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Gabeira: ‘Declaração da parcialidade de Moro decreta também o enterro sem honras da Lava Jato’

Ex-deputado e jornalista diz que estratégia de tentar reduzir danos à operação fracassou, e fala em 'incógnita' sobre 2022

Eduardo Kattah, O Estado de S. Paulo

Na opinião do ex-deputado federal e jornalista Fernando Gabeira, a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin de anular os processos relativos ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Lava Jato em Curitiba foi uma tentativa de reduzir os danos causados à Lava Jato, mas a estratégia, aparentemente, fracassou.

Para ele, se o ex-juiz titular da 13ª Vara Criminal na capital paranaense for declarado suspeito pela Segunda Turma da Corte a operação – que considera uma das mais produtivas no combate à corrupção – será enterrada “sem honras”. Gabeira considera que a forma como Lula irá se colocar em 2022 “ainda é uma incógnita”. 

O que representa a decisão do ministro Fachin de declarar a nulidade dos processos que envolvem o ex-presidente Lula na Lava Jato em Curitiba? 

A decisão do Fachin ao julgar a incompetência de Curitiba foi uma tentativa de evitar mais estragos na Lava Jato caso Moro fosse considerado parcial. Parece que a estratégia fracassou. No caso da parcialidade de Moro, os processos recomeçam do zero e vão surgir novos recursos de outros acusados. 

O que significa a manutenção do julgamento da 2ª Turma do Supremo sobre a suspeição de Moro no caso do triplex? 

A julgar pelo voto de Gilmar Mendes, que é o adversário mais antigo e consistente da operação, a declaração da parcialidade de Moro decreta também o enterro sem honras da Lava Jato, que foi umas  das mais produtivas, considerando que outras operações contra a corrupção, como Satiagraha e Castelo de Areia, nem sequer decolaram.

Moro ainda é um ator com protagonismo na cena eleitoral do próximo ano? 

Moro mantém um alto nível de popularidade, mas parece não ser vocacionado para a política.

A antecipação do processo eleitoral de 2022 terá algum efeito num cenário de agravamento da pandemia?

A antecipação do processo eleitoral em plena pandemia pode talvez forçar Bolsonaro a adotar a tese da vacinação em massa e, no campo da economia, vai levá-lo a abandonar os resquícios de liberalismo.

Lula favorece ou atrapalha uma eventual frente de centro-esquerda ou da esquerda na eleição de 2022? 

Ainda é uma incógnita como Lula vai se colocar e outra incógnita é a definição de candidatos do centro.

O retorno da polarização que dominou a disputa de 2018 é mesmo uma boa notícia para o presidente Bolsonaro? 

Há eleitores de Lula e eleitores de Bolsonaro. E leitores de nenhum nem outro, só que essa expressão engloba vários nomes.


Fernando Gabeira: Um grande exorcismo

Se foi possível nos EUA, por que não aqui, com personagens tão caricatos?

A derrota de Donald Trump não só tranquilizou, como trouxe alento a muitos países no mundo. A expressão de Francis Fukuyama referindo-se ao exorcismo para definir a vitória de Joe Biden é muito precisa. Parece que tudo volta lentamente a um curso mais racional, menos imprevisível. O Acordo de Paris volta a ser um instrumento potencialmente eficaz para combater o aquecimento global. Angela Merkel saudou a volta de uma aliança transatlântica e suas possibilidades.

Alguns países se recusam a reconhecer a derrota de Trump. China, Rússia e Brasil estão entre eles, por motivos diferentes, creio. Na linguagem diplomática o atraso é uma mostra inequívoca de insatisfação com o resultado. Tanto a China quanto a Rússia contavam com o avanço do processo de decadência americana, encarnado por Trump e seu isolacionismo.

O caso brasileiro é de orfandade. Bolsonaro perdeu seu grande inspirador. E a política externa, comandada por Ernesto Araújo, não tem mais o que considera o líder do Ocidente que iria fazer prevalecer os valores morais sobre o materialismo reinante. Não se sabe de onde se trouxe uma figura laranja, cheia de problemas com o Fisco, rude com as mulheres, para o cargo de guardião do cristianismo.

