Giuseppe Vacca

Livro A Itália em Disputa, de Giuseppe Vacca | Arte: Matheus Lacerda/FAP

Revista online | Lições da Itália ao Brasil de 2022

Vinícius Müller*, especial para a revista Política Democrática online

As mudanças que ocorreram na Itália após a queda do fascismo servem como mote para que Giuseppe Vacca, em A Itália em Disputa: Comunistas e democratas–cristãos no longo pós-guerra (1943-1978)descortine crise que, embora italiana, nos serve de exemplo da complexidade e da temporalidade que formaram o mundo do segundo pós-guerra.   

A primeira dimensão remete à bipolaridade entre EUA e URSS e ao entendimento de como esta situação, engessada nas análises sobre a Guerra Fria, foi muito mais dinâmica do que percebemos. Isso porque não só a bipolaridade oscilou entre aproximações e acirramentos, mas também se ajustou em países tão díspares, como o Chile, esmagado pelo golpe de 1973, ou a Hungria, calada após sua revolta contra o stalinismo.   

Foi nesta oscilação que a Itália vivenciou seu arranjo entre a Democracia Cristã e o Partido Comunista, ambos de grande apelo popular e amplamente voltados à "desfascistização" do estado italiano. O livro de Vacca mostra o árduo processo para a criação de uma linguagem pedagógica que os unissem em nome do pacto socialdemocrata e de sua versão econômica do estado do bem-estar social. O esforço era voltado para que a direita moderada da democracia cristã pendesse ao seu lado centrista de modo a se aproximar dos comunistas. Esses deveriam, analogamente, ampliar sua disposição de se aproximarem da centro-esquerda.  

A dificuldade residia em sustentar estes movimentos em meio às incertezas da ordem internacional. Isso porque, além das tendências em direção daquilo que seria a União Europeia, a recuperação econômica dependia do posicionamento dos EUA e de sua moeda. Por outro lado, tanto o pacto socialdemocrata, como o bem-estar social traziam possíveis inversões ao modo como se entendia o capitalismo. De modo objetivo, esta inversão, crítica e condizente com a crise do liberalismo que se arrastava desde ao menos 1914, dependia de uma reorganização da infraestrutura e dos investimentos, ambos sustentados em partes pelo Plano Marshall. Dependiam, ainda, da capacidade do Estado de garantir não só a oferta de bem-estar, mas, também, exatamente por isso, manter salários baixos como o caminho para o pleno emprego. Este papel do Estado, entre suas variações de intensidade e qualidade, foi visto por muitos como uma concessão ao socialismo. O que poderia significar que a própria trajetória da história estava se realizando: das contradições do capitalismo ao comunismo.  

Assim, entre uma situação interna que exigia uma reorganização do Estado após o fascismo e uma externa que envolvia a Guerra Fria e suas nuances, a Itália dependia de tênue ajuste entre dois grandes partidos que, além de terem matrizes diferentes, competiam eleitoralmente. A possibilidade do acordo, portanto, era dependente da qualidade de suas lideranças, destacadamente do democrata cristão Aldo Moro. Seu assassinato em 1978 marcou o colapso do que ainda sobrava do ajuste político do segundo pós-guerra na Itália. E tornou ainda mais confusa a análise sobre as causas da ruptura do pacto político que vigorava há três décadas. As mudanças no cenário internacional, marcadas pelo fim do padrão de Bretton Woods, pela crise do petróleo e pela reorganização da Guerra Fria a partir da aproximação entre EUA e China - e, consequentemente, pelo recrudescimento da bipolarização entre os norte-americanos e os soviéticos – tornaram ainda mais difícil a manutenção da linguagem comum necessária ao ajuste entre democratas-cristãos e comunistas.  

