Gianluca Fiocco

RPD || Gianluca Fiocco: Da pandemia se sai pela esquerda?

Alemanha teve eleições com resultado histórico, que favorece a causa europeísta

Gianluca Fiocco / RPD Online

A recente votação na Alemanha marcou, de alguma forma, o fim de uma era. Angela Merkel, cuja chancelaria caracterizou fortemente o cenário alemão e europeu por 16 anos, não se candidatou. Seu afastamento representou sério problema sobretudo para seu partido, o CDU, que ficou órfão de sua presença carismática e estabilizadora. Mas todo o sistema partidário, desprovido de líderes minimamente comparáveis ​​a sua estatura, sofreu com o fechamento desse ciclo. 

Podemos considerar históricos os resultados que saíram das urnas: pela primeira vez desde o pós-guerra, as duas colunas tradicionais da política alemã – a socialdemocrata e a democrata-cristã – ficaram ambas abaixo de 30%. A ligeira prevalência do SPD (25,7% dos votos) conduziu as negociações para a formação de uma coligação que está sendo chamada de "semáforo" – vermelha, amarela e verde, respectivamente, dos socialdemocratas, liberais (11,5) e do partido ecológico do Grünen (14,8). As negociações foram anunciadas, porém não são fáceis, e seu fracasso também recolocaria a CDU no jogo. 

Em todo caso, o debate antes e depois das eleições favoreceu a causa europeísta. A capacidade de Merkel de colocar a UE em novos caminhos, realçando seu perfil, foi especialmente enfatizada. Com exceção dos partidos mais extremistas (a eleição foi particularmente ruim para a esquerda do Linke, mas também para a direita ultranacionalista do AFD, que seguiu o mesmo ritmo), todos os candidatos se perfilaram para assegurar as responsabilidades alemãs na Europa e a centralidade da dimensão europeia nas grandes escolhas da Alemanha. Também a anunciada intenção de reunir no programa do futuro governo as questões sociais, as necessidades de estabilidade financeira e os objetivos da transição ecológica (com a meta de abandonar o carvão até 2030) representa um dos desafios políticos que hoje está diante de toda a Europa, como "potência civil" capaz de representar um modelo de desenvolvimento equitativo e sustentável. 

Uma das primeiras atitudes de Merkel após as eleições foi visitar Roma, onde encontrou Mario Draghi e o Papa Francisco. Foi uma iniciativa significativa já que a própria conexão Merkel-Draghi se revelou fundamental para o lançamento das políticas de auxílio do Banco Central Europeu que têm salvaguardado o euro e a solidez da UE. 

A Itália também vivenciou eleições, embora apenas em nível local. Cidades importantes como Roma e Turim estiveram envolvidas. Ao contrário da Alemanha, onde o sistema partidário mostrou sua vitalidade e o nível de participação dos cidadãos foi alto, o voto italiano mostrou um difuso descontentamento com a dimensão administrativa e rachaduras gritantes na relação entre os cidadãos e as forças políticas. Um observador autorizado como Sabino Cassese chegou à amarga conclusão de que "todos perderam. Perderam as forças políticas que tiveram de encontrar seu candidato fora delas, porque dentro delas não foram capazes de selecionar e formar uma classe dirigente. Perderam as classes políticas locais porque os eleitores nas eleições municipais diminuíram na última década mais do que o dobro em relação às últimas eleições gerais. Perderam os vencedores dos segundos-turnos porque só conseguiram o apoio de um quarto ou um quinto do eleitorado". 

Se nos anos noventa a eleição direta de prefeitos encarnou na Itália a ideia de renovação das instituições, mais próximas das necessidades das pessoas, agora parece evidenciar as dificuldades dos partidos em manter raízes efetivas na sociedade. Este é um sinal de alerta a ser levado em conta frente às futuras eleições para a renovação do Parlamento. Os dados estatísticos dos últimos anos indicam que existe um interesse pelas questões políticas em comparação com os dados de muitos parceiros europeus, mas a confiança nos mecanismos e no valor da participação na vida política tem caído. 

