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Reis Friede: Foro especial, um contraponto

Diferentemente do que pensam aqueles que pugnam pelo fim da prerrogativa de foro, a solução reside em aprimorar o sistema de Justiça criminal

Não obstante a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que restringiu o foro por prerrogativa de função inerente aos senadores e deputados federais, o tema deve ser analisado com prudência.

Efetivamente, o instituto em questão não pode ser extinto com base em argumentos desconectados das razões de sua criação histórica. Conforme se observou, há quem defenda a extinção do foro para qualquer autoridade, tais como ministros de Estado, governadores, juízes e promotores, sob o argumento de que o atual modelo ofende o princípio da isonomia e serve de estímulo à corrupção e à impunidade.

Tal raciocínio confunde a razão do instituto com o tema ineficiência —problema que, invariavelmente, atinge o Judiciário como um todo.

Diferentemente do que pensam aqueles que pugnam pelo fim da prerrogativa de foro, a solução reside em aprimorar o sistema de Justiça criminal, criando-se as estruturas necessárias para o cumprimento das respectivas competências, como o estabelecimento de varas federais especializadas e vinculadas aos tribunais superiores para o processamento de tais ações penais.

Tudo isso é possível sem que se altere profundamente o modelo previsto na Constituição.

Quando senadores e deputados federais são julgados por ministros do STF, o que se objetiva é assegurar que o julgador não sofra influência no desempenho de sua função jurisdicional. Afinal, sabe-se que determinadas pessoas dotadas de poder tendem a pressionar, ainda que veladamente, os juízes.

Para tanto, elas são capazes de lançar mão dos mais sórdidos expedientes, inclusive o de monitorar a rotina diária de um magistrado e de seus familiares. O próprio juiz federal Marcelo Bretas foi alvo de investidas intimidatórias.

Da mesma forma, seria estranho imaginar que um juiz pudesse julgar, com independência, um desembargador, pois aquele depende do voto deste para inúmeras questões, inclusive para eventual promoção na carreira. Igualmente, como um desembargador poderia julgar, com isenção, uma apelação criminal interposta por um ministro do Superior Tribunal de Justiça junto a um Tribunal Regional Federal, uma vez que o mencionado apelante, em seguida, participará da sessão destinada a escolher, dentre os desembargadores, aquele que integrará o STJ?

Subsiste, ainda, uma questão que precisa ser analisada com precaução. Refiro-me à falta de maturidade apresentada por certas pessoas que exercem cargos de elevada importância no cenário estatal.

Efetivamente, haverá casos em que juízes inexperientes vão se ver diante da incumbência de decidir questões relevantes para o país. Por sorte, os juízes que estão à frente da operação Lava Jato —Sergio Moro e Marcelo Bretas—, além de serem experientes e competentes para o mister, são magistrados com mais de 40 anos de idade e ostentam mais de 15 anos de carreira.

A prevalecer a tese pela extinção da prerrogativa de foro, não haveria impedimento para que julgamentos de autoridades fossem conduzidos por juízes de primeiro grau com pouquíssima experiência, notadamente quando, na condição de substitutos e recém-empossados, precisassem decidir temas de grande repercussão, tendo em vista o titular da vara se encontrar de férias ou de licença médica.

Um julgamento de impacto conduzido por um juiz inexperiente poderia levar a um resultado processual não apenas tecnicamente equivocado mas, especialmente, influenciado pela mídia ou pela opinião pública.

* Reis Friede é mestre e doutor em direito, é desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) e professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército


O Globo: STF mandará a outras instâncias 29 inquéritos ligados à Odebrecht

Toffoli já enviou 7 processos para cortes inferiores, após mudança no foro

Por André de Souza e Eduardo Bresciani, de O Globo

BRASÍLIA — Dos 74 inquéritos da delação da Odebrecht abertos no Supremo Tribunal Federal (STF) para investigar parlamentares, ao menos 29 deverão ser enviados para outras instâncias. Isso porque eles tratam de crimes sem relação com o mandato dos congressistas investigados. A redistribuição de processos é consequência do julgamento do STF que definiu, na quinta-feira, restringir o foro privilegiado para deputados e senadores. Até a edição da nova regra, todo crime relacionado a parlamentares federais era obrigatoriamente analisado pela mais alta Corte do país.

