esquerda

Roberto Dias: Democracia boa não é só a nossa, não

Esquerda jogou fora valores e caiu em armadilhas lógicas

Há enormes razões para não votar em Jair Bolsonaro. O problema é que existem também imensos motivos para não votar no PT.

No bolsonarismo, a agressividade embala a tosquice de sempre. A novidade vem da esquerda, que jogou fora valores, justamente o que diz prezar, e caiu em armadilhas lógicas. ​

A mais evidente é negar a democracia ao afirmar defendê-la. Dizer que votar em Bolsonaro é indefensável acaba sendo, esse sim, um argumento indefensável. Declarar que corrupção não é desculpa para votar no capitão embute premissa absurda: a de que um cidadão precisa de desculpa para exercer um direito.

A esquerda aponta (corretamente) o preconceito contra o Nordeste, que parou Bolsonaro. Mas ridiculariza SP por suas opções legislativas.

O veto à entrevista de Lula para a Folha foi (acertadamente) chamado de censura. Mas quando se anunciou a entrevista de Bolsonaro à Record, a esquerda gritou por censura.

O autoritarismo do elenão começa no nome. Mas há um problema: pela lei brasileira, só a Justiça pode vetar alguém. Segundo ela, Bolsonaro pode se candidatar, e ele, Lula, não. Aliás, é possível encontrar vídeos com inúmeras barbaridades ditas por Lula. A diferença? Para Lula tudo virava piada de salão —e para ele, Bolsonaro, não (nem deveria).

A banalização do termo fascismo mostra que ignorância histórica não é monopólio da direita. A seguir a lógica de quem acha que qualquer eleitor de Bolsonaro é um torturador em repouso, seria o caso de proteger a carteira cada vez que se aproximasse um petista. Trata-se de raciocínio esgarçado até perder o sentido.

A esquerda apontava ameaça democrática no bolsonarismo sem interlocução com o Congresso. Enquanto essa crítica era repetida, o PSL fazia campanha para eleger a nova grande bancada da Câmara. Ficou mais difícil sustentar o ataque por aí.

Numa luta legítima por corações e votos, muita gente da esquerda foi perdendo a lógica pelo caminho. Democracia boa não é só a nossa, não.

*Roberto Dias é secretário de Redação da Folha.


Fernando Gabeira: Uma visão de campanha

Por enquanto, os candidatos hipnotizam com suas propostas. Não se preocupam em mobilizar, dividir papéis. Nesse sentido, é uma campanha analógica, embora, paradoxalmente, tenha invadido as redes sociais

Estou em Boa Vista, pela quarta vez visito a fronteira Brasil-Venezuela. No princípio era apenas um aviso de que algo poderia sair do controle. Nas últimas viagens, era uma certeza.

O chamado socialismo do século 21 foi pro espaço. Seus estilhaços caem dentro do território brasileiro, na forma de onda migratória, crise energética, revolta e violência. Logo no Brasil, arruinado por uma experiência de esquerda e hoje governado pelos parceiros eleitorais do PT.

Não sei se isso vai repercutir na campanha eleitoral brasileira. É tudo tão longe. E aqui não temos o hábito de avaliar criticamente o passado. A esquerda comporta-se como se nada tivesse acontecido. Sua proposta nostálgica é uma viagem ao início do século, voltar a ser feliz.

Não se discute o processo de democratização, sua esperança de usar o Estado para a redução das desigualdades, superar por meio de uma ação de governo todos os grandes problemas do País. A própria Constituição foi escrita nessa ânsia de promover a justiça social, com juros limitados a 12% e uma previsão de imposto sobre grandes heranças. Ficou no papel, mas revela um pouco do espírito da época, que acabou encontrando sua maior expressão no governo de esquerda.

Ainda hoje, a ilusão de que o governo vai resolver todos os grandes problemas sobrevive. Os próprios candidatos revelam seus programas, dizem o que vão fazer em cada área, como se estivessem vendendo o serviço que nos prestarão.

Há pouco espaço nesse tipo de discurso para a participação social, exceto consumir bens e serviços. O PT, por exemplo, tende a igualar felicidade ao aumento de consumo. Um bom exercício para seus militantes seria, por exemplo, refletir sobre esta questão: muita gente diz que votaria em Lula, mas quase ninguém, exceto CUT e MST, se mobiliza para tirá-lo da cadeia.

Minha hipótese é de que todos recebem bem a ideia de aumento de consumo, mas poucos se interessam por valores. No caso de Lula, pode até ser que não se movam baseados num valor: o respeito à independência da Justiça. Mas se isso é verdade, como explicar sua opção eleitoral?

Parto da esquerda para avançar no espectro e constato que a maioria dos candidatos se apresenta como alguém que vai realizar inúmeras tarefas, como se estivesse vendendo seus serviços a clientes cuja única missão é comprá-los. Dificilmente mencionam nos debates o papel que destinam à sociedade na grande tarefa da reconstrução. Basta votar certo, isto é, no orador, que tudo se vai resolver a partir do esforço e competência dele.

O interessante, sem querer criticar os candidatos, pois os tempos são duros, é que se apresentam como aspirantes a um cargo e prometem trabalhar bem. Mas não ousam exercer uma liderança, definindo as tarefas conjuntas de governo e sociedade. No momento em que a hipótese de interação aparece na campanha, ela é inadequada e, ainda assim, respondida com a tradicional afirmação: isso é tarefa do governo e não devemos envolver as pessoas.

Refiro-me à proposta de Jair Bolsonaro de liberar a compra de armas. É possível afirmar que não é o melhor caminho, mas com outro argumento: o de que a participação da sociedade deve focar a informação, a autodefesa com a ajuda da tecnologia, celulares, aplicativos.

Sempre vai aparecer alguém para dizer: e se um assaltante entra na sua casa, armado, de que adianta o telefone celular? De fato, nessa circunstância há pouco a fazer. Mas dentro de uma outra perspectiva, câmeras, vizinhos antenados, sistemas de alarme, tudo isso pode fazer um estranho ser detectado antes de entrar numa casa. É apenas um exemplo, até prosaico, para indicar a sensação de lacuna que sinto na campanha.

A sociedade brasileira teve esperanças e ilusões. Elas se perderam no caminho. Mas precisam de alguma forma ser renovadas.Um escritor espanhol costumava dizer que uma sociedade sem esperança e ilusões é como um monte de pedras na beira de um caminho. O que às vezes os candidatos parecem dizer é isto: reconheço seu ceticismo, mas vou trabalhar muito bem e quando concluir minhas tarefas o País estará novamente de pé.

O que a esquerda propõe é renovar as esperanças num projeto fracassado. Por seu lado, a direita nos remete ao dístico da bandeira: ordem e progresso. Ordem com uma política de segurança rígida e progresso por meio de uma economia liberal.

Uma simples frase inspirada no positivismo não é capaz de abarcar a complexidade do momento. Mesmo porque o progresso hoje é visto também com desconfiança, num momento em que as ameaças ao planeta se tornam visíveis. Progresso para continuar ou acabar com a sobrevivência humana.

O próprio conceito de ordem não se limita à segurança pública. A corrupção é uma desordem, o gasto irracional da máquina do governo é outra, assim como obras inacabadas, vulnerabilidade biológica com o colapso da saúde pública.

Reconheço que é muito difícil sintetizar num slogan uma saída para o Brasil. No passado, quando se tratava apenas do progresso, Juscelino nos propôs avançar 50 anos em 5. Tenho a impressão de que agora, num momento eleitoral, é preciso falar de crescimento para 13 milhões de desempregados.

Mas creio que cada vez mais amadurece entre as pessoas a hipótese de que a educação pode ser o motor dessa nova fase nacional. Seria preciso alguém afirmando que, além de suas tarefas presidenciais, nos levaria a uma sociedade mais bem educada, alguém que propusesse essa nova esperança, acreditasse mais na sociedade do que no próprio governo e a liderasse para esse objetivo.

Por enquanto, os candidatos hipnotizam com suas propostas. Não se preocupam em mobilizar, dividir papéis. Nesse sentido, é uma campanha analógica, embora, paradoxalmente, tenha invadido as redes sociais.

Como ela está no começo, merece o benefício da dúvida: são reflexões provisórias.


Foto: Beto Barata\PR

Augusto de Franco: Os democratas na beira do precipício

Uma análise das alternativas eleitorais do campo democrático

Umas das deficiências “genéticas” dos democratas é não perceberem com antecedência os perigos para a democracia. Foi assim que FHC – que é um democrata – não viu o perigo que Lula poderia representar. É assim agora com muita gente que não está vendo claramente o perigo Bolsonaro. Ou o perigo da volta do PT (com candidato próprio e/ou apoiando tácita ou explicitamente o nacionalista retrógrado Ciro Gomes). Ou o processo de captura da disputa política pelo campo autocrático que está em curso e que pode se consumar caso se estabeleça uma polarização entre duas candidaturas iliberais (no sentido político do termo, quer dizer, estatistas) no primeiro turno das eleições de 2018: Ciro ou alguém do PT x Bolsonaro.

Essa deficiência é antiga: os democratas atenienses, no século 5 a. C. não conseguiram prever os dois golpes que a democracia nascente sofreu por parte dos oligarcas (em aliança com os espartanos). E foram golpes sangrentos, que instalaram a Ditadura dos 400 e a Ditadura dos 30 (esta última conseguiu matar, em 8 meses, mais gente do que toda a primeira fase da Guerra do Peloponeso). Só foram acordar quando esses autocratas (chamados na época de patriotas – foi aí, aliás, que o termo foi cunhado, para designar que queriam a volta “do regime dos nossos país”), contando inclusive com gente da entourage de Sócrates, tentaram dar um terceiro golpe.

Ao longo da história, depois que os modernos reinventaram a democracia, a mesma deficiência se manteve: pode-se citar os casos da ascensão de Mussolini na Itália e do partido nazista, na Alemanha (mas também em vários países de Europa das décadas de 20 e 30 do século 20) cujos perigos, no início, não foram percebidos.