O Brasil não será a nova Cuba | Imagem: reprodução/CEDEMUnesp
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O Brasil não será a nova Cuba
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O Brasil não será a nova Cuba
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Por outro lado, a Itália, assim como a Europa ocidental, se debatia com os limites de sua autonomia na disputa da Guerra Fria e via, a exemplo de alguns de seus vizinhos, o bem-estar social e a socialdemocracia serem fortemente golpeados pelo próprio limite econômico e social que este modelo keynesiano-fordista apresentava: crise fiscal e esclerose institucional.   

Não à toa, um ano após o assassinato de Aldo Moro, Margaret Thatcher ascenderia ao governo britânico, e Paul Volcker prepararia, com sua abrupta mudança na condução das taxas de juros nos EUA, o cenário da retomada do liberalismo. A Itália, neste contexto, perdia mais do que a liderança de Aldo Moro, mas também o timing do ajuste necessário para o novo horizonte que nascia: a ascensão de lideranças populistas em meio à crise do bem-estar social, da retomada do liberalismo globalizado e, por que não, da própria desqualificação da democracia. Cada um a em seu tempo.  

Ou seja, Vacca nos mostra tanto as possibilidades de um pacto em defesa da democracia como os equívocos produzidos pelo frágil entendimento das mudanças que, inexoravelmente, ocorrem.  Lança luzes sobre o papel das lideranças que são capazes de acelerar o processo de adaptação a estas mudanças, e, mais importante, que entendem que essa agilidade pode ser a diferença entre a vida e a morte da democracia. Foi assim na Itália, entre 1943 e 1978, mas poderia ser no Brasil de 2022.


Saiba mais sobre o autor

*Vinícius Müller é Doutor em História Econômica. Membro do Conselho Curador da FAP.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Compre na Amazon: Livro Gramsci no seu Tempo tem reflexões sobre problemas da sociedade

Edição da FAP está à venda no site da Amazon; italiano se destacou no início do século 20

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O legado do fundador do Partido Comunista da Itália, Antonio Gramsci, continua com a marca de um grande autor conhecido pela sua capacidade de analisar problemas da sociedade de maneira universal, sem limitar suas reflexões ao tempo em que as produziu. O livro Gramsci no seu Tempo (2ª edição, 416 páginas), editado pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), apresenta uma coletânea de ensaios selecionados por ele e que, nesta edição, foram reorganizados por Alberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques e Giuseppe Vacca. A obra está à venda no site da Amazon.

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A obra compõe-se de ensaios selecionados de Gramsci em seu tempo, originalmente organizado por Francesco Giasi e publicado em dois volumes (Roma: Carocci, 2008), com exceção das contribuições de Francesca Izzo e de Giuseppe Vacca, incluídas especialmente nesta edição brasileira. Com o reordenamento dos textos, os leitores podem ver os resultados de algumas das pesquisas mais avançadas no universo gramsciano, fundamentais para a renovação e o aprofundamento do debate teórico na cultura democrática e socialista brasileira.

Críticos afirmam que Gramsci tinha a plena consciência de que sua reflexão não deveria se limitar ao momento presente, mas, sobretudo, considerar o que havia de universal em suas manifestações. Ele nasceu na Sardenha, na Itália, em 22 de janeiro de 1891, e morreu em Lacio, também na Itália, em 1937, aos 46 anos, em razão de problemas de saúde agravados durante a sua prisão.

Gramsci escreveu os textos dos Cadernos – que começou a redigir em 1929, três anos após sua prisão pela polícia política do fascismo italiano – sob a forma de fragmentos a serem desenvolvidos sistematicamente quando viesse a oportunidade, futuramente. As críticas dele abordavam diversas questões, como literatura, política, economia e filosofia. “Seus múltiplos objetos, contudo, sempre estavam aplicados para uma única direção: exausto o ciclo aberto pela Revolução de 1917, quais as novas circunstâncias com que se confrontava a luta pelo socialismo e que inovações teóricas eram exigidas a fim de levá-la à frente”, escreveu o cientista social Luiz Werneck Vianna.