Ontem, o ministro Dias Toffoli mandou para instâncias inferiores seis ações penais e um inquérito envolvendo sete deputados. Em todos os casos, os supostos crimes ocorreram antes do mandato ou não têm relação com o exercício do cargo. Toffoli determinou o envio de processos de crimes supostamente cometidos por parlamentares quando eles ocupavam, por exemplo, cargos de prefeito e deputado estadual.

O envio dos processos para outras instâncias não será automático. Vai depender da análise, caso a caso, de cada ministro encarregado de relatar processos contra congressistas no Supremo. Dos 74 casos analisados pelo GLOBO, sete devem continuar no tribunal. Eles dizem respeito à atividade parlamentar, como a atuação de deputados e senadores pela aprovação de projetos de interesse da Odebrecht. Há ainda 38 inquéritos restantes que levantam dúvidas: dependendo da avaliação particular de cada ministro, podem ou não permanecer na Corte.

As ações penais dos deputados federais Takayama (PSC-PR) e Helder Salomão (PT-ES) foram enviadas respectivamente para a primeira instância em Curitiba e Cariacica (ES). Mas as constituições paranaense e capixaba dizem que cabe ao Tribunal de Justiça (TJ) local julgar crime de deputados estaduais e prefeitos. Assim, ao não enviar os processos para o TJ, Toffoli indicou que tudo deverá ser encaminhado para a primeira instância, mesmo que o investigado ou réu tenha passado por um cargo que garanta foro em alguma corte. Toffoli também mandou ações penais dos deputados Alberto Fraga (DEM-DF), Roberto Góes (PDT-AP), Marcos Reategui (PSD-AP) e Cícero Almeida (PHS-AL) para a primeira instância, assim como o inquérito contra o deputado Wladimir Costa (SD-PA).

No julgamento do STF, prevaleceu a proposta do ministro Luís Roberto Barroso: manter no tribunal apenas os processos de parlamentares abertos em decorrência de crimes cometidos durante o mandato e, ainda assim, se tiverem relação direta com o exercício da função. O próprio Barroso, no entanto, reconheceu que em alguns casos será difícil definir se essa relação existe ou não. Ele disse não haver decisão sobre o que ocorre, por exemplo, com deputados e senadores que cometeram crimes em mandatos anteriores e foram reeleitos. Há vários inquéritos da Odebrecht nessa situação.

VÁRIOS PARTIDOS

Os 29 inquéritos da Odebrecht que devem ser mandados para outras instâncias investigam parlamentares de vários partidos: DEM, PCdoB, PMDB, PP, PR, PRB, PSD, PSDB, PT e SD. Dois deles apuram irregularidades envolvendo o senador Aécio Neves (PSDB-MG) quando não era parlamentar. Um investiga, por exemplo, se houve pagamento de propina ao tucano por contratos da obra da Cidade Administrativa, quando Aécio era governador de Minas Gerais.

O senador Fernando Bezerra Coelho (PMDB-PE) também tem dois inquéritos que devem descer para a primeira instância. Eles tratam de crimes que teriam ocorrido em 2008 e 2010, quando não era parlamentar.

Alguns casos não devem ir para a primeira instância, mas para outros tribunais, porque envolvem outras pessoas com foro. Há um inquérito, por exemplo, aberto para investigar o senador Jorge Viana (PT-AC) e seu irmão, o governador Tião Viana (PT-AC). Sem foro para o parlamentar, vai prevalecer a regra de que cabe ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisar processos envolvendo governadores. A decisão do STF atingiu apenas senadores e deputados federais, mas não outras autoridades.

Eles tratam da atuação de parlamentares como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), os senadores Romero Jucá (PMDB-RR) e Renan Calheiros (PMDB-AL). Delatores da Odebrecht disseram ter feito pagamentos a ele em troca de sua ajuda no Congresso, onde havia projetos de interesse da empresa.