E a deficiência continuou. Assim como a democracia não tem proteção eficaz contra o discurso inverídico e nem contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia, os democratas têm uma miopia congênita para perceber os sinais fracos de que um processo de autocratização está em curso. Agora mesmo, no Brasil de julho de 2018, não estão conseguindo avaliar corretamente os perigos do bolsonarismo (vença ou não Bolsonaro as eleições de 2018) ou da volta da esquerda autocrática ao poder.

Examinemos as alternativas no campo democrático, ou seja, no campo das forças políticas que não são iliberais (no sentido político do termo). Neste campo temos como pré-candidatos: Geraldo Alckmin, Álvaro Dias, João Amoedo, Henrique Meirelles, Paulo Rabello, Flávio Rocha e (embora isso ainda seja controverso) Marina Silva.

Geraldo Alckmin
O problema com Alckmin não é, nunca foi, falta de competência administrativa. Isso todo mundo sabe que ele tem. Também não é a corrupção: até agora não há nada consistente contra o ex-governador de São Paulo. Por último, não é, igualmente, seu desapreço pela democracia: ele sempre atuou dentro dos marcos do Estado de direito.

O problema com Alckmin é de outra ordem: em parte, falta de inteligência política e, em parte, uma dificuldade de conquistar a simpatia do eleitorado e de infundir entusiasmo nos que poderiam apoiá-lo. Claro que se Alckmin se revelar o candidato que tem mais condições de quebrar a polarização, no primeiro turmo, entre dois candidatos do campo autocrático (Ciro ou alguém do PT x Bolsonaro), devemos ir de Alckmin. O mesmo vale para João Amoedo, Meirelles, Álvaro Dias, Paulo Rabello, Flávio Rocha e Marina (de preferência se conseguir se desvencilhar da mentalidade petista, se comprometer com as reformas e prometer que não indicará nenhum petista para compor seu governo).

A questão é: até quando podemos – os democratas – esperar por isso? A resposta padrão, de que Alckmin só vai crescer quando começar o horário eleitoral gratuito na TV e no rádio, não está mais colando. As pessoas estão percebendo que isso é uma maneira de produzir um fato consumado. Quando a curta campanha estiver na metade e se Alckmin não crescer, a resposta será a mesma: dirão que só na segunda metade da campanha ele vai crescer.

Muitos também se perguntam de que adiantou queimar João Dória (que tem, inegavelmente, mais facilidade para atrair o eleitor). Alguns perceberam a incoerência do argumento para desqualificar Dória, dos que diziam que ele não cumpriu até o fim o seu mandato de prefeito (curiosamente os mesmos que não criticaram Serra por ter feito igual).

Para resumir, o grande problema que temos agora é o seguinte: se Alckmin – o candidato do campo democrático com mais estrutura – não crescer, se Dória não puder mais substituí-lo, se Amoedo, Meirelles, Dias, Rabello, Rocha e Marina também não crescerem (ou não cumprirem os requisitos mínimos para ser apoiados pelos democratas, como o compromisso com as reformas), caminharemos em marcha batida para o cenário do horror, com a disputa política capturada pelo campo autocrático e os democratas sendo alijados da cena pública? Este o drama que estamos vivendo. É como estar na beira do precipício.

Álvaro Dias
Álvaro Dias também pode ser colocado no campo democrático, ainda que – provavelmente por oportunismo eleitoreiro – namore com o jacobinismo restauracionista dos instrumentalizadores políticos da operação Lava Jato (e queira representá-la). Mas a Lava Jato, como operação jurídico-policial do Estado de direito, não pode ter candidato. E ainda que alguns integrantes da força-tarefa de Curitiba sejam simpáticos à candidatura de Álvaro Dias, o resultado objetivo da campanha indireta que fazem, quando se comportam como atores políticos, leva necessariamente ao bolsonarismo.

Cabe aqui abrir um parêntesis sobre a instrumentalização política da Lava Jato. A insistência dos seus operadores em propagar que todo sistema político é corrupto e não tem mais conserto é uma mensagem perigosa para a democracia na medida em que será entendida pelos eleitores da seguinte maneira: temos de eleger uma pessoa honesta, capaz de fazer uma limpeza geral e recolocar ordem na casa. Os instrumentalizadores políticos da Lava Jato escondem, porém, que judiciário e ministério público fazem parte do establishment e apontam suas baterias para o parlamento (o poder, por excelência, da democracia) e para o executivo. Como se juízes e procuradores possuíssem um gene diferente, que os protegesse da corrupção que assola todos os demais poderes.

Álvaro Dias tem poucas chances eleitorais: forte na região Sul (especialmente no seu estado, o Paraná), é praticamente desconhecido nas outras regiões do país. E até agora não deu mostras de ter compreendido a gravidade do problema. Tanto é assim que continua refratário (ou pouco entusiasmado) com as tentativas de se buscar uma unidade do campo democrático no primeiro turno. Está de costas para o abismo, mas também na beira do abismo.

João Amoêdo
É imperativo agora unir os democratas para impedir a volta do PT ou a ascensão de projetos autoritários como o de Ciro ou de Bolsonaro. Isso inclui Amoedo e seu partido chamado Novo.

Mas a insistência do Amoêdo em dizer que só o Novo é coerente porque não aceita financiamento público de campanha denuncia uma vontade de se auto-afirmar, acumulando forças para o crescimento do seu futuro partido, de corte mais liberal (ainda que num sentido rebaixado, quase que exclusivamente econômico do termo, quando o que importa para a democracia é o liberalismo-político).

É claro que financiamento público de campanhas é incorreto (mas não ilegal). O financiamento deveria ser privado (incluindo contribuições de empresas, dentro de certos limites, o que era permitido e só recentemente foi tornado ilegal).

A postura de Amoêdo de afirmar intransigentemente seus princípios seria legítima se não decorresse de uma leitura equivocada da conjuntura, que não vê os perigos reais que ameaçam a democracia neste momento, não no futuro. Vê a árvore, mas não vê a floresta. Quando Amoêdo ataca todos os demais candidatos que estão no campo democrático (porque aceitam financiamento público de campanha), elimina a possibilidade de alianças (o que é próprio do jogo democrático). E revela um egoísmo de candidato, de projeto e de partido, que não entende que não precisamos de uma saída em 2022 ou 2026 e sim agora, em 2018.

O partido chamado Novo é importante, mas – sozinho – ainda não é uma alternativa concreta agora (aliás, sozinho, mesmo que vença as eleições, ninguém poderá governar). Pelo menos ainda não há nenhuma indicação concreta disso. Se houver, se Amoêdo tiver mais condições de impedir uma polarização, no primeiro turno, entre Ciro (ou algum outro apoiado pelo PT) x Bolsonaro, então vamos todos, os democratas, de Amoêdo. Do contrário, não podemos votar em Amoedo só porque ele quer fazer seu nome para disputar o mercado futuro da política, caindo no cenário do horror de ter de escolher, no segundo turno de 2018, Ciro (ou outro apoiado pelo PT) ou Bolsonaro. A democracia brasileira não aguenta esperar 4 ou 8 anos por Amoêdo (até que ele tenha condições de vencer sozinho).

Henrique Meirelles, Paulo Rabello e Flávio Rocha
Embora se situem no campo democrático esses candidatos ainda não conseguiram dizer claramente aos eleitores a que vieram. Meirelles é um nome indiscutível, para cuidar da área econômica de qualquer governo democrático. Paulo Rabello, nem tanto. E Flávio Rocha, ao abraçar uma pauta liberal em economia e conservadora nos costumes (para disputar com o bolsonarismo ou com a chamada “nova direita”), não dá mostras de que conseguirá empolgar as pessoas comuns que não são simpáticas à candidatura de Jair Bolsonaro. Os três devem ser aproveitados em qualquer coalizão eleitoral democrática, mas sozinhos têm poucas chances.

Marina Silva
Marina – de todos os citados que não estão no campo autocrático (e nisso há muito controvérsia) – é a mais ligada à mentalidade petista. Seu partido no Congresso (durante o processo do impeachment, em 2016) defendeu Dilma e o PT com mais afinco do que os próprios petistas (via seus líderes na Câmara, Molon e, no Senado, Randolfe – e este último continua na tal Rede). E Marina, com perdão da blague, permaneceu durante todo esse tempo como uma Submarina (pois jamais veio a público desautorizar os líderes parlamentares de seu partido chamado Rede).

Além disso, para que ficasse claro que Marina está indiscutivelmente no campo democrático, seria necessário que ela se comprometesse com as reformas (o que não fez até agora de modo enfático) e pare de falar que governará com gente de todos os partidos (mesmo porque isso não é verdade: todos sabem que ela tenderá a indicar militantes do PT e que não indicará ninguém do partido do Bolsonaro, por exemplo – e neste caso está certa).

O problema de fundo é que Marina – e, mais do que ela, o seu partido chamado Rede – é de esquerda. Isso é um problema porque por mais que alguns anseiem por uma “esquerda democrática”, a esquerda realmente existente no Brasil de hoje não está mais no campo democrático.

Claro que se a alternativa mais viável for Marina para barrar o cenário do horror (Ciro ou alguém do PT x Bolsonaro), impõe-se para os democratas o voto nela. Mesmo sabendo que sua mentalidade continua fronteiriça (entre o campo democrático e o campo autocrático de esquerda).

É fácil verifica isso. Em entrevista às Páginas Amarelas da Veja (edição de 27/06/2018), Marina afirmou o seguinte:

“Focar no Lula é reducionismo. Temos, além do ex-presidente, o Michel Temer, o Aécio Neves, o Romero Jucá, o Renan Calheiros… A única diferença é que um está preso e os outros não”.

A “única diferença”, camarada?

O que ela está nos dizendo é que Mussolini é a mesma coisa que Berlusconi, Hugo Chávez é a mesma coisa que Rafael Caldera, Salazar é a mesma coisa que José Sócrates ou que o Hezbollah é a mesma coisa que o PCC. Ou seja, segundo Marina, a corrupção com motivos estratégicos de poder de um Lula, de um Dirceu, de um Vaccari é igual à corrupção endêmica na política, de um Cunha, de um Alves, de um Geddel. Mas para mostrar uma certa injustiça (da justiça) ela cita os que não estão presos: Temer, Aécio, Jucá e Calheiros.

