evo morales

Sérgio Augusto: Tempos ásperos

Vargas Llosa candidata-se a ser, com todas as honras, o Balzac das ditaduras cucarachas

Saudei aqui, em 2006, a eleição de Evo Morales, a grande esperança chola de um país que, até então, sofrera cerca de 200 golpes de Estado em 175 anos de história. Cholos são os índios aculturados da Bolívia. Morales não os decepcionou: a desigualdade social diminuiu bastante, o PIB subiu de forma surpreendente. Muitos criollos (brancos descendentes de colonos europeus), donos seculares daquelas terras e riquezas, desdobraram-se na manutenção de seus privilégios e do recorde golpista boliviano, fazendo Morales pagar bem caro pela teimosia de um mandato a mais – o quarto.

Se antigamente os gringos cobiçavam a prata e, depois, o gás dos bolivianos, agora em jogo também figuram as maiores reservas de lítio do mundo. Combustível básico das baterias de celulares e dos carros elétricos, o lítio virou o pré-sal da Bolívia.

Poucos meses atrás, quando começou a balançar o coreto da direita (Áñez, Camacho e Mesa) que tomou conta do poder após derrubar Morales, o fundador da fábrica de carros elétricos Tesla Motors, Elon Musk, temeroso de perder a mamata do lítio, ameaçou, ele próprio, uma nova virada de (sem trocadilho) mesa. “Vamos dar um golpe em quem quisermos!”, fanfarronou o empresário. Ridículo. Musk foi um dos mais gozados pela lídima vitória eleitoral do candidato de Morales, Luis Arce, no último fim de semana.

Minha recolhida celebração da segunda “vitória chola” coincidiu com a leitura do novo romance de Mario Vargas Llosa, Tempos Ásperos, traduzido pela Alfaguara. A rigor, só mudei de país: da Bolívia para a Guatemala, ambos com majoritária população indígena e passado, presente e vilões similares. Vilões adventícios e autóctones, de ternos e fardados, com e sem armas de fogo. Nas repúblicas bananeiras da América Latina, férteis em bananas e outras riquezas vegetais e minerais, as palavras golpe e militar são como irmãos siameses, inseparáveis.

(Sempre que algo palpitante rende manchetes à Guatemala, eu me lembro de uma hilariante chamada do telejornal que o comediante Chevy Chase apresentava no humorístico Saturday Night Live, nos anos 1970: “Um terremoto de grande intensidade atingiu ontem a Guatemala, matando 350 ditadores militares”).

O romance de Vargas Llosa conta a história de um deles, o tenente-coronel Carlos Castillo Armas que, em 1954, à frente de um exército de mercenários financiado pela CIA, tirou da presidência da Guatemala o coronel Jacobo Árbenz Guzmán, eleito democraticamente em 1950. Começava ali a longa cruzada golpista dos EUA ao sul do Rio Grande, alimentada pela Guerra Fria e arquitetada pelos sinistros irmãos John Foster e Allan Dulles, respectivamente secretário de Estado e diretor da CIA do governo Eisenhower, dois falcões obcecados com a União Soviética e o “avanço do comunismo” mundo afora. Pelos estragos que causaram, esses dois mereciam um círculo especial no Inferno de Dante.

Tempos Ásperos é, de certo modo, uma complementação de A Festa do Bode, que o escritor peruano escreveu sobre o ditador dominicano Rafael Trujillo, 20 anos atrás. Vargas Llosa candidata-se a ser, com todas as honras, o Balzac das ditaduras cucarachas.

Déspotas fardados é o que não falta na história do continente; todos “cavernícolas fanáticos” do anticomunismo, quase todos irremediavelmente corruptos e ocasionalmente assassinados. Trujillo, por sinal, aparece no livro, assim como outro assassinado, Anastasio Somoza, que permitiu o treinamento dos mercenários da Castillo Armas na Nicarágua, pois a invasão foi uma operação consorciada pelos tiranetes da região subservientes aos interesses econômicos, ideológicos e geopolíticos dos EUA.