De acordo com Vianna, Gramsci revive na prisão, sob a forma de um pensamento refletido, o seu passado. “Dele extrai uma teoria nova, o que lhe permite observar a cena contemporânea com categorias originais, instituindo um campo próprio para o estudo do processo de modernização capitalista, em particular na modalidade de modernização autoritária, tal como em suas análises sobre o corporativismo italiano”, acrescenta o cientista social.

“A precocidade e o alcance de sua pesquisa teórica sobre esse assunto, antecipando-se em décadas a feitos da ciência política contemporânea, são bem indicados na formulação do seu conceito de revolução passiva, sua maior contribuição para os estudos dedicados à mudança social, hoje de uso generalizado”, completa Vianna.

Ele sugere destaca que, nesta coletânea de artigos de importantes especialistas italianos na obra gramsciana, reunida por respeitados intérpretes do legado do genial sardo, o leitor encontrará um bom mapa do estado da arte e do tipo de recepção contemporâneos às extraordinárias criações do grande autor que foi Gramsci.

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Marcus Oliveira: O sujeito cosmopolita de Gramsci, segundo Vacca

As leituras de Giuseppe Vacca em torno da figura de Antonio Gramsci não são recentes, de modo que o filósofo italiano, ex-presidente da Fondazione Gramsci, se coloca como um dos principais intelectuais, tanto na Itália quanto no exterior, que se dedicam à hercúlea tarefa de se debruçar sob o pensamento gramsciano. As primeiras reflexões de Vacca acerca de Gramsci ocorrem no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Consequentemente, a obra em questão, publicada no final de 2016 no Brasil, é fruto de um denso percurso investigativo construído por Vacca. Deste modo, Modernidades alternativas se configura, concomitantemente, como aprofundamento e conclusão de um ciclo de produções iniciado anteriormente.

Diante disso, a presente obra não pode ser apreendida em si mesma, não apenas porque fruto desse intenso processo de pesquisas, mas também porque se propõe como complemento de uma produção anterior, publicada no Brasil em 2012 também pela Fundação Astrojildo Pereira [1]. Tal publicação girava em torno de uma proposta de reconstrução de Gramsci a partir de sua historicização integral, centrada nos nexos necessários entre os contextos históricos e biográficos que atravessam o pensamento político gramsciano. Modernidades alternativas figura como complemento a essa discussão mais marcadamente biográfica, uma vez que pretende, em primeiro lugar, desenvolver um percurso interpretativo das notas carcerárias para, posteriormente, revelar as possibilidades de utilização dessas notas no mundo contemporâneo.

Em Modernidades alternativas não abandona a proposta de uma historicização integral do pensamento de Gramsci. Todavia, apropria-se mais intensamente do método filológico e diacrônico desenvolvido a partir dos anos 1980 por Gianni Francioni. Esse método consiste na percepção de uma temporalidade interna inerente à escrita dos Quaderni, que denota a existência de um determinado ritmo de pensamento subjacente ao processo de trabalho de Gramsci, de modo que os conceitos desenvolvidos ao longo do cárcere só podem ser apreendidos a partir de sua mutabilidade temporal. Assim, ao se apropriar desse método filológico e diacrônico, Vacca procura perscrutar os principais conceitos desenvolvidos por Gramsci, observando suas transformações no tempo no intuito de auferir sua força heurística para a interpretação dos rumos da política contemporânea.

O primeiro conceito no qual Vacca se detém é o de hegemonia, uma vez que considera a teoria da hegemonia como o centro sobre o qual gravitam as outras reflexões desenvolvidas nos Cadernos. Nestes, a teoria da hegemonia é constituída a partir de experiências históricas específicas que envolvem as principais questões políticas das primeiras décadas do século XX. Tais experiências, em virtude de sua intensidade, alteram as formas com as quais se pensava a política e a história, gerando a necessidade de criação de novos instrumentos teóricos e metodológicos capazes de captar a política diante dessas novas configurações históricas. Em razão disso, nos Cadernos, o conceito originalmente elaborado por Lenin ganha uma nova leitura, deixando de ser compreendido a partir de um corte classista referente à direção do proletariado para se tornar uma ferramenta ao mesmo tempo analítica e estratégica capaz de compreender questões referentes à conquista e ao exercício do poder.