Acontece que a corrupção com motivos estratégicos de poder é um ataque direto ao coração da democracia, enquanto que a corrupção tradicional, endêmica nos meios políticos, provoca uma degeneração do sistema político, por certo, mas não altera necessariamente o DNA do regime. Depois de Berlusconi, a Itália continuou sendo uma democracia, depois de Mussolini, não. Depois de José Sócrates, Portugal continuou sendo uma democracia, depois de Salazar, não. Depois de Caldera, a Venezuela continuou sendo uma democracia, depois de Chávez (e seu sucessor Maduro), não.

Essa é a tese para livrar a cara do PT, inventada por Thomaz Bastos e Malheiros e usada por Lula: o PT só fez o que todo mundo faz. É falso. Tentar fazer a “revolução pela corrupção” (para usar uma expressão do saudoso poeta Ferreira Gullar, que percebeu o ardil) é muito diferente de roubar para enriquecer e se dar bem na vida. Ainda que ambas sejam condenáveis, os riscos são muitos diferentes para a democracia. E ainda que o PT tenha praticado as duas formas de corrupção ao depositar seus ovos dentro da carcaça podre do velho sistema político.

Conclusão

Dada a gravidade da situação não cabe aos democratas fazer muitas restrições aos candidatos do campo democrático. A questão agora não é a de escolher o melhor: o candidato que tenha o programa mais consistente, o mais capacitado gestor, o líder mais brilhante.

A orientação agora parece ter ficado clara e pode ser resumida na frase:

PT nunca mais. Ciro ou Bolsonaro, jamais.

Qualquer um do campo democrático que tiver chances reais de quebrar a polarização, no primeiro turno (pois no segundo, já era), entre dois candidatos do campo autocrático (Ciro ou alguém do PT x Bolsonaro) servirá. Ainda é cedo para fazer essa escolha, pois nenhum dos candidatos citados reúne tais condições. Mas já passou da hora de articular um polo democrático e reformista que seja capaz de unir os democratas para evitar o desastre anunciado.

O bolsonarismo continua crescendo, em parte subterraneamente (e ele, como corrente de opinião, é muito mais perigoso do que o oportunista eleitoreiro chamado Jair Messias Bolsonaro). Se o caos se instalar – na esteira das tentativas de destruição do atual governo e das candidaturas do campo democrático mais viáveis – é possível até que Bolsonaro vença no primeiro turno. Ciro ou alguém do PT ungido por Lula (provavelmente Haddad) também crescerá (ainda que com menos chances de levar no primeiro turno). O mais provável é que, não havendo uma alternativa democrática forte, consistente e com alta visibilidade, ainda no primeiro turno, a situação se polarize entre dois projetos populistas (ambos estatistas): o neopopulismo lulopetista de esquerda (ou o nacionalismo-retrógrado cirista, também de esquerda) versus o populismo-autoritário bolsonarista de direita. Este é o cenário do horror, que alijará os democratas da cena pública.

O grande problema é que os democratas ainda não perceberam que estamos na beira do precipício. E que, se não fizerem nada – agora, não depois que começar a propaganda eleitoral gratuita no rádio e TV – a democracia brasileira vai cair num abismo profundo, do qual não sairemos em menos de uma década (ou, talvez, de uma geração). (Dagobah-Inteligência Democrática – 06/07/2018)


Mauricio Huertas: Como nunca antes na história deste País…

Faltam exatos cinco meses para as eleições de 7 de outubro, com pelo menos 23 pré-candidatos à Presidência da República, inclusive um ex-presidente preso. Não por muito tempo, ao que parece: tanto essa quantidade exagerada de candidatos quanto o regime fechado para Luiz Inácio Lula da Silva, que terá seu destino julgado pela turma da bagunça, a 2ª turma do Supremo Tribunal Federal. De qualquer modo, já podemos parodiar Lula e dizer que vivemos uma situação “como nunca antes na história deste país”.

Um ex-presidente preso e 23 presidenciáveis. E a vida segue. Quem diria? Dentro de uma semana, o técnico Tite deve anunciar os 23 jogadores convocados para a Copa do Mundo da Rússia. Pela primeira vez na história do Brasil, os 11 titulares serão menos conhecidos da população que os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal. Uma situação absurda e impensável até uns anos atrás. Beira o ridículo, graças à bandidagem que tomou conta da política (e do futebol, diga-se).

Afinal, não é todo mundo que identificaria Alisson, Marquinhos, Casemiro, Firmino ou Douglas Costa andando do outro lado da rua. Mas você certamente já cansou de ver e ouvir falar nos últimos tempos sobre Edson Fachin, Celso de Mello, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli (a 2ª turma que definirá se Lula deve seguir preso), ou ainda Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes, Marco Aurélio, Luiz Fux, Rosa Webere Luís Roberto Barroso.

Não que o Brasil da camisa amarelinha vá se tornar o país da toga preta. Mas que a paixão pelo futebol está perdendo espaço no coração do brasileiro para o ódio à política parece indiscutível. Fala-se menos da Copa, com início marcado para 14 de junho, que da Operação Lava Jato. Nas ruas você vê mais referências a políticos e juízes do que a tradicional decoração verde-amarela ou a eterna reverência aos craques da seleção. Sinal dos tempos.

Enquanto não saem os 23 convocados do Tite, temos os seguintes 23 presidenciáveis, em ordem alfabética: Aldo Rebelo (Solidariedade), Álvaro Dias (Podemos), Cabo Daciolo(Avante) Ciro Gomes (PDT), Fernando Collor (PTC), Fernando Haddad (PT), Flávio Rocha (PRB), Geraldo Alckmin (PSDB), Guilherme Boulos (PSOL), Henrique Meirelles (MDB), Jair Bolsonaro (PSL), Jaques Wagner (PT), João Amoêdo (Novo), João Vicente Goulart (PPL), Joaquim Barbosa (PSB), José Maria Eymael (PSDC), Levy Fidelix(PRTB), Lula (PT), Manuela D’Ávila (PCdoB), Marina Silva (Rede), Michel Temer (MDB), Paulo Rabello de Castro (PSC), Rodrigo Maia (DEM) e Vera Lúcia (PSTU).

Destes 23, tirando os figurantes folclóricos (Eymael, Levy Fidelix, Collor), os candidatos ideológicos (Manuela, Vera Lúcia, Amoêdo) e as figurinhas repetidas, como Temer ou Meirelles (ou ninguém) pelo MDB, ou ainda Haddad ou Jaques Wagner para substituir o inelegível Lula pelo PT, sobra muito pouco de aproveitável nesse extrato eleitoral.

À esquerda, todos brigam pelo espólio de Lula. Porém, é improvável que qualquer nome do PT chegue ao eventual 2º turno, muito menos algum herdeiro mais à esquerda, como Guilherme Boulos (PSOL), único que desponta como “novidade”, apenas por ser oriundo dos movimentos sociais. O presidenciável Ciro Gomes (PDT) sonha com os votos lulistas (muito além do PT), mas quem tem alguma identidade e afinidade para dividir esse eleitorado são Marina Silva (Rede) e Joaquim Barbosa (PSB).

À direita, a preferência disparada é mesmo por Jair Bolsonaro (PSL), embora Flávio Rocha (PRB), com maior quantidade de neurônios funcionando, tente se apresentar como o mais credenciado para ocupar um vácuo que, imaginava-se (e há quem continue desejando), seria preenchido pela candidatura de João Doria, que por enquanto segue como candidato do PSDB ao Governo de São Paulo (mesmo batendo de frente com Marcio França, do PSB, e Paulo Skaf, do MDB)

É no entendimento deste centro político que está a fórmula possível para definir os rumos da eleição. A maioria ainda aposta na decolagem do nome de Alckmin (PSDB), embora a profusão de pré-candidatos do mesmo campo (DEM, MDB, PRB, PSC e Podemos) dificulte mais o que já não seria tarefa simples e se complica dia a dia (principalmente vencer a rejeição do eleitorado fora do eixo sul-sudeste aos tucanos e fazer crescer a intenção de votos a ponto de consolidar uma candidatura vitoriosa).

Claro que, a essa altura e diante de múltiplos cenários possíveis, é tudo tentativa de adivinhação. Mas quanto maior a fragmentação de votos deste chamado “campo democrático”, distanciado das opções mais extremadas e intolerantes, maior também a distância do 2º turno e maiores as chances de Bolsonaro estar lá. Contra quem? Não seria impossível ou improvável uma eleição JB x JB, seria? Jair Bolsonaro x Joaquim Barbosa? Será esse o destino do Brasil? Faltam 69 dias para a final da Copa e 153 dias para as eleições. Boa sorte para todos nós. E que só a contagem seja regressiva.

Mauricio Huertas, jornalista, é secretário de Comunicação do PPS/SP, diretor executivo da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), líder RAPS (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), editor do Blog do PPS e apresentador do #ProgramaDiferente


André Singer: Esquerda deve unir forças para plantar as sementes da transformação

Conversa ocorrida entre Ciro Gomes e Fernando Haddad deveria ser encarada como positiva

Enquanto o noticiário continua a girar em torno de acusações, processos e depoimentos, os setores interessados na mudança da sociedade têm obrigação de apresentar uma proposta séria e organizada para tirar o país do buraco.

Para tanto, é indispensável construir uma plataforma a ser submetida ao eleitorado em outubro. Não se trata somente de competir com chances de ganhar, mas de plantar as sementes da transformação futura.

A conversa ocorrida entre Ciro Gomes (PDT) e Fernando Haddad (PT), na última segunda (23), deveria ser encarada como positiva, caso avance.

É claro que outros personagens do mesmo campo, como Guilherme Boulos (PSOL) e Manuela D’Ávila (PC do B), precisariam ser incorporados ao diálogo, na hipótese de se pensar um programa comum, e não apenas em arranjos de ocasião.

Por maiores que sejam as diferenças entre os citados personagens, todos fazem parte do arco que se opõe ao atual estado de coisas. Os seus partidos e, aliás, também o PSB, formalizaram uma frente pela democracia na Câmara dez dias atrás.

