal de ascensão e mobilidade social, como certas profissões liberais e carreiras do serviço público, mas não é nem deve voltar a ser uma rampa de acesso direto ao poder político na democracia.

Somente durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que bajulou e foi bajulado pelos comandantes militares, voltou-se a discutir o papel das Forças Armadas, numa ótica de projeção nacional na globalização, além da atualização e modernização das forças armadas e suas doutrinas. O ressentimento em relação à marginalização imposta por governos anteriores, principalmente o do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, porém, foi estimulado. Entretanto, o governo de Dilma Rousseff foi um desastre em relação aos militares. Havia ojeriza recíproca, por causa do passado, que os militares dissimulavam, mas a “presidenta” fazia questão de compartilhar, até nos elevadores. Quando o governo colapsou, com sua nova matriz econômica, em meio à recessão e a Lava-Jato, os militares lhe deram o troco. “Resolvam isso aí!”, dizia o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, um grande líder militar, aos políticos que se queixavam. Era a senha para o impeachment.

Enfraquecido por denúncias, o presidente Michel Temer devolveu aos militares o Ministério da Defesa, nomeando o general Joaquim Silva e Luna para o cargo. O resto da história estamos assistindo. O engajamento dos militares na eleição de Jair Bolsonaro, na onda do descontentamento popular com a corrupção e a recessão; a formação de um governo assumidamente reacionário nas ideias, ultraliberal na economia e conservador nos costumes.

No Palácio do Planalto, generais pragmáticos, alguns com o cacoete do mandonismo, outros com gosto pela política do baixo clero, são comandados por um ex-capitão nostálgico dos tempos da linha-dura de Costa e Silva e Emílio Médici, o presidente errático. Certo estava o “Coronel Y”, nos idos da Revolução de 1930, que mais tarde viria a ser o marechal Castelo Branco, o primeiro presidente do regime militar, ao defender uma Lei de Inatividade que obrigasse todo militar a se desligar definitivamente da carreira ao assumir funções civis e deixar a fila das promoções andar. Como a célebre fotografia dos Três Grandes e Yalta, a questão militar foi “descongelada”. No lugar da mão amiga, já estamos vendo o braço forte exibir seus músculos, como se fosse uma reprise cinematográfica.

Até breve: nas próximas duas semanas, em férias, novamente me ausentarei da coluna.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/resolvam-isso-ai/

Vinícius Müller: Violência e desigualdade. Como o Exército e a escravidão moldaram nossa História

A efeméride dos 130 anos da Lei Áurea e a descoberta de documentos referentes ao governo do general Ernesto Geisel revelaram o poder que a História tem de nos incomodar 

Há quem pense que ela sempre se repita em ciclos. Outros, como farsa ou tragédia. No meio do caminho, rupturas. E assim, para outros tantos, em direção ao progresso. O cardápio é variado, o que, às vezes, torna a escolha um tanto confusa e sofrida. Contudo, a História não se deixa domesticar tão facilmente. Ela acontece independentemente de nossas maneiras de entendê-la, de nossos desejos e escolhas. E, muitas vezes, em ritmos e tempos que nos surpreendem. A surpresa pode ser o incômodo para novos entendimentos, revisões e ajustes com o passado. Nos últimos dias, por duas vezes, a História nos tomou algum tempo de reflexão. A efeméride dos 130 anos da Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, e a descoberta, pelo professor Matias Spektor, de documentos referentes ao governo do general Ernesto Geisel, revelaram o poder que a História tem de nos incomodar.

No primeiro caso, (re) descobrimos que, após 130 anos, ainda não demos conta de responder aos desafios criados pela Lei assinada pela Princesa que redimiu um povo, mas perdeu o trono. Desafios que menos se relacionam com o debate entre o arranjo e a ruptura e mais com a continuidade e transmissão. Ou seja, menos importante é saber se teria sido melhor abolir a escravidão no Brasil por uma Guerra, como fizeram os norte-americanos, ou sob o longo acordo que fizemos sob a feição de D. Pedro II. Importa muito mais saber como os valores envolvidos e representados pela escravidão se transferiram para outros aspectos, garantindo sua sobrevivência e o nosso atraso. A desigualdade, por exemplo, mesmo representada agressivamente pela escravidão não acabou com a Lei Áurea. Ela se traveste e se encaixa, quase como uma free rider, em nosso comportamento diário e em nossas instituições. A escravidão não é a desigualdade, é sua representação. Acabar coma escravidão, portanto, não é acabar com a desigualdade.