Dos cinco inquéritos da Odebrecht que investigam Jucá, por exemplo, quatro devem ficar no STF. Isso inclui um em que a Primeira Turma do STF aceitou denúncia, transformando Jucá em réu. O quinto é um caso em que há dúvida porque trata de supostas irregularidades de 2008, quando ele já era senador, mas em mandato anterior ao atual.

Assim como Jucá, há outros parlamentares nessa mesma situação. É o caso, por exemplo, do senador Fernando Collor (PTC-AL) e de outro processo de Rodrigo Maia. Outros processos que geram dúvidas tratam de pagamento de caixa dois em campanha pela reeleição, como um inquérito do ex-presidente da Câmara Marco Maia (PT-RS).

Dos 80 inquéritos em curso no STF, com base na delação da Odebrecht, seis não dizem respeito a parlamentares. Um investiga um suplente que já exerceu o cargo de deputado, mas ainda não foi enviado para outra instância. É apenas questão de tempo para que isso ocorra. Outros cinco apuram o envolvimento de ministros em irregularidades. Pela decisão do STF, que abrange apenas deputados e senadores, esses casos continuam na Corte.


Fernando Gabeira: Marolas e tsunami

Delação da Odebrecht castiga não só o PT, mas outros partidos, como PSDB e PMDB, e devasta a política na América do Sul

Aos trancos, caminhamos. Caiu o foro privilegiado, caiu o esquema de doleiros que atendia a políticos e milionários de modo geral. Houve também uma evolução interessante, naquela decisão de retirar a delação da Odebrecht do processo contra Lula. Menos de uma semana depois, a delação da Odebrecht voltou a assombrar. Dessa vez, Lula e mais quatro foram denunciados pelos investimentos em Angola. Se volto ao tema é apenas para enfatizar a amplitude da delação da Odebrecht, uma empresa que se organizou de forma profissional e sofisticada para corromper autoridades. Talvez tenha sido a maior do mundo nessa especialidade.

No entanto, não apenas os ministros Gilmar, Lewandowski e Toffoli tentam neutralizar as confissões da Odebrecht. Há uma dificuldade geral de reconhecer sua importância. Inicialmente, foi descrita como um tsunami. Mas não era. Ela apenas castiga com ondas fortes não só o PT, mas também outros partidos, entre eles, PSDB e PMDB.

A delação da Odebrecht cruzou fronteiras e devastou a política tradicional na América do Sul. No Peru, por exemplo, praticamente todos os ex-presidentes foram atingidos, um deles caiu, outro foi preso por um bom período. Talvez a dificuldade de avaliar como a delação da Odebrecht bateu fundo seja uma espécie de constrangimento nacional pelo fato de o Brasil ter se envolvido oficialmente no ataque às democracias latino-americanas.

O escritor peruano Vargas Llosa afirmou que a delação da Odebrecht fez um grande favor ao continente. E disse também que Lula era um elo entre a empresa e os governos corrompidos. Nesse ponto, discordo um pouco. O esquema de corrupção que cruzou fronteiras não era apenas algo da Odebrecht com a ajuda de Lula. Era algo articulado entre o governo petista e a empresa. A abertura de novas frentes no exterior não se destinava apenas a aumentar os lucros da Odebrecht, embora isto fosse um elemento essencial. Dentro dos planos conjuntos, buscava-se também projetar Lula como líder internacional, ampliar a influência do PT em todas as frentes de esquerda que disputavam eleições.

A ideia não era apenas ganhar dinheiro, embora fosse, em última análise, o que mais importava. O esquema brasileiro consistia em enviar marqueteiros para eleger aliados, com o mesmo tipo de financiamento consagrado aqui: propina da Odebrecht. Da mesma forma como tinha se viabilizado na esfera nacional, o PT exportava seus métodos com um objetivo bem claro de ampliar seu poder de influência no continente.