Para visualizar a necessidade absoluta de juntar forças, basta pensar no desafio representado pelo teto do gasto público que o governo Temer conseguiu impingir ao país.

Sem revogá-lo, dificilmente vai se encontrar um meio de fazer o Brasil voltar a crescer e retomar o combate à pobreza. Mas para reunir a maioria necessária no Congresso será indispensável somar muitas correntes e isolar os que desejam preservar a desigualdade.

Um dos segredos do sucesso representado pelo PT na história brasileira residiu na capacidade de Lula reger uma pluralidade de posições no interior do partido. Foi a tolerância dele que permitiu a todos seguirem sob o mesmo guarda-chuva. O PSOL foi a única divisão de maior peso em quase quatro décadas e, mesmo assim, esteve junto na hora extrema da prisão em São Bernardo.

Com Lula preso, a tarefa de unificar a área popular se complica. José Dirceu, que se revelou, mais uma vez, bom analista, advertiu na entrevista a Mônica Bergamo que se Lula não for mantido como candidato até agosto, o PT se dividirá em “quatro ou cinco facções”.

Em outras palavras, a ameaça de fragmentação existe dentro do próprio petismo, quem dirá fora dele. Mas política consiste em reunir aqueles que, espontaneamente, jamais se sentariam à mesma mesa.

Embora acompanhe o processo à distância, o cidadão médio intui a dificuldade envolvida na retomada de um ciclo favorável às massas. Não obstante, o espaço eleitoral à esquerda existe, devido ao sofrimento que a orientação em curso impõe aos trabalhadores.

Será que as agremiações existentes estarão à altura do desafio de preenchê-lo?

* André Singer, cientista político e professor da USP, foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência no governo Lula.


Luiz Sérgio Henriques: Populismos e democracia bloqueada

Nos anos 70 do século passado Enrico Berlinguer, talvez o último grande dirigente do comunismo histórico, extraía para seu país, a conturbada Itália, uma lição advinda da tragédia de Salvador Allende na então distante América Latina. Impossível traçar, dizia Berlinguer, uma estratégia de superação das contradições mais agudas de uma sociedade – qualquer que fosse ela, mas especialmente as sociedades mais desenvolvidas – se a nação estivesse partida, digladiando-se ferozmente em metades inconciliáveis. Não bastaria à esquerda ter 50% mais um dos votos do eleitorado para levar adiante suas propostas: o apoio teria de ser mais amplo, as motivações, mais argumentadas e, particularmente, nenhuma dúvida poderia pairar sobre a obediência estrita das principais forças mudancistas às exigências da democracia política.

Não importa que a História se tenha mostrado bem mais imprevisível do que um político sofisticado como Berlinguer podia admitir com sua generosa estratégia de compromisso entre todos os democratas, muito além dos muros da cidadela da própria esquerda. O dado essencial a ser aqui considerado é que a partir de então, se dúvida havia, nenhuma esquerda podia mais pôr em questão o fato de que, para se credenciar a um papel dirigente, de nada lhe valeria colocar-se fora da dialética democrática em seu sentido mais estrito – a validação dos resultados eleitorais, a legitimação conferida aos adversários, a admissão da alternância no poder. Estratégias ou palavras de ordem inutilmente divisivas seriam pagas com o fracasso dos reformistas ou, pior ainda, com a perda da noção de um terreno comum a todos os cidadãos e definidor dos patamares mínimos de convivência.

O PCI de Berlinguer, a propósito, pisava em campo minado, que não podia ser transposto segundo a perspectiva da época. O sistema estava bloqueado nos termos da guerra fria. Havia o que se convencionou chamar de “sistema de poder” em torno dos democratas-cristãos e tal sistema se reproduziria aparentemente de modo indefinido, produzindo, entre outras coisas, o que os comunistas italianos não hesitavam em chamar de autêntica “questão moral” – e seus críticos viam como moralismo sem alcance estratégico. A ocupação do Estado pelos mesmos partidos, ainda que longe da patologia dos partidos-Estado do Leste Europeu, era causa de degradação dos costumes políticos e administrativos. E não podia prenunciar boa coisa. O bloqueio seria rompido menos pela política partidária do que pela irrupção clamorosa de uma operação judicial inédita até então, a qual, surpreendentemente, reverberaria no Brasil de nossos dias.

A ideia de que nos anos dourados do petismo se estava a gerar algo como um extraordinariamente resistente “sistema de poder” é uma boa pista a explorar. Episódios como o mensalão e o petrolão, entre outros, pareceram obedecer a uma lógica de ocupação numa escala desconhecida em nosso sistema político-partidário, que, diga-se de passagem, nunca se notabilizara pela transparência nos custos de campanha e no financiamento de suas atividades em geral. Havia aqui, como os autos indicam, “tenebrosas transações” entre empresas públicas, dirigentes partidários e grandes companhias privadas, capazes de gerar recursos para campanhas eleitorais com custos fora de qualquer controle – e os inevitáveis desvios colaterais para bolsos privados.

O sistema, assim, passou a funcionar simultaneamente sem transparência, limite ou controle da parte dos cidadãos. Alguém poderá argumentar, e terá razão, que se trata de práticas herdadas do passado, em geral tacitamente admitidas, e que o maior partido oposicionista, entrincheirado em dois dos principais Estados da Federação, teria sido responsável por criar e manter azeitados mecanismos de poder. No entanto, sem negar essa pesada responsabilidade, pode-se retrucar que o esquema petista exacerbou as irregularidades em termos tanto quantitativos quanto qualitativos. Não estávamos aqui diante de empreendimentos locais ou regionais, mas de um fenômeno que, pela primeira vez, chegava a ultrapassar as fronteiras do País.

Este último ponto merece atenção. Recursos financeiros e estratégias políticas se misturaram de modo explosivo por toda a América Latina, num tempo em que se passou a afirmar a hipótese problemática – para ser cauteloso – de certo “socialismo do século 21”. Bem pesadas as coisas, tratava-se menos de socialismo que de um ataque populista de esquerda à democracia representativa, de conteúdo diverso, mas formalmente não muito diferente dos ataques populistas de direita que assolam a Europa e a América do Norte e, infelizmente, também já não nos poupam.

Longe da melhor tradição comunista, evocada na figura de Berlinguer, o recurso expressivo típico desses populismos, na variedade de suas manifestações, é a retórica e a prática divisiva e confrontacional. Pretenderam cancelar o passado e refundar as nações, mas os resultados, uma vez no poder, foram medíocres ou catastróficos, como no caso venezuelano – veia aberta no continente. A técnica de construção de blocos de poder supostamente inamovíveis, exportada para os parceiros latino-americanos do petismo, tornou-se, contra a intenção de seus promotores, um verdadeiro teste de solidez das instituições democráticas, desafiadas a enfrentar subornos, escândalos e até crises de impeachment numa dezena de países.

Uma esquerda forte e plural é condição necessária, ainda que não suficiente, para a efetivação de uma agenda social digna do nome, bem como de um regime de liberdades que garanta essa agenda e seja por ela nutrido. Uma coisa nunca vai sem a outra: não há progresso social sem voto e democracia “formal”. Entre nós e esse caminho virtuoso ainda se interpõem os populismos de esquerda e de direita, que deveriam ser, mas não são, fato marginal ou lembrança do passado.
 


Cristovam Buarque: A locomotiva e o trilho

Esquerda perde sintonia com o espírito do tempo

A autodenominada esquerda continuou amarrada a ideias superadas pela realidade e ficou defensora de interesses arraigados em setores privilegiados, tanto de capitalistas quanto de trabalhadores. As surpreendentes e imprevisíveis transformações na realidade construíram um mundo diferente daquele que servia de base às formulações da esquerda tradicional. A globalização desestruturou a lógica do nacionalismo; a automatização e a inteligência artificial retiraram o protagonismo revolucionário da classe de trabalhadores; o esgotamento de recursos naturais eliminou a utopia do consumismo para todos.

A crise consequente, de entendimentos e de propostas, deixou de ser apenas do capitalismo e passou a ser da civilização industrial por inteiro. Essa nova realidade exige uma nova percepção e postura no papel do Estado na economia. Ao perder a sintonia com o avanço das ideias e compromissos com as reformas necessárias, a esquerda ficou reacionária.

A partir de agora, os que defendem o progresso social e econômico deverão entender que ao Estado cabe definir e construir o trilho para o futuro, mas a locomotiva deve estar nas mãos da sociedade: seus trabalhadores, empresários, organizações sociais. Ao Estado cabe estabelecer regras e fazer investimentos que permitam a estabilidade política e jurídica; a construção de um sistema educacional que ofereça o máximo aproveitamento de todos os cérebros da população e garanta a mesma chance para cada indivíduo desenvolver seu talento pessoal e, com isso, construir uma sociedade eficiente, rica e justa, com a renda bem distribuída.

Além disso, administrar serviços públicos e de assistência social com qualidade e eficiência; garantir o respeito ao equilíbrio, tanto ecológico quanto monetário, para dar sustentabilidade ao progresso e ao bem-estar social; adotar firme compromisso com as regras necessárias para que a economia funcione eficientemente, de maneira a gerar os recursos necessários à construção de uma sociedade justa; entender que a justiça social não pode ser construída sobre uma economia ineficiente. A esquerda precisa compreender que eficiência no uso dos recursos não é um conceito burguês, mas uma condição necessária ao progresso.

A sociedade brasileira tem hoje a percepção de que os partidos que se dizem de esquerda não cumpriram o compromisso moral de governar com ética; mas ainda não percebeu a corrupção deles nas ideias, ao abandonarem o compromisso com a verdade e com a formulação de propósitos justos e viáveis para o futuro. A autodenominada esquerda continua com a visão nostálgica de quando a dinâmica econômica e o bem-estar social decorriam da intervenção governamental. Com isso, perde sintonia com o espírito do tempo: não defende a ética na política, não luta pelas reformas necessárias, deixa de ser vetor do progresso, fica de direita.

Daqui para frente, o Estado faz o trilho da história, e a sociedade move a locomotiva por onde o povo e a nação vão ao futuro desejado.