A pior das ilusões foi a expectativa provinciana de Bolsonaro se tornar amigo de Trump. Este sabe que nações não têm amigos e está escorado no slogan “America first”. Objetivamente, fez de Bolsonaro um fiel seguidor, pronto para aprovar tudo em nome de uma pretensa amizade pessoal, ali onde estavam em jogo interesses nacionais. A exportação do aço foi taxada, Bolsonaro dilatou o prazo para a importação do etanol e colocou sua diplomacia num ato de campanha eleitoral na fronteira com a Venezuela, quando da visita de Mike Pompeo. Para dar mais uns votinhos a Trump na Flórida. O Brasil armou o circo que Pompeo precisava.

Agora tudo acabou. Se há esperanças na Europa, aqui há apreensão. É muito difícil Bolsonaro adaptar-se à posição ambiental de Biden. Para Bolsonaro será mais uma forma de adotar uma falsa postura nacionalista e não interromper o processo de destruição da Amazônia, o único caminho que vê para o progresso, nos termos em que o entendem as pessoas que ficaram congeladas nos anos 70 do século passado.

Logo depois da eleição de Biden Bolsonaro pensa em lançar um marco regulatório das ONGs. Na verdade, é uma promessa antiga, pois afirmou que iria acabar com o ativismo no Brasil. Trata-se de algo inconstitucional, que deve encontrar resistência no Congresso e no Supremo.

Além disso, circula um documento no Conselho da Amazônia dizendo que chineses e europeus têm planos para levar a água de lá. Não se sabe como o fariam sem o consentimento brasileiro É mais uma história para fantasiar uma luta nacionalista e ampliar o processo de destruição em nome dos interesses do Brasil.

No passado era o minério e agora, a água. Não creio que elaborem essas teorias de má-fé. Lembro-me, no passado, de já se ter discutido a possibilidade de exportação de água. Foi uma discussão baseada no Canadá, também exportador. Não foi adiante. Era uma exportação controlada, mas não se demonstrou a viabilidade.

Se os chineses podem levar nossa água, por que não nosso açaí, nossa castanha e todos os outros recurso naturais? Essa formulação alucinada só servirá para aumentar o isolamento brasileiro. Sem o deus laranja da nossa diplomacia, com Bolsonaro atuando de forma estúpida num contexto externo delicado e caminhando para uma crise interna sem precedentes, o grande exorcismo ainda não atingiu o Brasil. O mundo ficou mais inteligível e racional, mas os espíritos secundários que baixaram por aqui ainda não permitem que nos livremos de seus delírios maníacos. Uma coisa nos anima: se foi possível em escala maior, por que não aqui, com personagens tão caricatos?

O último pronunciamento de Bolsonaro nos indica o nível de insanidade a que chegou o governo brasileiro. Ele insinuou um conflito armado com os EUA ao dizer que vai usar a saliva, mas quando acabar restará a pólvora.

Uma forma de desestimulá-lo é informar-lhe que a pólvora foi descoberta pelos chineses – ele certamente vai duvidar desse instrumento, como duvida da vacina contra o coronavírus. Outra é apelar para sua generosidade. Os EUA acabam de sair de uma eleição difícil, combatem como nós uma pandemia, não é justo amedrontá-los com um conflito armado. Eles seriam jogados na máquina do tempo, sentiriam no contato com nossos equipamentos como se estivessem entrando de novo na 2.ª Guerra Mundial. Talvez valesse mais a pena fazer o general Mourão e alguns militares reformados que jogam vôlei no Posto 6, em Copacabana, invadir a Filadélfia e reverter o resultado eleitoral. Isso traria menos conflito e bom material para programas humorísticos mundo afora.

Na verdade, o governo Bolsonaro seria risível se não se tratasse de uma pandemia que mata tanta gente e de uma política ambiental que reduz as chances de vida no planeta. Por isso se tornou uma tragicomédia, cujo prazo de duração até 2022 é muito doloroso.

*Jornalista