Portanto, Lula não era simples emissário da Odebrecht. A empresa estava consciente de seu projeto de influência. Não sei se ideologicamente acreditava numa América Latina em que todos os governos fossem como o do PT. Mas certamente a achava a mais lucrativa e confortável das estratégias e se dedicou profundamente a ela. Uma das hipóteses que levanto para que o tema não fosse visto com toda a transparência é o constrangimento em admitir que através de seu presidente e de uma política oficial de financiamento o Brasil se meteu até o pescoço na degradação das democracias latinas. Algum dia, teremos de oficialmente pedir desculpas. Nossas atenuantes, no entanto, são muito fortes: foi a Lava-Jato que desmontou o esquema, e o uso do dinheiro foi um golpe nos contribuintes nacionais.

Esta semana, o Congresso decidiu que vamos pagar o crédito de R$ 1,1 bilhão à Venezuela e a Moçambique.

Subestimamos o papel do Brasil e pagamos discretamente as despesas da aventura. Gente fina é outra coisa.


Merval Pereira: Avanço republicano

O fim do foro privilegiado de deputados e senadores por unanimidade mostra que, apesar das diferenças de visão, o Supremo Tribunal Federal tem uma posição firme sobre o assunto, variando apenas a maneira de aplicar a decisão. Mesmo que os ministros que eram contra a proposta tenham aderido a ela apenas diante do fato consumado.

Quatro dos onze ministros ficaram vencidos na proposta de Alexandre de Moraes, que previa que o foro privilegiado seria mantido para os parlamentares durante o mandato, não importando que o crime tivesse sido cometido sem ligação com sua atuação parlamentar.

Mesmo assim, a proposta era um avanço, pois os parlamentares poderiam ser julgados por crimes passados, o que hoje não acontece. A maioria do Supremo decidiu, no entanto, avançar mais, e o foro só valerá para crimes cometidos no mandato e em função dele.

O recebimento de propina na campanha eleitoral, por exemplo, será julgado na primeira instância, pois o candidato não tem foro privilegiado. O interessante é que essa maioria de 7 a 4 está prevalecendo nas recentes decisões do STF, mas a composição da maioria não se repete.

Os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes têm votado em bloco, enquanto os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Luiz Fux e Cármen Lúcia votam geralmente com a mesma posição. Os ministros Alexandre de Moraes, Celso de Mello e Rosa Weber são os swing votes, isto é, votos que podem ajudar a formar a maioria, sem tendência fixa.

Mas os ministros que hoje fazem a maioria na Segunda Turma, deixando quase sempre em minoria o relator da Lava-Jato, Edson Fachin, e, em alguns casos, o decano Celso de Mello, raramente têm tido a maioria no plenário.

Nesse caso, vai ser mais difícil para os ministros derrotados decidirem os casos que devem ir para a primeira instância baseados no critério que foi rejeitado pela maioria, como alguns ministros fazem no caso da prisão em segunda instância.

Os quatro que votaram para que a Corte julgue crimes cometidos durante o mandato, independentemente se o delito tem relação com a função parlamentar, foram Alexandre de Moraes, que abriu a divergência, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.

Dos cinco ministros que votaram contra a prisão em segunda instância, apenas a ministra Rosa Weber acata a maioria, mesmo contra sua opinião. O ministro Dias Toffoli também se pauta pelo respeito à maioria, em que ele formava no julgamento de 2016, mas mudou de ideia e hoje propõe que a prisão se dê após a decisão do STJ.

O ministro Gilmar Mendes, que também formou a maioria naquela ocasião, anunciou mudança de posição e vem concedendo habeas corpus, assim como Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. Fazem isso porque a decisão foi em caráter liminar, permitindo, mas não obrigando a decretação da prisão.

No caso do fim do foro privilegiado, a decisão é terminativa, e provavelmente as dúvidas que surgirem sobre se o crime foi cometido em razão do cargo deverão ser definidas pelo relator, com recurso nas Turmas.