Sem Lula, esquerda ou se une ou estará fora do 2º turno, diz Lessa

'Neutralização da esquerda' começa com impeachment e acaba com prisão, diz professor

Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo

A prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fecha o ciclo de neutralização da esquerda no Brasil.

"Esse processo começou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e termina com o impeachment preventivo de Lula", diz Renato Lessa, professor de filosofia política da PUC do Rio e investigador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Para Lessa, se os pré-candidatos da esquerda não compuserem uma frente, há o sério risco de a eleição de 2018 ser disputada entre um candidato de centro-direita e outro de extrema direita.

"Sei que vai predominar a discussão sobre a cabeça de chapa, mas essa visão de curto prazo vai ter que ceder lugar a uma conversa estratégica, ou teremos a perspectiva real de 35% da opinião política não ter expressão nas eleições de 2018, o que é ruim para a democracia".

Folha - Qual é o significado da prisão do ex-presidente Lula?
Renato Lessa - Trata-se de algo gravíssimo, de consequências imprevisíveis. E é um processo que se completa. Cada vez mais perde materialidade o fato inicial que teria levado ao impeachment de Dilma Rousseff, as pedaladas, que eram práticas triviais, embora juridicamente condenáveis, nos governos anteriores.

No contexto de perda de maioria parlamentar de Dilma, isso levou ao impeachment. No entanto, achava-se que esse processo se esgotaria com o impeachment e a virada de governo, a substituição pelo poder do outro grupo. Mas essa manobra para trocar o grupo no poder se completa é com a prisão de Lula.

Pensando historicamente: o governo de Getúlio em 1945 termina não porque Getúlio era um ditador. Ele tinha deixado de ser um ditador, os militares que o apoiaram enquanto ditador o depõem quando ele começa a democratizar o regime. O governo João Goulart acaba do jeito que acabou. E não o governo Lula, mas Lula como personagem político que poderia voltar também sai de cena. É algo para se pensar: como terminam os governos de extração popular no Brasil?
O que se produziu nos últimos dois ou três anos foi um processo de neutralização de um segmento importante da política brasileira, a esquerda.

Em que sentido a esquerda está neutralizada hoje?
Houve um deslocamento do governo de uma maneira heterodoxa e depois a neutralização política do provável sucessor, Lula. São dois impeachments. Esse processo começou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e termina com o impeachment preventivo de Lula. Quebrou o vínculo da esquerda com sua base eleitoral, popular, tirando o principal líder de cena, Lula.

Um aspecto importante desse processo é o eixo Curitiba-Porto Alegre, com um grau impressionante de coordenação. Ao mesmo tempo, do lado do Supremo Tribunal Federal, uma negação de habeas corpus por 6 a 5. É inusitada a mudança da pauta não tratar do caso genérico em primeiro lugar para depois tratar dos casos particulares. Se fosse outra pauta, o resultado era outro, Lula não seria preso, o jogo continuaria.

É um processo obscuro, que produz consequências graves. O país está sendo governado pelo sindicato dos deputados. Os representantes se representam no governo, não representam ninguém por trás deles.

Essa ideia de que justiça se faz com a punição, esses comentários panglossianos de que com a prisão de Lula está garantido o Estado de Direito. É a hegemonia do discurso da limpeza, de prender todo mundo. O brasileiro quer ter um preso para chamar de seu. Ficamos com essa concepção de justiça. Pode continuar com fome, desigualdade, pessoas seis horas por dia no ônibus para trabalhar. Tudo pode. Mas tem que haver lisura.

Quão eficiente foi a manobra de neutralização da esquerda?
Idealmente, configurada a impossibilidade prática da candidatura de Lula e, para mim, já está configurada, é preciso trabalhar com o modelo que os uruguaios têm há bastante tempo, uma Frente Ampla de recomposição da democracia.

Mas o PT aceitaria uma Frente Ampla sem ocupar a cabeça da chapa?
Por isso comecei o raciocínio dizendo idealmente. Seria interessante que o Ciro Gomes conversasse com o Fernando Haddad, a Manuela D'Ávila, e alguém um pouco mais para o centro. A criação de uma frente ampla voltada para a recuperação do ambiente democrático e sinalizando pautas de igualdade social. E Lula deveria deixar uma mensagem de convergência.

Os candidatos desse campo terão de convergir para que algum deles chegue com chance de vitória no segundo turno. Há o risco real de haver um segundo turno entre a centro direita e o inominável, a extrema direita. Na prática, sei que vai predominar a discussão sobre quem vai estar na cabeça de chapa, mas, em algum momento, essa visão de curto prazo vai ter que ceder lugar para uma conversa estratégica, ou então teremos a perspectiva real de 35% da opinião política não ter expressão nas eleições de 2018, o que é ruim para a democracia.

A prisão do Lula sinaliza que todos os políticos podem ser presos, ou há duas velocidades e duas medidas?
Mesmo que continuem a prender políticos, vão ser dois pesos e duas medidas, porque não vão conseguir prender, do outro lado, alguém com a estatura do Lula. Não existe um equivalente que desmonte o campo da centro direita brasileira, que represente um desafio brutal como a neutralização do Lula significa para o campo da esquerda.

Mesmo que a Lava Jato continue, ela vai pegar personagens periféricos, ou governadores como Sergio Cabral, que destruiu o próprio estado. O Aécio Neves não corresponde ao Lula em termos de estatura na organização e ele foi protegido. O próprio presidente Temer, até certo ponto, não é processado porque tem o sindicato dos deputados que garante a sua proteção. E mesmo que vier a perder o foro, sem mandato, o seu processo vai começar na primeira instância e sendo o presidente um especialista jurídico, vai transitar em julgado daqui 50 anos, mesmo se mantiverem a decisão de segunda instância.

Como fica a esquerda com Lula fora do jogo?
A esquerda tem um desafio enorme. Os nomes estão postos "“ Ciro Gomes, talvez Fernando Haddad e, com menor expressão eleitoral, mas com expressão política, a Manuela Dávila. Guilherme Boulos, pelo PSOL, vai numa linha completamente autonomista.

O PSOL tem a perspectiva de colher os despojos, não de cooperar numa frente comum.

Faria sentido esses três nomes conversarem e incluírem elementos de centro mais progressistas. Não sei se todos os tucanos estão satisfeitos com o que está acontecendo, talvez também o campo da Rede. É necessária uma conversa para a recomposição de um campo de centro-esquerda reformista moderno, capaz de dar segurança para a economia, mas, ao mesmo tempo, repor a perspectiva social.
Uma das questões é a dificuldade de encontrar o candidato de centro. Toda vez que se cita o candidato que seria de centro, em qualquer país do mundo, ele seria considerado de direita. Geraldo Alckmin (PSDB) não é de centro, tem valores conservadores. Não é um xingamento, e só uma topografia. Rodrigo Maia (DEM) também.

Qual é o impacto da comoção em torno da prisão do Lula? Qual é a força e durabilidade desse movimento?
Ela vai permanecer durante algum tempo. Mas vai depender muito de como a prisão vai ser feita, quanto tempo Lula vai ficar preso e qual é a capacidade que ele vai ter de falar da prisão, sua relação com o mundo aqui fora. A prisão produz efeitos, mas eles vão aos poucos se incorporando na rotina das pessoas, a menos que ele tenha um operador político aí ativando isso de alguma maneira.

O país hoje tem uma extrema direita aberta, com visibilidade, que representa o resíduo de boçalidade presente no Brasil, mas entrou no sistema político e tem um candidato competitivo. Não acredito que esse candidato vá perder votos porque o Lula vai sair. Esse candidato expressa demônios que estavam no fundo da garrafa e foram destampados a partir do processo de impeachment. Algo que mesmo os líderes do impeachment não imaginavam que pudesse acontecer. Os caciques do PMDB e PSDB não imaginavam que essa subcultura protofascista se disseminasse tanto.

Enquanto isso, não há discussão de uma agenda que precisaria ser discutida na eleição. Ninguém pode negar que a questão da Previdência precisa ser discutida, embora eu discorde da forma como o governo Temer fez isso. Uma boa hora para discutir é uma campanha eleitoral, com conteúdo, não só com marketing político.

Essa discussão não foi levada ao cidadão, tentou se passar essa agenda através de uma mudança heterodoxa no ciclo político.

Apesar de dizerem que Temer mantinha ótimo trânsito com o Parlamento, a mãe de todas as reformas, da Previdência, não vingou, a reforma trabalhista é uma medida provisória que vai vencer daqui a pouco. A única reforma que passou foi o teto de gastos, que fica prejudicado se a da previdência não passar.


Cláudio de Oliveira: A esquerda esquecida de San Tiago Dantas

O presidente da República amplia o investimento público, expande a economia e melhora a renda da população. Desfruta então de alta popularidade. Porém, as contas públicas entram em desequilíbrio, a inflação se acelera e a atividade econômica declina. O presidente empurra os problemas para o seu sucessor, cujas medidas aumentam as dificuldades e levam o país a crises política e econômica. Sem apoio, o sucessor se vê fora do poder. O vice-presidente assume, tenta um ajuste e apresenta um programa de recuperação econômica. Procura um amplo entendimento em torno das medidas, mas elas enfrentam oposição no Congresso e na sociedade.

Essa sequência de acontecimentos nos parece familiar e as personagens poderiam ser o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a sua sucessora Dilma Rousseff e o vice-presidente Michel Temer. As autoridades econômicas envolvidas na busca de promover o ajuste e a retomada poderiam ser os ministros Joaquim Levy, Nelson Barbosa e Henrique Meirelles. Os leitores que viveram o final da década de 1980 poderiam lembrar que essa sequência de fatos se encadeia também com o presidente José Sarney, o seu sucessor Fernando Collor de Melo e o vice-presidente Itamar Franco. Os ministros que tentaram recolocar a economia nos trilhos poderiam ser uma sequência de nomes como Luiz Carlos Bresser-Pereira, Maílson da Nóbrega e Zélia Cardoso de Melo, até Fernando Henrique Cardoso, o titular da Fazenda que lançou o Plano Real em 1994.