O cerne dessa redefinição do conceito de hegemonia, para Vacca, reside em seu vínculo necessário com aquilo que o autor nomeia por teoria da interdependência [2]. Essa teoria implica a consideração das relações de forças, fundamentais para a compreensão da hegemonia, a partir de nexo essencial entre as dimensões nacional e internacional, central na contemporaneidade em razão do avanço do processo de globalização impulsionado pelo movimento da economia capitalista. O problema, nesses termos, é que a política, ainda vinculada à figura do Estado-nação, se mostra incapaz de acompanhar o movimento da economia, de modo que há um certo atraso da primeira em relação à última. Para Gramsci, esse contraste entre o cosmopolitismo da economia e o nacionalismo dos Estados se configura como o cerne das crises experimentadas nas primeiras décadas do século XX.

Nesse contexto, a construção da hegemonia não deve ser apreendida pelo viés estatal ou nacional, mas a partir do equilíbrio das correlações de forças operadas entre os diversos Estados. Por isso, Vacca procura apontar que a validade do conceito gramsciano de hegemonia está para além das fronteiras dos Estados, uma vez que parte exatamente do diagnóstico da crise dessa forma política, estando inserido na complexidade das relações internacionais. Deste modo, não se trata de perceber a hegemonia como um conceito unívoco e estável, mas de captar sua mobilidade nos processos formativos daquilo que o autor nomeia como constelações hegemônicas.

Em termos políticos, isso significa uma transformação significativa nas formas de ação. Na medida em que o movimento histórico caminha para a superação da centralidade do Estado, as lutas políticas também devem ocorrer em um nível cosmopolita. Vacca pretende demonstrar que a estratégia delineada por Gramsci se orienta para a construção de uma regulação econômica e política operacionalizada mundialmente a partir de um equilíbrio de compromisso entre as forças antagônicas. Nesses termos, o autor distancia a proposta cosmopolita de Gramsci daquela própria à cultura política bolchevique. Enquanto a última se encontra marcada pela iminência da catástrofe bélica, a primeira se assenta em uma rede intricada de forças políticas que não se anulam.

Todavia, a centralidade que a teoria da hegemonia assume nas reflexões de Vacca termina por reduzir o potencial interpretativo do conceito de revolução passiva, ainda que não o elimine. Nos termos do autor, a revolução passiva também obedece ao mesmo movimento histórico que perpassa a hegemonia, operando uma revisão na concepção marxista da história ao relativizar seu corte classista. Nesse sentido, o conceito de revolução passiva passa a figurar como um corolário historiográfico do conceito de hegemonia, não podendo ser manejado para a compreensão internacional.

Isso ocorre, na visão de Vacca, em razão do caráter assumido pelo processo histórico naquele momento. Nessa leitura, a visão de Gramsci acerca das primeiras décadas do século XX se encontra marcada pelo diagnóstico de uma crise de hegemonia, caracterizada pela incapacidade de construção de uma constelação hegemônica em nível global. Consequentemente, a revolução passiva, encarada como conceito responsável por apreender as modalidades pelas quais os equilíbrios de compromisso se constroem, se mostra insuficiente para interpretar as relações internacionais desse momento.

Esse amplo processo de revisão do marxismo culmina, para Vacca, na construção da filosofia da práxis. Essa construção, marcada pela transformação do materialismo histórico em filosofia da práxis, se encontra condicionada por uma mudança fundamental na concepção de sujeito, bem como por uma historicização integral da política e da economia. Ao se afastar das hipóteses causais e deterministas do marxismo de sua época, Gramsci logrou construir uma teoria da constituição dos sujeitos no mundo contemporâneo, na qual a questão da formação de uma vontade coletiva emerge como um dos aspectos centrais para a formação de um mundo unitário, regulado globalmente a partir da hegemonia. Assim, na leitura de Vacca, a filosofia da práxis aparece como uma teoria da “constituição dos sujeitos políticos baseada gnosiologicamente no conceito de hegemonia e historiograficamente no de revolução passiva” (Vacca, 2016: 263).