Outro avanço alcançado ontem impede, pelo menos em parte, a chamada “gangorra processual”, em que o político aguarda até perto da decisão final do STF e renuncia ao mandato, levando seu processo à estaca zero para a primeira instância. Os ministros decidiram que o processo não mudará de instância nos casos envolvendo a fase de intimação para as alegações finais, isto é, após a colheita de provas.

A consequência da decisão do Supremo, a médio prazo, será sua extensão para as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais. Mas a proposta de emenda constitucional que está em tramitação no Congresso é mais radical ainda, acabando com o foro privilegiado para todos, com exceção de presidentes de Poderes: Presidência da República, do Congresso (Câmara e Senado) e do Supremo.

Foi arquitetado como uma reação à decisão do Supremo, e na próxima legislatura deve tornar-se pauta prioritária. Dependendo da nova formação do futuro Congresso, a mudança constitucional pode manter os avanços agora feitos pelo Supremo.

Se, ao contrário, o espírito vigente for o mesmo que hoje impera no Congresso, teremos mais uma crise institucional, com forte reação da opinião pública contra um eventual retrocesso.


Eliane Cantanhêde: Fim do foro, fim da festa?

Restrição ao foro foi grande passo, mas as dúvidas são muitas e vão durar

Ao restringir o foro privilegiado para senadores e deputados federais apenas por crimes cometidos durante o mandato e relativos a ele, o Supremo quebrou um paradigma, abriu uma ampla avenida para derrubar o foro de demais autoridades e lavou a alma da opinião pública. Mas isso é só o começo.

Depois da sessão, perguntei à presidente Carmen Lúcia quando a mudança vai começar na prática: “Imediatamente”, ela respondeu, sem titubear. E pode ser hoje. As dúvidas, porém, são muitas:

1) O próprio STF terá de avaliar, caso a caso, o que é e o que não é crime relativo ao mandato. Receber propina para votar um projeto, evidentemente, é. O marido bater na mulher, ao contrário, não tem nenhuma relação com a função. E quando o deputado dá um tapa na cara de alguém num evento político, como aconteceu no Pará?

2) Após a decisão do STF, os advogados vão avaliar se é melhor para o réu ficar no STF ou ir para a primeira instância. E vem a maratona de recursos, numa direção ou outra. Quanto tempo isso dará ao réu e quanta energia tomará do ministro e de uma turma do STF?

2) Não haverá mudança de instância após a instrução do processo – quando o ministro dá prazo às partes para alegações finais –, pelo princípio da “prorrogação de competência”. Afinal, o juiz que acompanha um caso, ouve acusação e defesa e conhece as provas é o mais apto para proferir a sentença. Então, dois casos semelhantes poderão ter destinos diferentes por questão de timing. Um ficará no STF, outro irá para a primeira instância. Uma confusão.

4) Todos os processos referentes à Lava Jato irão automaticamente para o juiz Sérgio Moro, ou uns vão para o Rio, outros para Brasília, outros ainda para a Bahia e assim por diante? Com 18 mil juízes no País, há ou não o risco de olhares, interpretações e sentenças muito díspares? Para uns réus, a ida para a primeira instância será o inferno e, para outros, o paraíso?

5) Mais: Moro está numa Vara especializada nos crimes da Lava Jato, mas em Belo Horizonte, por exemplo, há dezenas de juízes com milhares de processos referentes a tráfico, estelionato, assassinato etc. Quando um juiz receber um caso do Supremo, por sorteio, vai se deparar com um processo complexo, cheio de minúcias e de excelentes advogados pagos a peso de ouro. Isso vai ou não parar tudo até ele tomar pé da situação?

6) Renan Calheiros, Romero Jucá e Aécio Neves, campeões de inquéritos entre os que têm foro no STF, enfrentam processos por variados motivos. Cada processo vai para um Estado, uma Vara, um juiz? Vão ter advogados em Curitiba, Brasília, São Paulo, Minas, Alagoas, Roraima? Vão virar muitos Renans, Jucás e Aécios?