Mas o livro Em busca da esquerda esquecida: San Tiago Dantas e a Frente Progressista, de autoria de Gabriel da Fonseca Onofre, recorda que essa sequência aconteceu bem antes e tem outras personagens: o presidente da República em questão era Juscelino Kubitschek, o sucessor, Jânio Quadros, o vice-presidente, João Goulart e os ministros eram Celso Furtado, do Planejamento, e San Tiago Dantas, da Fazenda. A dupla apresentou em dezembro de 1962, o Plano Trienal, com medidas que, num primeiro momento, buscavam ajustar as contas públicas, cujo déficit havia sido então de 36%. E outras para, no momento seguinte, recuperar a produção nacional, que havia caído de 7,7% em 1961 para 3,5% em 1962, e debelar a inflação de 50,1% do final do ano. Números preocupantes, mas ainda longe da inflação de 4.853% de 12 meses, em março de 1990, quando José Sarney passou a faixa para seu sucessor, Fernando Collor de Mello.

Segundo o livro, o Plano Trienal tinha o “objetivo de estabelecer regras e instrumentos rígidos para o controle do déficit público e o combate à inflação sem comprometer o desenvolvimento econômico”. E “as seguintes políticas eram a base do plano: restrição salarial, limites de crédito e preços e corte nas despesas governamentais. Afetava-se, portanto, interesses de capitalistas e trabalhadores”. Os sindicatos e partidos como PTB, PSB e PCB então se mobilizaram contra o plano, receosos de aceitar restrições salariais em troca de uma incerta expansão da renda no futuro.

Sem apoio tanto de sindicalistas quanto de líderes empresariais, o Plano Trienal é abandonado. Um anos depois, diante do agravamento da crise, o presidente João Goulart pede a San Tiago Dantas a articulação de uma base de apoio parlamentar em torno de um programa de reformas moderadas. Mesmo então fora do governo, San Tiago Dantas propõe a Frente Progressista, uma aliança reunindo o PTB do presidente João Goulart, mais os centristas do PSD de Juscelino Kubistchek, Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, e do PDC de Franco Montoro, as esquerdas representadas pelo PSB de João Mangabeira e o PCB de Luís Carlos Prestes, bem como setores ligados à conservadora UDN. Porém, o acordo foi bombardeado pela Frente de Mobilização Popular, criada em 1962 e liderada pelo deputado e ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola.

Composta pelo Comando Geral dos Trabalhadores, o Pacto de Unidade e Ação (organização intersindical formada por representantes de ferroviários, marítimos e aeroviários e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria), a União Nacional dos Estudantes, a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas e diversos parlamentares da Frente Nacionalista, a FMP pressionou João Goulart a abandonar a articulação da Frente Progressista.

Com apoio das Ligas Camponesas, de Francisco Julião, deputado do PSB, a FMP pressionou para que o presidente adotasse um programa de reformas radicais, parte das quais reveladas no comício da Central do Brasil, realizado no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964. Foram então anunciadas a nacionalização de todas as refinarias de petróleo, a desapropriação de terras improdutivas à beira de estradas e ferrovias federais e a taxação da remessa de lucros de empresas estrangeiras. Sem apoio para a sua proposta de aliança entre o centro, a centro-esquerda e a esquerda, San Tiago Dantas retira-se da cena pública e dedica-se ao tratamento de um câncer de pulmão. Morreria meses depois. Como sabemos, João Goulart foi deposto pelo movimento civil-militar deflagrado na virada de 31 de março para 1º de abril de 1964.

O professor Gabriel da Fonseca Onofre narra em detalhes toda a trama de acontecimentos que levou ao abandono do Plano Trienal, ao fracasso da Frente Progressista e que desaguou no golpe de 1964. O livro nos conduz a uma reflexão sobre aqueles fatos históricos. Pelas propostas de San Tiago Dantas, talvez o regime autoritário tivesse sido evitado. E quem sabe as crises do impeachment de Fernando Collor de Melo, em 1992, e a do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, não existiriam. Porém, a história se repetiu não como farsa, mas como duas tragédias que nos levaram a fortes períodos de recessão. E o recente, teve uma das maiores retrações: queda de 8,2% do PIB e pico de 14,2 milhões de desempregados. Vale a pena conferir o livro. Na esperança de que nos ajude a evitar nova sequência de acontecimentos semelhantes.

Em busca da esquerda esquecida: San Tiago Dantas e a Frente Progressista
Gabriel da Fonseca Onofre
Editora Prismas, 2015
236 páginas

*Cláudio de Oliveira é cartunista, jornalista e autor do livro eletrônico Lenin, Martov, a Revolução Russa e o Brasil.

 


Folha de S. Paulo: Esquerda deve tirar foco da pauta identitária para ser eleita, diz Mark Lilla

Em entrevista à Folha, autor do artigo político mais lido do New York Times em 2016 defende que a esquerda precisa de menos manifestantes e mais vitórias eleitorais. Ele critica a política identitária abraçada pelos democratas e a falha do partido em conceber visão de país na qual diferentes grupos se reconheçam

Por Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo

Mark Lilla se tornou o mais odiado dos pensadores de centro-esquerda ao criticar, em artigo no New York Times, em 2016, logo após a eleição de Donald Trump, a política identitária abraçada pelo Partido Democrata.

Para o cientista político e professor da Universidade Columbia, o discurso que enfatiza identidades e isola os eleitores de grupos minoritários é responsável pelas seguidas derrotas dos democratas nos Estados Unidos.

Ao segmentar o eleitorado e customizar a mensagem para hispânicos, negros, mulheres e cidadãos LGBT, os liberais americanos —no sentido que a palavra tem nos EUA, de pessoas de centro-esquerda que defendem atuação do Estado para reduzir desigualdade— teriam perdido a capacidade de formular uma visão de país que atraísse toda a população.

O texto "O fim do liberalismo identitário" foi o artigo político mais lido do jornal naquele ano, e acabou se transformando em um livro, "The Once and Future Liberal: After Identity Politics" (O liberal de então e o do futuro: depois da política identitária), lançado nos EUA em agosto do ano passado pela HarperCollins. Novamente, seu argumento foi recebido com críticas viscerais.

Lilla, que virá ao Brasil para participar de uma das conferências do ciclo Fronteiras do Pensamento, em novembro, diz que se transformou em um elemento "tóxico" para a esquerda, mas dobra a aposta. "Não se trata de parar de lutar pelos direitos das minorias, mas sim de começar a ganhar essas lutas", disse, em entrevista à Folha.

Para ele, uma outra prova de que as políticas identitárias são equivocadas é que líderes autoritários populistas de direita, como Vladimir Putin, o húngaro Viktor Orbán e até o grupo racista americano Ku Klux Klan fazem da identidade sua razão de ser.

Folha - O senhor afirma que os liberais deveriam abandonar o discurso focado nas minorias para voltar a ganhar eleições. Mas ao fazer isso, os liberais não se arriscam a abandonar a luta pelos direitos das minorias, das pessoas que ainda não têm direitos assegurados?

Mark Lilla - As pessoas interpretaram meu livro da forma errada. Eu não defendo que se abandone a luta pelos direitos das minorias. O sentido de se lutar pelos direitos das minorias é conseguir governar de forma que seja realmente possível proteger esses direitos. Para isso, é preciso ganhar as eleições. Você não vai conseguir proteger ninguém se não vencer, você estará apenas envolvido em um teatro simbólico.

No governo americano, os estados têm muito poder. Por exemplo: no país, existe um direito constitucional ao aborto. Mas, em muitas partes do país, principalmente no Sul e no Sudoeste, uma mulher não consegue fazer um aborto porque os estados impõem muitos obstáculos para os médicos que fazem o procedimento, exigem que as mulheres passem por um período de espera ou se submetam a exames e testes humilhantes.

Mas as legislaturas estaduais podem fazer isso, mesmo o aborto sendo um direito constitucional?

Sim, porque a Suprema Corte não diz exatamente o que é necessário fazer para garantir que uma mulher tenha direito ao aborto. Então, para proteger os direitos de uma jovem negra no Texas, você precisa ganhar um cargo eletivo naquele estado.

O único jeito de vencer eleições é persuadir texanos, que vivem em um estado religioso, de maioria branca, e para isso é preciso achar uma mensagem que ressoe com eles.

Ou seja, não estou dizendo que nós devemos deixar de lutar pelos direitos das pessoas ou nos voltar para outros grupos. Meu ponto é que os democratas perderam a capacidade de conceber e comunicar uma visão de país na qual pessoas de vários grupos diferentes se reconheçam, e sintam que o programa político é para elas também.

Se você falar em princípios gerais democráticos, como solidariedade e proteção de direitos, isso atinge igualmente o trabalhador branco e a jovem negra que acabei de mencionar.

Mas o problema da política identitária é que ela mudou o foco. Priorizaram a política simbólica de querer reconhecimento, em vez de ganhar eleições. E essa política enxerga o país apenas como uma série de tribos... Então como eles vão conseguir chegar a uma visão geral se eles não acreditam na nação como um todo?

O senhor acredita que existe o risco de as minorias, que estão acostumadas a serem o foco da mensagem, sentirem-se excluídas se a esquerda passar a ter um discurso mais abrangente?

Eu acho que não. Não estou dizendo que não devemos falar em direitos das minorias, estou dizendo que não devemos falar nesses direitos em termos de identidade.

Tudo o que preciso fazer para ajudar a jovem negra é convencer o eleitor branco de que os princípios de solidariedade e proteção igualitária se aplicam aos dois. O eleitor branco não precisa reconhecer a concepção da jovem negra sobre ela mesma, sobre sua experiência como negra, sobre a história dos negros. Eu só preciso que os dois concordem em relação a um programa político, para que eles consigam nos eleger.

O senhor é a favor de políticas que tentam mitigar as desvantagens e injustiças sofridas pelas minorias, como ações afirmativas e cotas?

Sim, acho que são um programa de reparações que funciona. Mas eu gostaria que conseguíssemos justificar esses programas para os eleitores brancos.

Hoje em dia, ao darmos a vaga a um estudante negro que não tem nota suficiente para ser admitido, ficará de fora um estudante branco. Mas não vai ser um branco da burguesia, vai ser um branco da classe trabalhadora. E a realidade é que ambos, o negro e o branco de classe baixa, precisam de ajuda para entrar na universidade.