Com isso, a filosofia da práxis se baseia em um princípio imanente da história responsável por superar o caráter geralmente mecânico e determinista que as relações entre estrutura e superestrutura assumiram no interior do marxismo. Ao historicizar a própria noção de mercado, Gramsci pôde rever também as perspectivas liberais que consideravam de modo orgânico a separação entre Estado e sociedade civil, apontado como tais dimensões se solidificam a partir de um intrincado jogo de forças que se chocam historicamente.

Nessa leitura, a noção da história própria da filosofia da práxis se baseia em jogo antagônico de forças imprevisível em razão de sua regulação política. Nos termos de Vacca, a dialética gramsciana aparece como um movimento no qual a formação do par amigo-inimigo se torna impossível, uma vez que o choque das forças em questão não significa anulação de uma das forças, mas um processo de síntese que caminha para um equilíbrio em movimento perpétuo. Como consequência dessas noções de história e política, a filosofia da práxis se encontra intimamente vinculada à política democrática, visto que só a democracia pode garantir a instauração desses conflitos sem a anulação das forças em confronto. Portanto, a democracia para a qual Gramsci pretende apontar é profundamente calcada no cosmopolitismo, com vistas à produção de formas democráticas supranacionais.

Assim, o Gramsci de Vacca se configura como um pensador essencialmente cosmopolita, habilitado para enfrentar as questões contemporâneas, sobretudo aquelas ligadas aos impactos políticos e econômicos da globalização. Nesse cenário cada vez mais mundial, Gramsci pretende abarcar o mundo como um todo, não abandonando a perspectiva universalista, essencial à tradição comunista. Todavia, esse universalismo se mostra distante daquele bolchevique ou mesmo liberal, uma vez que se fundamenta em uma democracia supranacional capaz de regular o mundo pela ótica da política, a partir da ação fundamental de sujeitos também constituídos no interior desse cosmopolitismo, aptos a regularem uma democracia global.

Com Gramsci, pois, Vacca pretende, em meio aos escombros da contemporaneidade, repropor a questão fundamental do sujeito dentro da política, colocando a possibilidade de pensar um sujeito universal e cosmopolita longe de uma versão de totalidade incapaz de perceber a divergência, mas a partir de um universalismo capaz de instituir o conflito e a divergência.

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Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira é doutorando em história e cultura política pela Unesp/Franca. Escreveu Em um rabo de foguete: trauma e cultura política em Ferreira Gullar (Fundação Astrojildo Pereira/ Contraponto, 2016); membro da incubadora cultural Cupim Literário (Uberaba – MG).

Fonte: http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=2102

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Notas
[1] Vacca, Giuseppe. Vida e pensamento de Antonio Gramsci. Brasília/ Rio de Janeiro, FAP/ Contraponto, 2012.
[2] Os apontamentos de Vacca em torno da teoria da interpendência em Gramsci se mostram como aprofundamento de reflexões anteriores que remontam o início dos anos 1990. Para consultar tais reflexões ver: Vacca, Giuseppe. Pensar o mundo novo – rumo à democracia do século XXI, São Paulo, Ática, 1996.


Brexit: Para Vacca, “crise europeia pode impulsionar novo pacto social na Itália”

Para o presidente do Instituto Gramsci, Giuseppe Vacca, a crise aberta com a vitória do Brexit não fornece motivos para um aumento da depressão, mas sim para um relançamento do projeto constitutivo do Partido Democrático italiano e a ação dos governos democráticos. A situação não é rósea para a esquerda na Itália e na Europa e provavelmente em nenhuma parte do mundo. «Estamos há dez anos diante da necessidade de confrontar a grande depressão, que não é somente uma questão de política econômica, mas também um problema de déficit das instituições política supranacionais”, diz ele. “Foram dez anos de crise que ampliaram o mal-estar, a exclusão e também a desconfiança e a rebelião no que diz respeito à Europa. A Inglaterra é um caso em si, certamente, mas com as devidas distinções o problema está presente em todos os países europeus”.