7) Como indagou o ministro Gilmar Mendes, o que acontece com os processos de parlamentares que trocam de cargo? Detalhando: como deputado, o sujeito era julgado no STF, agora cai na primeira instância, aí vira ministro e volta para o STF? E, se é demitido, volta de novo para o juiz de primeira instância?

8) Aliás, quando virá a “isonomia” cobrada por Dias Toffoli? Ou seja, e a restrição de foro também para ministros, governadores, membros do próprio Supremo...? Nesse caso, um dos 18 mil juízes poderá pedir busca e apreensão no Planalto e no STF?

9) E a principal dúvida é se, e quando, vier o fim da prisão em segunda instância. O sujeito será julgado antes na primeira e depois na segunda instância, mas, condenado, o que acontecerá? Nada. Ele fará um ar indignado, posará de injustiçado, culpará os inimigos e a mídia e irá para casa curtir mil e um recursos durante 20 anos. Até seu caso voltar à origem: o próprio Supremo.

O Brasil precisa mesmo rever o foro, mas não achem que será rápido, fácil, muito menos uma festa.


El País: STF restringe foro de parlamentares, mas não se manifesta sobre outras 54.400 autoridades

Em decisão unânime, Supremo entendeu que deputados e senadores só podem ser julgados por delitos cometidos durante o mandato ou em função dele

Por Afonso Benites, do El País

O Supremo Tribunal Federal decidiu nesta quinta-feira restringir a prerrogativa de foro privilegiado aos 594 deputados federais e senadores brasileiros. A decisão, tomada por unanimidade, excluiu outras 54.400 autoridades que têm a prerrogativa de serem julgadas por tribunais, ao invés de terem seus casos analisados em primeira instância. Os ministros decidiram sobre um processo envolvendo um ex-deputado federal do Rio de Janeiro e, por essa razão, entenderam que não era o momento de se debruçar sobre os privilegiados que não são congressistas.

Entre os que ainda permanecem com foro privilegiado nas esferas estadual ou federal estão presidente e vice-presidente da República, ministros de Estado, juízes, membros do Ministério Público, deputados estaduais, governadores, prefeitos, comandantes das Forças Armadas, entre outros.

Apesar de não estar oficialmente em debate, a ampliação da restrição do foro foi discutida intensamente entre os magistrados nas últimas duas sessões do plenário, na quarta e na quinta-feira. “Não dá para fazer distinção. Por que parlamentar não terá mais foro, mas promotor de Justiça que fez concurso público terá? Se isso valerá para deputado, valerá para juízes e comandante do Exército?”, questionou o ministro Gilmar Mendes o último a votar.

Em maio do ano passado, os senadores aprovaram uma proposta de emenda constitucional (PEC) que reduzia a prerrogativa de foro apenas ao presidente e vice-presidente da República, aos presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado e da Câmara dos Deputados. Todos os demais, em caso de cometimento de crimes, seriam julgados por um juiz de primeira instância. A PEC não foi analisada pelos deputados e não a será neste ano porque, com a intervenção federal do Rio de Janeiro, nenhuma alteração constitucional pode ser feita. “Talvez provocado por nós, o Congresso aprovou uma tábua rasa de todas as considerações feitas na Constituição de 1988”, criticou o ministro Ricardo Lewandovski.

A decisão desagradou até deputados que defendem o fim do foro privilegiado, como Daniel Vilela (MDB-GO), presidente da Comissão de Constituição e Justiça. “Tem que ser para todo mundo. Senão, faremos uma carta para os privilegiados. E a ideia é justamente o contrário”, reclamou.

Independentemente das críticas dos magistrados e de parte dos legisladores, a partir de agora os parlamentares só responderão aos crimes no STF caso tenham cometido o delito durante o mandato. Por exemplo, se um deputado empossado em 2019 estiver sendo processado por estelionato cometido em 2018, enquanto ainda não era parlamentar, ele será julgado no primeiro grau.