Gostaria que pensássemos em formas de abordar essa questão. Porque hoje, isso ajuda a direita, ao voltar segmentos de baixa renda uns contra os outros.

O senhor acredita que o fenômeno Donald Trump seja, em certa medida, uma reação à exacerbação da política identitária no país?

Há duas coisas acontecendo neste país. Uma é política eleitoral, a outra é uma espécie de revolução esperançosa na sociedade americana, ligada a minorias, a mulheres, à sexualidade.

Esse movimento é liderado pelas elites do país —nas universidades, em Hollywood, no mundo corporativo. Então Trump atrai as pessoas que sentem que a cultura delas está sendo modificada por pessoas de outra classe social, e elas não têm nenhum poder sobre isso.

Essas pessoas acham que não se trata de uma revolução democrática. E isso abre caminho para que os democratas sejam retratados como esnobes culturais, que desprezam essas pessoas e não estão nem aí para os interesses delas. O maior erro é que a política identitária impediu ativistas de pensar em termos de como se ganha uma eleição, impediu que desenvolvessem uma visão unificadora de país, que também incluiria as pessoas com as quais eles se importam.

Hillary Clinton não conseguiu articular esses temas e ficava constantemente mencionando esses grupos identitários. Ela não conseguiu unir o eleitorado.

É possível comparar a popularidade de Trump e a ascensão de líderes autoritários populistas, como Vladimir Putin, na Rússia, e Viktor Orbán, na Hungria, como uma reação à exacerbação da política identitária e do politicamente correto?

Pelo contrário. Na realidade, esses líderes também usam a política identitária, por meio da identidade nacionalista. Historicamente, a política identitária era um reduto da direita, seja na Europa na primeira metade do século 20 ou agora, com esses líderes. E Trump também explora isso.

Nesses lugares, não existe a política identitária de esquerda de que estamos falando. Esse é um dos motivos pelos quais estou muito interessado em minha ida ao Brasil, um país multiétnico e multicultural. Quero ver que tipo de tensões políticas isso produz.

No artigo, o senhor afirma que a Ku Klux Klan foi o primeiro grupo identitário. Mas será que a comparação é válida? A KKK estava tentando eliminar uma minoria, os negros, enquanto grupos identitários de hoje querem apenas conquistar mais direitos, não eliminar o dos outros...

Eu obviamente não estava comparando moralmente a KKK com os grupos atuais. Estava simplesmente apontando que a política identitária branca tem uma longa história nos EUA. E é por isso que os liberais precisam se afastar de políticas identitárias, já que elas representam um risco de reação negativa séria e perigosa. Como estamos vendo hoje.

​Entendo que o senhor enfatize que não está falando em abandono da luta pelos direitos das minorias...

As aspas corretas são: eu quero vencer essa luta. Não se trata de parar de lutar, mas precisamos começar a ganhar essas lutas.

Neste momento, os Estados Unidos têm um presidente famoso por suas posições ou opiniões misóginas e até racistas. O senhor acha que é um bom momento para abandonar o discurso de defesa dos direitos das minorias?

É exatamente por isso que agora é o momento ideal, porque nós precisamos ganhar. Precisamos vencer, mais do que nunca, porque temos um presidente que se opõe a esses direitos. É o momento exato para começar a vencer eleições, em vez de ficar apenas levantando nossas espadas no ar e nos expressando. É hora de realmente destronar o Partido Republicano.

O senhor esperava reações tão viscerais ao seu artigo publicado no New York Times?

Não, na verdade, não esperava. Eu escrevi aquilo em duas tardes, estava só desabafando, porque estava frustrado. Não esperava transformar aquilo em livro.

Mas a intensidade da reação na esquerda —uma crítica histérica que não abordava o meu argumento— apenas confirmou minha visão de que a política dos democratas foi simplesmente substituída por uma pseudopolítica de reconhecimento cultural.

O senhor enxerga um tipo de censura que o impede de questionar se a abordagem da esquerda está sendo eficiente? Katherine Franke, que também é professora na Universidade Columbia, o acusou de tornar a defesa da "supremacia branca" respeitável de novo...

Se eu estivesse diante de um juiz, diria: meritíssimo, "I rest my case" [expressão usada em tribunais, quando se acredita que algo que foi dito prova que a pessoa estava certa]. Essas pessoas apenas corroboram minha tese.

Em relação a Katherine Franke: de todos os professores de Columbia, eu escrevi o livro mais polêmico do ano, e ninguém, nem um único professor da universidade, convidou-me para debater, ou falar para a classe deles, fazer uma palestra. Nada, silêncio completo.

Na sua opinião, eles estão censurando o debate ou simplesmente não estão interessados?

Eles não querem debater, porque não querem legitimar uma discussão sobre isso.

Independentemente da enxurrada de críticas, o texto foi o artigo político mais lido do ano, tocou em algum ponto nevrálgico.

Houve uma reação histérica de gente que passa o tempo todo no Twitter e acha que apertar o botão "enviar" é um ato político. Mas fiquei muito feliz de também receber retorno de liberais que são muito comprometidos com reformas, mas estão cansados de perder eleições. Eles querem que os democratas ganhem, mas simplesmente não podem criticar a orientação do partido.

Uma líder de veteranos das guerras do Iraque e do Afeganistão me escreveu dizendo que tinha orgulho do país, orgulho de ser lésbica, e que estava esperando que alguém escrevesse um artigo como o meu.

Não apenas essas pessoas não podiam falar sobre esse direcionamento do partido, elas estavam sofrendo bullying. E não conseguiam articular sua crítica, pôr em contexto histórico, que foi o que tentei fazer no livro.

O senhor mencionou que coleciona os tuítes mais engraçados ou cruéis sobre seu trabalho...

Sim, guardei alguns, os que eram engraçados —intencionalmente ou não. Mandei como cartão de Natal aos amigos, em vez da foto da minha família [há uma tradição nos EUA de mandar uma foto de família com mensagem natalina].

Qual foi o papel das redes sociais no acirramento da polarização política e da controvérsia em relação ao seu livro?

Eu nunca tinha usado o Twitter. Foi a minha introdução ao pântano. E ficou claro algo que todos já sabem, que as pessoas tuítam um boato sobre um boato de um boato do que diz um livro. Passo muito tempo nas entrevistas corrigindo as pessoas porque elas não leram o livro.

Como você responde à crítica relacionada ao seu lugar de fala, de que, como homem, branco e heterossexual, o senhor não estaria autorizado ou qualificado para falar sobre direitos das minorias?

Uma argumentação é uma argumentação, não importa quem faça essa argumentação. Quem diz isso está tentando evitar uma discussão.

O senhor critica o movimento Black Lives Matter, dizendo que é o principal exemplo de como não lidar com a solidariedade, por causa das táticas agressivas de ativismo. Em que sentido o movimento é um desserviço à causa?

A rede Fox News é a única maneira de se comunicar com o eleitor republicano, e ela funciona como um filtro reverso: só deixa passar as coisas negativas sobre os democratas e deixa todo o resto de fora.

Então, se você faz maluquices como os ativistas do Black Lives Matter, que interromperam e acabaram com comícios de Hillary e Bernie Sanders, eles adoram.

Aquilo foi uma insanidade. E ficou passando sem parar na Fox News. Não à toa, Steve Bannon [ex-estrategista-chefe de Trump] disse torcer para que a esquerda continuasse falando em políticas identitárias, porque isso significa que os conservadores vão ganhar, e ele vai poder implementar sua agenda de nacionalismo econômico.

Todas as vezes que ativistas fazem algo desse tipo, eles estão servindo café da manhã na cama para Bannon.

Os liberais continuam surdos às suas críticas ou há alguns que entendem o que o senhor quer dizer?

Alguns entendem, outros não. Um senador me pediu que conversasse com ele sobre o tema, e alguns arrecadadores de campanha democratas me disseram que estão cansados de perder e querem conversar. Eu tenho várias ideias para a próxima eleição, não sei se serão artigos acadêmicos ou algum outro tipo de contribuição. Mas quero fazer alguma coisa.

O senhor acredita que, então, houve algum tipo de eco em relação a sua mensagem? Ela não foi em vão?

Com certeza. O argumento agora está presente, a questão é discutida com frequência. Eu também vejo pessoas que se denominam liberais ou de esquerda fazendo o mesmo tipo de argumentação que eu fiz, mas sem mencionar meu nome, claro, porque isso seria tóxico. Mas por mim tudo bem, o importante é a argumentação vencer.

O senhor se tornou tóxico na esquerda?

Ah, certamente. Ainda bem que tenho "tenure" [estabilidade na carreira acadêmica; é um professor que não pode ser demitido].

O que o senhor acha do movimento em que estudantes proíbem certas pessoas de fazer palestras nas universidades por questões ideológicas? Trata-se de uma forma válida de combater o chamado discurso de ódio, ou é simplesmente censura prévia?

Nós poderíamos falar sobre combater discurso de ódio, se as pessoas realmente se concentrassem no que é genuinamente discurso de ódio. Mas a definição foi ampliada e hoje inclui qualquer coisa com a qual eu não concorde e que eu não queira ouvir.

O senhor diz que não precisamos de mais manifestantes, precisamos de mais prefeitos. Não dá para ter os dois?

Eu quis dizer que já temos manifestantes suficientes, e precisamos de mais prefeitos. A única maneira de você subir na hierarquia e virar governador é começar como prefeito ou legislador. É preciso começar a fazer a longa marcha pelas instituições.

 

Ciclo de conferências também traz Mukherjee, Weiwei e Catherine Millet

Mark Lilla fará palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento no dia 19/11, em Porto Alegre, e 21/11, em São Paulo.

A série de conferências, que começa em maio, também traz o médico Siddhartha Mukherjee, ganhador do Pulitzer, a crítica de arte Catherine Millet, o psicólogo Joshua Greene, os artistas plásticos Ai Weiwei e Vik Muniz, os escritores Leïla Slimani, Alejandro Zambra e Javier Cercas e os colunistas da Folha Luiz Felipe Pondé e Fernanda Torres.