Os resultados da Itália premiaram claramente a centro-esquerda, ao passo que a direita (tanto a Lega, no governo, quanto Fratelli d’Italia, na oposição) sofreu duro golpe. Nestes casos, é difícil, talvez impossível, estabelecer em que medida os fatores locais ou nacionais favoreceram o êxito. Talvez não seja tão forçado dizer que fatores europeus também pesaram: a associação da direita com os chamados soberanistas (embora bastante moderados na versão italiana) não rendeu, e até se mostrou negativa, nesse momento em que o apoio da UE aparece como uma esperança de sair da crise sanitária, econômica e social desencadeada pela pandemia. Os fundos europeus extraordinários da Next Generation EU permitiram o lançamento do ambicioso “Plano Nacional de Recuperação e Retomada”, que é gerido por uma figura intimamente ligada ao plano pró-europeu, como Mario Draghi. O Partido Democrático (PD) foi visto como o defensor mais consistente desse plano, e seus candidatos se beneficiaram dele. 

A aposta europeísta expressa precisamente a forte conexão entre os votos da Alemanha e da Itália. Em ambos os países, as questões europeias têm influenciado as escolhas dos eleitores de uma forma que parece demonstrar confiança generalizada no papel que a UE vem desempenhando na segurança e no bem-estar dos seus cidadãos. Como observou o historiador Sandro Guerrieri, “a União Europeia funciona quando se encontram soluções que representam um valor agregado às políticas e linhas de conduta dos governos individuais”. O atual esforço de recuperação é um desses momentos e pode ser decisivo para uma retomada do europeísmo de cunho social e progressista. “Da pandemia se sai pela esquerda”, declarou o secretário do PD, Enrico Letta, comentando o novo equilíbrio político alemão. Se o novo chanceler for realmente uma expressão da aliança vermelho-amarelo-verde, essa perspectiva certamente ganhará impulso. 

*Tradução de Alberto Aggio


Saiba mais sobre o autor
Gianluca Fiocco é professor e pesquisador de História Contemporânea vinculado a Universidade Roma2, “Tor Vergata”. É também membro do Conselho de Direção Científica da Fundação Gramsci de Roma. Dentre as suas publicações está Togliatti, il realismo della política, Roma: Carocci, 2018.


Política Democrática: Gianluca Fiocco traça desafios da União Europeia

Historiador diz que recessão evidenciou indiscutivelmente um ponto crítico do processo de integração

A União Europeia foi marcada, desde o início, pelo caminho continental em direção a formas de integração cada vez mais fortes e complexas e pelo desafio de garantir níveis de bem-estar que pareciam intocáveis. É o que diz o historiador e professor da Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Roma Tor Vergata, Gianluca Fiocco.

» Acesse aqui a décima edição da revista Política Democrática online

O professor publicou artigo na décima edição da revista PolÍtica Democrática online. Segundo ele, as “acusações à Europa” se difundiram em particular após a grave crise deflagrada em 2008. Em muitos países, a taxa de confiança na UE passou por uma queda drástica. A entrada no espaço comunitário sempre fora vista como promessa de desenvolvimento; as dificuldades do último decênio desferiram um golpe em tal expectativa.

“Numa pesquisa de 2017, 54% dos entrevistados consideravam que as crianças da UE viveriam em condições piores do que aquelas conhecidas pela própria geração”, afirma Fiocco. “Quando se rompe a confiança no futuro, também as construções mais sólidas podem vacilar”, acrescenta.

De acordo com o autor, o mal-estar econômico se faz acompanhar da busca de bodes expiatórios e por fenômenos regressivos de entrincheiramento identitário (um quadro favorável às direitas neonacionalistas). “A recessão evidenciou indiscutivelmente um ponto crítico do processo de integração: o sistema da moeda única impôs a cada país um rigor nas contas públicas que reduziu notavelmente suas margens de ação em função anticíclica. Os velhos instrumentos de intervenção nacional não foram substituídos por novas ferramentas de tipo comunitário”, destaca.

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