O mesmo vale para o segundo caso. As revelações de que Geisel sabia mais do que supúnhamos sobre ‘os porões da ditadura’ e que muitas vezes deu anuência à ação criminosa de agentes do Estado contra indivíduos brasileiros, nos mostram que a troca da liderança militar – saiu a ‘linha dura’ de Médici, entrou a transição de Geisel – não se fez em prejuízo da institucionalização da violência, mas ao seu sabor. O que dava a Geisel a marca da ‘abertura’ não era sua vontade e capacidade de estancar a violência, e sim sua competência em controlar e transferi-la dos ‘porões’ ao seu gabinete. E essa transferência toma tempo, porque assim como a desigualdade, a violência também pode ser entendida como um jogo em que alguns ganham e outros perdem. Por isso, aqueles que ganhavam resistiam. Aqueles que perdiam se apressavam. Foi entre os dois que o tempo da História ocorreu. E Geisel deixou claro desde o começo que, para ele, esse tempo seria ‘lento e gradual’.

O que torna essas duas passagens mais interessantes é que, um dia, elas já estiveram juntas. Escravidão e Exército ou desigualdade e violência são elementos centrais à formação do Brasil ao longo do século XIX. E a ponderação entre elas permanece como uma das continuidades mais resistentes de nossa História. Entre 1865 e 1870, o Império viu-se obrigado a ampliar sua política de recrutamento militar. Estávamos em meio ao conflito por nós brasileiros chamado de Guerra do Paraguai e o Exército carecia de estrutura, inclusive de oficiais, para enfrentar o não tão poderoso vizinho. A ampliação do recrutamento incluiu ex-escravos, liberados do cativeiro diretamente para a Guerra sob a negociação entre o Império e os proprietários de gente. Com o fim da Guerra, tal política encerrou-se, desagradando o Exército e o afastando parcialmente do Império.

Desta briga institucional emergiu uma das mais relevantes questões sobre a formação do Estado brasileiro e, a rigor, de qualquer Estado. Ao defender a manutenção de uma política de liberdade de escravos que se transformariam em oficiais militares, o Exército indiretamente se aproximou dos abolicionistas. E essa aproximação fez do Exército um dos defensores daquela que seria a pauta modernizadora do país. O término da escravidão não era apenas a modernização econômica voltada à entrada do país no capitalismo contemporâneo. Era também a modernização moral e civilizatória, amparada na ideia de que a escravidão embrutecia escravos e senhores e tornava impossível a civilização. Mas, além disso, e para os militares, o fim da escravidão representava a superação do hiato que existia entre a ordem privada que permitia o uso da violência em âmbito doméstico e a modernização institucional do Estado Brasileiro que, em tese, teria o monopólio da violência.

Assim, terminar com a escravidão, a mais eloquente manifestação da desigualdade que nos funda, era não só o passo fundamental para o desenvolvimento econômico e para a construção de uma sociedade minimamente civilizada, mas também condição para a modernização e, quiçá, para a própria construção do Estado Nacional. E para isso, era essencial transformar o uso da violência em algo público, não privado. Dessa forma, atacar a desigualdade e garantir a modernização econômica e moral dependia da centralização do poder sobre a violência em mãos do Estado e de seu braço armado, o Exército.

Contudo, estes elementos se recombinam ao longo da trajetória histórica de modo a confundir os incautos. Se a modernização é a tentativa de diminuir a desigualdade cujo antepassado é a escravidão, ela pode ser também a superação da violência em âmbito privado. Se a civilização depende disso, é porque ela dependia no passado da superação da escravidão em favor do avanço capitalista. E ambas estiveram, em nossa história, ligadas à ação do Estado e de seu braço armado, o Exército.

Portanto, ao centralizar a decisão sobre o uso da violência durante seu governo, Geisel estava, mesmo que não soubesse, lidando com questões cuja temporalidade é muito maior do que ele e do que a lamentável experiência da qual fez parte. Enfrentava uma situação de recombinação dos elementos que nos forjaram como nação e que permanecem presentes mesmo à nossa revelia. O Estado e sua função última, o uso da força, podem servir a variados fins: à modernização econômica, à definição do que é moral e civilizado e à garantia de que a violência é assunto público, não privado. Depois de mais de um século que as três questões estiveram juntas, talvez seja tempo de definirmos se elas ainda fazem sentido em conjunto. Desde então, todas as vezes que o Exército – e seu chefe maior, o Estado – se voltou à modernização econômica ou à definição do que é moralmente certo, os resultados não se sustentaram.

A História, que pode ser cíclica, evolutiva, irônica, farsesca ou trágica, também pode ser a recombinação de elementos permanentes com as mudanças circunstanciais. Deixemos, então, que ela reconfigure os elementos de nossa trajetória e que, assim, a economia seja do mercado e que a civilização seja da sociedade civil. Ao fim, estaremos garantindo que o Estado e seu monopólio sobre a violência se volte à promoção e zeladoria da igualdade jurídica. Ou seja, à eterna vigilância de que a igualdade se funda na garantia de uma ordem cuja definição do justo e de sua sustentação a partir do uso da violência seja sempre pública e nunca privada.

* Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.