Muitos dizem que a única estrada para salvar a UE consistiria em relançar o “sonho europeu”, o ideal federalista, a Europa dos pais fundadores. Concorda com esse ponto de vista?

Nunca me ocupei muito com sonhos, a não ser nos quatro anos em que fiz uma ótima terapia psicanalítica. O federalismo é uma retórica como outra qualquer. A narrativa correspondente a uma construção ainda mais aprofundada e mais eficaz de uma soberania supranacional é um problema aberto. Se for útil empregar a retórica federalista, que se faça isso. O ponto decisivo é fazer com que ela corresponda a alguma coisa.

O que se deve, na Itália, buscar em termos de correspondência?

Na Itália, país em que não obstante tudo o impulso anti-europeísta é menos forte, abre-se a possibilidade de que se desenvolva o que houve de melhor nas ações governamentais dos últimos dois anos, precisamente porque a precipitação da crise da EU fornece mais oxigênio à inspiração europeísta do PD, algo que está em seu DNA graças às culturas políticas que o constituíram. Estamos tentando fazer isso há dois anos: é preciso fazê-lo com mais decisão, até porque a Itália não se confronta somente com as tendências desagregadoras que sacodem todos os países da Europa, mas também com problemas que são exclusivamente seus. Problemas de nation building e State building típicos da “história longa” dos italianos.

Como enfrentar isso, concretamente?

Devemos impulsionar a reconstrução dos laços sociais. Devemos ser mais corajosos e determinados em aplicar a Constituição à vida interna dos partidos. Legislar para que os sindicatos tenham uma vida democrática que lhes relegitime a representação e a ajude, que favoreça a emergência de um sindicato unitário que seja interlocutor de todas as grandes políticas econômicas e sociais do país. Quando, com razão, se lamenta a crise dos corpos intermediários, esquece-se que a crise diz respeito a todo o arco da representação de interesses. Nem sequer a Confindustria, o sindical patronal, é mais aquela que já foi um dia. Nem sequer o movimento das cooperativas, que é uma grande força, está beneficiado em sua missão tradicional, que é a de ser uma pilastra da economia social de mercado. Deste ponto de vista, a Itália é um caso particular dentro da Europa, porque enfrenta uma exigência de renovação dos fundamentos do sistema político e da sua constituição material, além da sua constituição formal, o que compõe um belo pacote de reformas que podem ser levadas a referendo.

Isso não traz consigo o risco de impulsionar um “Italexit”, uma saída da Itália da UE?

Paradoxalmente, esse risco pode ser atenuado com a abertura de uma crise aguda na Europa, diante da qual o atual partido central de governo pode se movimentar por todo o campo rumo a um novo pacto com os italianos e entre os italianos, um pacto sobre o sistema político, o sistema das organizações de interesse, a governabilidade, indo além da reforma das relações entre Estado central e Regiões. Em suma, vejo a abertura de um campo bastante amplo para uma iniciativa nacional de reconstrução, como a que está inscrita no DNA do PD.

Alguém poderia dizer que seu discurso é politicista, que o problema da esquerda está nas periferias…

Não sei se o problema está nas periferias. Mas penso que não é um acaso que aqueles que se ocupam com as periferias o façam só demagogicamente. Em condições de escassez de recursos e depois que implodiram todas as redes de proteção social – ao ponto em que hoje as únicas que funcionam são as da criminalidade organizada –, o problema é descobrir como manter unido aquilo que antes se conseguia manter unido com os instrumentos do Estado-nação democrático europeu”.


Por: Giuseppe Vacca

Entrevista realizada pelo jornalista Francesco Cundari e publicada em L’Unità.Tv, Roma, 25 de junho de 2016.

Fonte: NEAI - Núcleo de Estudos e Análises Internacionais