Mais informações no site fronteiras.com e no telefone (11) 4020-2050.

Patrícia Campos Mello, 42, é repórter especial da Folha.


Cristovam Buarque: A ineficiência é injusta

Uma economia pode ser eficiente e injusta, mas uma economia ineficiente não consegue ser justa. Sem democracia os sistemas políticos não têm mecanismos de correção de erros e reorientação de rumos. Dentro do PT repeti isso inúmeras vezes e volto nisso ao assistir a programas na televisão sobre os pobres imigrantes que chegam em Roraima, vindos da Venezuela. Dois repórteres diferentes falaram da extrema pobreza dos venezuelanos, mas também de não haver analfabetos entre eles. Esse fato é a prova de que não se constrói sociedade justa sobre economia ineficiente.

Isso me lembra quando estive em Caracas, em 2006, para o lançamento da versão em espanhol de Um Livro de Perguntas, de minha autoria. Na ocasião, fui convidado pelo então presidente Hugo Chávez para a solenidade em que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) declarava a “Venezuela Território Livre do Analfabetismo”. Antes do evento, em horas livres da minha agenda, percorri as ruas do centro da cidade com um pequeno papel no qual escrevi o nome e o endereço de uma livraria, que eu mostrava a vendedores ambulantes, pedintes, pessoas que pareciam vagar nas ruas, perguntando como chegar lá. Todos foram capazes de ler o texto.

À noite, em um jantar na casa dos editores do livro, contei o resultado dessa minha experiência ao ex-ministro da Educação de Chávez, Aristóbulo Istúriz, mas disse também o que eu ouvira de diversos críticos ao chavismo: benefícios sociais esbarrariam na irresponsabilidade com as finanças públicas, nas interferências estatais na economia e no desprezo à democracia.

O primeiro compromisso de quem deseja construir uma sociedade justa é manter compromisso com a eficiência econômica: responsabilidade fiscal; não gastar mais do que o arrecadado; manter o endividamento público dentro dos limites prudenciais; não interferir, irresponsavelmente, no mercado, tabelando preços ou manipulando taxas de juros.

Em 1998, defendi que, se eleito, Lula deveria manter o ministro Malan, na Fazenda, ao menos por 100 dias. Fui muito criticado dentro do PT, mas depois o ex-presidente entendeu a importância da eficiência econômica e fez um governo responsável, com base em sua “Carta ao Povo Brasileiro”.

A partir de 2004, os governos Lula e Dilma ficaram longe do compromisso de Chávez para abolir o analfabetismo que chegou a aumentar no ano 2012. A partir de 2011, especialmente com a proximidade das eleições de 2014, apesar de muitos alertas, o governo brasileiro, assim como o da Venezuela, passou a descuidar do seu dever para sustentar uma economia eficiente. Os partidos de esquerda chegaram a afirmar que a economia era uma questão de vontade política, sem necessidade de seguir regras técnicas.

Apesar da triste realidade que vemos na Venezuela, políticos que se consideram de esquerda continuam até hoje, seja por ilusão ideológica, defendendo a ideia de que a justiça social pode ser construída sem necessidade de uma base econômica eficiente, seja por incompetência técnica, achando que a economia será eficiente mesmo que suas bases sejam desrespeitadas.

Foi essa visão que levou a Venezuela ao estado em que está, apesar de toda a riqueza petrolífera. Foi a corrupção, o descuido com as contas públicas e a ilusão com o pré-sal que levaram o Rio de Janeiro ao seu colapso. Isso estava levando o Brasil ao desastre em 2014 e 2015, e ainda pode levar se descuidarmos da regra de que “economia ineficiente não constrói justiça social”.

Se não quisermos olhar para o desastre na Venezuela, basta compararmos os resultados do populismo argentino com a responsabilidade chilena para percebermos o valor dessa regra e sua consequência: os pobres são os primeiros a pagar pelos desastres da ineficiência econômica. Eles podem até ganhar no primeiro momento, com os gastos estatais sem base sólida, com os deficits fiscais para financiar despesas sociais, com o aumento das dívidas, mas são os primeiros a pagar com o desemprego e a inflação.

Por isso, entre os venezuelanos que chegam, não há analfabetos; mas também não há ricos. Estes se beneficiam da economia eficiente e injusta nos governos ditos de direita e se protegem na economia ineficiente e demagógica nos governos ditos de esquerda.

A justiça social não se faz mais por dentro da economia ineficiente, mas usando os recursos criados pela economia eficiente para investir especialmente na construção de um sistema educacional de igual qualidade para todos, na velocidade que a responsabilidade fiscal permitir. (Correio Braziliense – 13/03/2018)

* Cristovam Buarque é senador pelo PPS-DF e professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)


Demétrio Magnoli: A esquerda diante da democracia

Boulos subordina PSOL à narrativa que nasceu como tática do PT para conservar hegemonia lulista sobre esquerda na sequência da derrota representada pelo impeachment

‘Este nosso encontro talvez fosse improvável”, sugeriu Guilherme Boulos no lançamento de sua pré-candidtura presidencial, diante de Caetano Veloso e um cortejo de celebridades. Improvável por quê? “O que nos uniu foi o avanço do conservadorismo, que nos forçou a buscar alianças novas”, explicou o candidato pelo PSOL. De acordo com a narrativa que vai sendo alinhavada pela esquerda, o Brasil já não vive numa democracia. O “golpe do impeachment” abriu uma fase de “autoritarismo” que equivale a “voltar 50 anos atrás” (portanto a 1968, segundo Boulos) e se destina a “retirar direitos” trabalhistas e previdenciários. Não é um bom caminho para enfrentar os desafios do ciclo pós-Lula.

Boulos subordina o PSOL a uma narrativa que nasceu como tática do PT para conservar a hegemonia lulista sobre a esquerda na sequência da desmoralizante derrota representada pelo impeachment. Do ponto de vista petista, a denúncia do “golpe de 2016” não passa de um expediente oportunista — e a prova disso é que o PT já anunciou a retomada da política de coligações eleitorais com os “golpistas” do MDB e do “centrão”. Mas aquilo que serve ao lulismo não serve à esquerda pós-lulista.

Taticamente, a denúncia do “autoritarismo” implica a “unidade das esquerdas” — isto é, uma frente formal (como quer Tarso Genro) ou informal (como prefere Boulos), no modelo da aliança de resistência à ditadura militar. Na prática, monta-se uma camisa de força eleitoral: após o primeiro turno, os partidos e movimentos de esquerda devem se juntar às candidaturas remanescentes do “campo da esquerda”, que tendem a ser aquelas patrocinadas pelo PT.

No caso da disputa presidencial, a esquerda fica virtualmente comprometida com o candidato ungido por Lula (seja ele Jaques Wagner, Fernando Haddad, Ciro Gomes ou outro). “Jamais vou pedir para você não ser candidato”, garantiu Lula em mensagem exibida no lançamento da campanha de Boulos, explicitando o sentido da parceria. Por essa via, o lulismo sobrevive ao ocaso político de Lula, ancorando as forças de esquerda ao redor de um cais em ruínas.

Estrategicamente, a negação da realidade é a pior das bússolas políticas. No Brasil, estão ausentes todos os traços clássicos dos regimes autoritários. As liberdades públicas não foram tocadas. A separação de poderes ficou comprovada pelo próprio impeachment e, no governo Temer, pelo fracasso do projeto de reforma previdenciária, dois lances de confronto do Congresso com o Executivo. A independência do Judiciário é atestada pelos inquéritos e denúncias contra Temer. O voto de Gilmar Mendes decidiu o habeas corpus a favor de José Dirceu. Lula está solto; Eduardo Cunha, preso. Apesar do que se propaga falsamente a partir do PT e do PSOL, os militares não são (nem poderiam ser) usados para reprimir manifestações políticas.

O Boulos que fala em retorno a 1968 — assim como as celebridades (devo dizer “intelectuais”?) que o cercam — reflete a dificuldade da esquerda pós-lulista de encarar os dilemas reais de nossa democracia bastante imperfeita. A narrativa farsesca, que soa como música aos ouvidos de convertidos, tem o efeito de isolar seus arautos numa redoma folclórica. Lula qualificou Boulos como “pessoa de muito futuro na política”. O dúbio elogio equivale a excluí-lo do presente.

A fonte de inspiração de Boulos e de boa parte do PSOL é o espanhol Podemos, fundado em 2014 sob o influxo das manifestações antiausteridade. Atraído pelo castrismo e pelo chavismo, o partido esquerdista classificou a monarquia parlamentar espanhola (o “regime de 1978”) como uma versão amenizada do franquismo. Nutrindo-se da recessão e dos escândalos de corrupção, o Podemos decolou como um míssil, chegando perto de ultrapassar o Partido Socialista para figurar como segundo partido do país. Contudo, entrou em declínio após as eleições gerais de dezembro de 2015, vitimado por seu próprio discurso de negação da democracia.

O ato desastrado inicial foi a recusa de um pacto de governo com os socialistas, o que propiciou a recondução dos conservadores ao poder. O ato seguinte foi uma aliança tácita com os nacionalistas catalães, que o conduziu a repetir o epíteto de “bloco monárquico” usado pelos separatistas contra todos os partidos constitucionalistas. A reação do eleitorado, expressa nas pesquisas de opinião, já empurrou o Podemos à condição de quarto partido do país. Farsas têm consequências — eis a lição espanhola.

Hipnotizada pelo passado, a esquerda póslulista ainda cultua a Cuba dos Castro, jura fidelidade ao regime agonizante de Nicolás Maduro, recusa-se a admitir o fiasco da política econômica dilmista, traça paralelos delirantes entre o governo Temer e o regime militar e, sobretudo, vira as costas ao diálogo democrático. Três décadas atrás, o PT rejeitou assinar a Constituição de 1988, a mesma que lhe permitiu governar o Brasil por 13 anos. Hoje, imitando o Podemos, seus presumíveis sucessores crismam todos os demais atores políticos como um “bloco autoritário”.

2018 não é 1968. Alguém precisa dizer isso a Boulos.

* Demétrio Magnoli é sociólogo