Árbenz Guzmán era um militar honesto, reservado, caladão (daí o apelido de “Mudo”), apenas interessado em aclimatar ao país uma democracia moderna à americana, com imprensa e eleições livres e concretizar uma eficiente reforma agrária, também os anseios de seu antecessor, o educador Juan José Arévalo, de quem Guzmán foi ministro da Defesa.

O coronel legalista enfrentou mais de trinta tentativas de golpe contra Arévalo, demonizado, sem pudor nem fundamento, como títere do comunismo soviético. Essa mesma aleivosia seria lançada contra Guzmán pela máquina de mentiras e meias-verdades manipulada da CIA e disseminadas na imprensa amiga pelo embaixador americano na Guatemala, John Peufiroy, que não ganhara o apelido de “açougueiro da Grécia” por eventuais obras beneficentes em Atenas, seu posto anterior.

Em janeiro de 1954, Peufiroy insinuou à revista Time que o comunismo avançava célere na Guatemala. No mês seguinte, falsas armas soviéticas “destinadas à Guatemala” apareceram, misteriosamente, na Nicarágua. Tais patranhas eram as fake news da época, inventadas e orquestradas por um ancestral de Steve Bannon chamado Edward Bernays.

Pioneiro da propaganda e do serviço de relações públicas, Bernays era o braço direito do magnata das bananas Samuel Zemurray, dono da United Fruit, que, embora tivesse conseguido do governo guatemalteco um bom preço pela compra de parte do seu gigantesco latifúndio, não abriu mão do golpe.

Em 18 de julho, Guzmán foi derrubado e exilou-se no México, onde viveu até morrer, em 1971. O traiçoeiro coronel Castillo Armas, “figura apagada que passou pela Escola Militar sem glória nem brilho”, enterrou o país, mas não chegou ao fim de sua ditadura, interrompida em 1957 quando um guarda da presidência o despachou para os quintos do inferno.

*É jornalista e escritor, autor de ‘Esse mundo é um pandeiro’


Bernardo Mello Franco: Vitória de Evo, derrota de Bolsonaro

A vitória de Luis Arce na Bolívia sela mais uma derrota da diplomacia de Jair Bolsonaro e Ernesto Araújo. A dupla envolveu o Brasil na quartelada que derrubou o então presidente Evo Morales. Menos de um ano depois, os golpeados deram o troco nos golpistas e voltaram ao poder pelo voto.

Bolsonaro e Araújo festejaram a derrubada de Evo, que teve a casa invadida e foi obrigado a fugir do país. O chanceler trapalhão tuitou que não houve “nenhum golpe” na Bolívia. Horas antes, uma junta militar havia ocupado a TV para exigir a renúncia do presidente.

Evo ignorou um referendo na tentativa de se perpetuar no poder. No entanto, a alegação de que ele teria fraudado a última eleição nunca foi provada. O relatório da OEA que apontava “graves irregularidades” na apuração caiu em descrédito. Foi desmontado por especialistas de três universidades americanas.

Além de apoiar a virada de mesa, o Itamaraty ajudou a entronar Jeanine Áñez como presidente interina. Ela descumpriu a promessa de convocar eleições em janeiro e usou o cargo para perseguir opositores, segundo relatório da Human Rights Watch.

Ao tomar partido dos golpistas, o Brasil perdeu condições de mediar a crise no país vizinho. Foi uma estratégia desastrada. Ontem o chanceler Araújo passou o dia em silêncio, enquanto a oposição boliviana parabenizava Arce pela vitória em primeiro turno.

Esta não foi a primeira operação tabajara da política externa de Bolsonaro. O Itamaraty se associou a Juan Guaidó na tentativa de derrubar Nicolás Maduro na Venezuela. O presidente autoproclamado sumiu do mapa e o chavista continuou no poder.

O Planalto também fracassou ao tentar interferir nas eleições da Argentina. O capitão se empenhou na campanha de Mauricio Macri, mas não conseguiu evitar o triunfo de Alberto Fernández.