Apesar de os ministros terem sido unânimes nessa restrição do foro, houve divergências sobre um trecho do relatório do ministro Luís Roberto Barroso. O relator entendeu que os deputados federais e senadores só poderão responder a processos no Supremo caso tenham cometidos delitos relacionados à função. Esta tese prevaleceu pela votação de 6 a 5. Um caso hipotético: um congressista pode ser julgado no STF caso tenha recebido propina para aprovar um projeto de lei. No caso de cometer delitos considerados “comuns”, como o de ter se envolvido em um acidente de trânsito, responderá na primeira instância. Até a data do julgamento, todos os delitos envolvendo deputados e senadores eram julgados na Corte suprema.

“Lenda urbana”
Um dos principais críticos desse trecho do relatório de Barroso foi o ministro Dias Toffoli. Ele refutou a tese de que a prerrogativa de foro seja um benefício aos legisladores. “Não se trata, ao meu ver, uma questão de privilégio. Pelo contrário. Os que detêm a prerrogativa tem diminuídos as instâncias recursais e a redução da possibilidade de prescrição, já que o trânsito em julgado cabe ao Supremo”.

Em seu voto, Toffoli quis acabar com o que ele chamou de “lenda urbana”, que é o senso comum de que o Judiciário era conivente com o crime de corrupção. Segundo ele, apenas em 2001, após uma mudança legislativa, o STF teve condições de julgar diretamente os deputados e senadores. Antes, para qualquer processo tramitar na Corte era necessária a aprovação dos próprios legisladores, algo que jamais ocorrera.

Um levantamento feito junto ao STF mostra que entre 2002 e abril de 2018, entraram na casa 661 ações penais contra políticos. Em uma pesquisa menos ampla, que analisou o período entre 2006 e 2016, uma equipe do projeto Supremo em Números, da Fundação Getúlio Vargas, constatou que 95% dos casos envolvendo esses políticos com foro poderiam ser julgados em primeira instância, se a regra aprovada nesta quinta-feira já estivesse em vigor.

A mesma pesquisa da FGV concluiu também que, caso os processos desses políticos tramitassem em primeira instância, sua conclusão seria mais célere e as chances de prescrição dos crimes seriam menores. Em média, uma denúncia é analisada pelo STF em 591 dias, quando na primeira instância o prazo é de uma semana.

Ainda que o foro tenha sido restringido, nenhum dos casos que hoje tramitam no judiciário seguirá automaticamente para o juiz de primeiro grau. Cada processo será analisado individualmente.


El País: STF diante de uma decisão histórica ao julgar foro privilegiado para os políticos

Após um ano, Corte retoma julgamento com maioria favorável a mudança nas regras. 95% dos casos que hoje estão na Corte já poderiam estar na primeira instância

Por Afonso Benites, do El País

O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quarta-feira, dia 2, um julgamento que pode estremecer as estruturas políticas do Brasil: a restrição do foro privilegiado para deputados federais e senadores. Atualmente, os 594 parlamentares federais são julgados diretamente pela Corte Suprema do país. A tese que já obteve 8 votos favoráveis dos 11 ministros prevê que eles só teriam essa sede especial caso cometessem crimes durante o mandato e em razão de sua função. Por exemplo, se um parlamentar for investigado por agressão à sua mulher, ele responderia ao delito na primeira instância. Mas, se o crime fosse negociar propina para a aprovação de algum projeto de lei durante a atual legislatura, o foro seria o Supremo. Com a maioria do STF favorável a restringir o polêmico foro, a decisão deve ser aprovada, a não ser que dois dos ministros que ainda não se pronunciaram voltem a pedir vistas e protelem de novo o processo.

A mudança de paradigma deverá interferir em 95% dos casos que estão no STF e envolvem parlamentares, de acordo com um estudo feito pelo projeto Supremo em Números, da Fundação Getulio Vargas. Hoje, há 431 inquéritos e 101 ações penais contra políticos tramitando na principal Corte brasileira. Um processo pode ter mais de um único denunciado.