O peronista se fortalece com a escolha dos bolivianos. Em 2019, ele condenou a quartelada e ofereceu asilo diplomático a Evo. Ontem celebrou a vitória de Arce como uma “boa notícia para quem defende a democracia na América Latina”.


El País: Promotoria boliviana ordena a prisão do ex-presidente Evo Morales

Ex-mandatário, que está asilado em Buenos Aires, é acusado de terrorismo pelo novo Governo opositor

A Promotoria da Bolívia ordenou na quarta-feira a prisão do ex-presidente Evo Morales, que está asilado na Argentina desde 12 de dezembro. A decisão da Justiça do país, assinada por dois promotores da cidade de Cochabamba, chega quase um mês depois de o gabinete interino que o sucedeu no poder apresentar uma denúncia por sedição (insubordinação) e terrorismo contra o ex-mandatário. O documento determina que policiais e funcionários públicosprendam e conduzam Morales à Promotoria Anticorrupção de La Paz para depor pela suposta realização desses crimes.

A acusação contra o dirigente cocaleiro, que governou a Bolívia durante quase 14 anos, se baseia na suposta tentativa de apoiar os bloqueios às principais cidades, impedindo assim a passagem de alimentos e combustíveis. A Bolívia atravessou uma onda de fortes protestos após a saída de Morales em 10 de novembro. Ele deixou seu cargo forçado pelo Exército e dias depois abandonou o país. Partiu ao México, onde o Governo de Andrés Manuel López Obrador lhe ofereceu asilo, e lá estava durante as mobilizações. O gabinete da presidente interina, Jeanine Áñez, divulgou à época a gravação de uma ligação telefônica em que o ex-presidente supostamente dava ordens a alguns seguidores para cortar caminhos. Os bloqueios isolaram durante dias La Paz e a vizinha cidade de El Alto, um dos principais cenários dos confrontos entre manifestantes e forças de segurança. A escassez de gasolina foi o primeiro efeito. A repressão dos militares, que chegaram a ser eximidos de responsabilidade penal por um decreto depois revogado, deixou dezenas de mortos e centenas de feridos.

O ex-mandatário chamou a investigação de montagem. “A Promotoria inicia investigações com montagens, provas plantadas e gravações manipuladas contra os movimentos sociais que lutam pela vida e pela democracia, mas para 30 irmãos assassinados a tiros na Bolívia, não há investigação, responsáveis e detidos”, atacou em sua conta no Twitter. Morales pediu na terça-feira em Buenos Aires seu direito de voltar a seu país para a convocação de eleições presidenciais —ainda sem data— após a anulação das eleições de 20 de outubro, em que a auditoria da Organização dos Estados Americanos (OEA) detectou várias irregularidades e “manipulação dolosa” das urnas. “Se pretendem realizar eleições livres, me deixem entrar na Bolívia. Não serei candidato nessas eleições, mas tenho direito a fazer política”, solicitou em um comunicado à imprensa.

A ordem de prisão, entretanto, complica o retorno do ex-mandatário à primeira linha. O Governo ultraconservador de Áñez, que assumiu em meio a acusações de golpe de Estado, desde o primeiro dia trabalhou para enfraquecer a máquina do Movimento ao Socialismo (MAS), o antigo partido governista, e colocou em andamento uma campanha para encurralar o entorno de Morales. O ministro do Governo, Arturo Murillo, responsável pela política de segurança, começou no cargo anunciando a “caça” de rivais políticos.

A própria Áñez, do Movimento Democrata Social, prometeu em uma de suas primeiras falas como presidenta que não perseguiria adversários. Mas já à época, antes de apresentar uma denúncia, quis deixar claro que o líder indígena enfrentaria suas responsabilidades caso retornasse. “Agora estão pedindo para que venha quando ninguém o expulsou do país. Ele partiu sozinho, [...] ele sabe que ainda tem contas pendentes com a Justiça boliviana”, disse. “Se o presidente Morales voltar, que volte, mas ele sabe que também precisa responder à Justiça. Nós vamos exigir que a Justiça boliviana faça seu trabalho”.