O mesmo levantamento da FGV concluiu também que, caso os processos desses políticos tramitassem em primeira instância, sua conclusão seria mais célere. E, possivelmente, as punições ocorreriam com maior frequência. Em duas de cada três ações penais o mérito da acusação contra o parlamentar sequer chega a ser avaliado pelo Supremo, em razão do declínio de competência (63,6% das decisões) ou da prescrição da pena (4,7% das decisões). Esse segundo caso ocorreu em uma ação penal contra o deputado Fernando Giacobo (PR-PR). Acusado pelos crimes de formação de quadrilha e falsificação ideológica, a denúncia levou 11 anos para ser analisada e prescreveu. Para o estudo, foram analisados casos que entraram na Corte entre 2006 e 2016.

Só na Lava Jato, há 80 pessoas com foro privilegiado com processos abertos no STF. Entre elas, o presidente da República, Michel Temer, quatro de seus ministros e ex-ministros (Moreira Franco, Eliseu Padilha, Helder Barbalho, Gilberto Kassab), além de 43 deputados federais, 3 governadores, 28 senadores e um ministro do Tribunal de Contas da União. A maioria delas deverá disputar a eleição. Apesar de a decisão do STF de restringir o foro estar perto da conclusão, em ela se confirmando, todos os casos envolvendo os políticos ainda terão de ser analisados individualmente.

Atualmente, cerca de 55.000 autoridades brasileiras têm a prerrogativa de foro. Entre eles estão juízes, ministros de cortes superiores, membros do ministério público, governadores, prefeitos, entre outros. O processo em análise trata apenas dos deputados federais e senadores. Mas há projetos em tramitação no Congresso Nacional que visam reduzir esses privilégios a apenas os presidentes dos poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.

"Provável privilégio pessoal"
Em seu voto como relator do processo, o ministro Luís Roberto Barroso ressaltou que só para receber uma denúncia a Corte leva quase 581 dias (pouco mais de 19 meses), enquanto que um juiz de primeira instância o faz em até uma semana. Disse Barroso: “Parece claro que se o foro privilegiado pretende ser, de fato, um instrumento para garantir o livre exercício de certas funções públicas, e não para acobertar a pessoa ocupante do cargo, não faz sentido estendê-lo aos crimes cometidos antes da investidura nesse cargo e aos que, cometidos após a investidura, sejam estranhos ao exercício de suas funções. Fosse assim, o foro representaria reprovável privilégio pessoal”. Esse entendimento foi acompanhado por sete colegas: Cármen Lúcia, Celso de Mello, Alexandre de Moraes, Rosa Webber, Edson Fachin e Luiz Fux.

O processo que trata da prerrogativa de foro dos parlamentares volta a ser analisado quase um ano depois de ter seu julgamento iniciado. Sua primeira votação ocorreu em 31 de maio de 2017. Depois voltou a ser analisado em novembro passado. Ficou esse tempo paralisado porque o ministro Dias Toffoli pediu vistas, mais tempo para analisar o processo, e só o liberou para julgamento no mês passado. Apesar dessa liberação, ainda há o risco de algum dos outros dois ministros que ainda não votaram, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandovski, utilizem-se do mesmo expediente e protelem a conclusão.

O caso concreto analisado está no Judiciário há dez anos. Envolve o atual prefeito de Cabo Frio (RJ), Marcos da Rocha Mendes, conhecido como Marquinho. Em 2008, ele foi acusado de comprar votos na eleição municipal. Como foi eleito prefeito, seu caso subiu para a segunda instância, Tribunal Regional Eleitoral. Esse tribunal levou cinco anos para julgar o caso e Mendes não era mais prefeito. O processo voltou para a primeira instância. Apenas em dezembro de 2014, ele ficou pronto para ser julgado, mas nessa época, o político tinha acabado de ser eleito primeiro suplente de deputado federal. Com o afastamento de políticos eleitos em sua coligação, tornou-se deputado. Ao assumir o cargo, o processo chegou ao STF. Ainda assim, o sobe desce de instâncias não acabou. Em 2016, Mendes renunciou o mandato na Câmara porque foi eleito prefeito. Assim, seu caso deveria retornar ao TRE do Rio.