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O Estado de S. Paulo: Governo isola Ernesto Araújo em negociação com chineses por insumos de vacina

Após Maia conversar com embaixador, governo federal disse ser o único interlocutor com Pequim sobre o assunto

Camila Turtelli, Daniel Weterman e Mateus Vargas, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O chanceler Ernesto Araújo foi excluído das negociações com a China para a compra de vacinas e insumos contra a covid-19. Depois que o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), conversou nesta quarta-feira, 20, com o embaixador chinês Yang Wanming para tratar do assunto, o governo Jair Bolsonaro divulgou nota para afirmar que é “o único interlocutor oficial com a China” nas negociações.

Maia, porém, disse ter ouvido de representantes chineses que ninguém do governo federal havia procurado a embaixada até então. “Agora, nesse momento, não podemos olhar para conflitos políticos e todos que têm relação com a China podem ajudar”, acrescentou o presidente da Câmara. Quase ao mesmo tempo, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), deu entrevista na qual anunciou que o escritório de São Paulo em Xangai também está atuando nas negociações.

O Instituto Butantan afirmou nessa quarta-feira, 20, que praticamente esgotou a quantidade de insumos para fabricar a Coronavac no Brasil. O órgão ligado ao governo paulista já distribuiu o 1º lote, com seis milhões de doses, para começar a imunização no País. Além disso, tem condições de entregar só mais 4,8 milhões de unidades. Depois, depende da matéria-prima chinesa para garantir novas remessas. Doria tem feito apelos para que o Ministério das Relações Exteriores articule uma solução diplomática para desfazer o problema.

O presidente Jair Bolsonaro reuniu nesta quarta-feira ministros, no Palácio do Planalto, e pediu que todos saíssem em defesa do governo na guerra das vacinas. Apesar de gostar de Ernesto Araújo, um integrante da ala ideológica do governo Bolsonaro avalia que ele não deve conduzir qualquer tratativa com a China sobre as vacinas. Mesmo escanteado, porém, o chanceler disse que divergências políticas não foram o motivo do atraso na entrega de insumos para a produção do imunizante.

‘Relação madura’

“Temos relação madura, construtiva, muito correta, tranquila com a China”, afirmou o ministro, ao participar de uma reunião fechada com deputados, por videoconferência.

Mais tarde, foi divulgada uma nota preparada pelo Ministério das Comunicações, comandado por Fábio Faria, dizendo que “outros ministros do Governo Federal têm conversado com o Embaixador Yang Wanming”. O texto menciona que o próprio Faria e os ministros da Saúde, Eduardo Pazuello, e da Agricultura, Tereza Cristina, haviam participado de “conferência telefônica” com o embaixador.

“O Ministério das Relações Exteriores, por meio da embaixada do Brasil em Pequim, tem mantido negociações com o Governo da China”, destaca a nota. Amigo do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho “zero três” do presidente, Araújo já se referiu à covid-19 como “comunavírus” e se envolveu em polêmica com Wanming, no ano passado. 

Em novembro, por exemplo, o chanceler saiu em defesa de Eduardo, que, nas redes sociais, havia associado o governo chinês à “espionagem” por meio da tecnologia 5G. Na ocasião, o presidente chegou a elogiar Araújo pela iniciativa.

Agora, no entanto, o Palácio do Planalto considera que, diante dos problemas entre o chanceler e Wanming, outros ministros podem ficar à frente das tratativas com a embaixada. Na outra ponta, Bolsonaro escalou o titular das Comunicações para “ajudar Pazuello”. A tarefa de Faria, na presente situação, é preparar um plano na tentativa de vencer a batalha da comunicação envolvendo os episódios relativos ao coronavírus.

Apesar das pressões para demitir Pazuello, o presidente não pretende tirá-lo do cargo agora. O grupo de partidos reunidos no Centrão quer a cadeira do ministro e já chegou a apresentar até mesmo o nome de Ricardo Barros (Progressistas -PR), líder do governo na Câmara, para seu lugar. Barros já foi ministro da Saúde na gestão Temer. Mas Bolsonaro acha que remover Pazuello agora seria o mesmo que assinar um atestado de incompetência, além de dar o braço a torcer a Doria.

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Celso Lafer: ONU, 75 anos

Diplomacia do governo almeja para o nosso país a condição isolacionista de pária internacional

O multilateralismo e suas instituições têm como função criar mecanismos institucionalizados de cooperação entre os Estados. Resultam das realidades de um mundo finito e interdependente. Respondem à necessidade de lidar com desafios que não estão ao alcance das relações bilaterais e muito menos de ações unilaterais, como pandemias e mudança climática. É o que convém lembrar preliminarmente, afastando desqualificações “globalistas”, ao comemorar os 75 anos da Organização das Nações Unidas (ONU).

A ONU representa a presença da figura do terceiro no pluralismo do mundo dos Estados. Há na figura do terceiro um potencial de favorecimento do entendimento, que se revela nos conflitos bilaterais.

Os bons ofícios, a mediação, a arbitragem são exemplos da intercessão do terceiro nas soluções pacíficas de controvérsias.

A diplomacia é uma arte do terceiro, que opera no âmbito internacional no trato da governança da complexidade, negociando, persuadindo, contendo tensões, desdramatizando conflitos.

A ONU é um terceiro. Não é um terceiro acima das partes, um tertius super partes, porque não é um governo mundial. É um tertius inter partes, um terceiro entre as partes, criado pelos Estados e institucionalizado pela Carta das Nações Unidas, assinada em 26 de junho de 1945.

Tem como função ser uma instância de abrangência universal de interposição e mediação entre Estados. É dotada de personalidade jurídica própria, que não se confunde com a dos seus Estados-membros. É o que confere à ONU a sua identidade internacional. Para cumprir sua função de instância de interposição e intermediação, rege-se pelas normas da sua Carta. Guia-se pela “ideia a realizar” de ser “um centro destinado a harmonizar a ação das nações” para a consecução dos objetivos comuns dos seus propósitos – paz, segurança, relações amistosas e cooperação internacional.

Os propósitos da ONU e suas realizações foram reafirmados na resolução da Assembleia-Geral de 21 de setembro deste ano, que registra o muito que precisa ser feito, apontando que os grandes desafios do presente são interconectados e interdependentes. Por isso só podem ser enfrentados por meio de um multilateralismo revigorado e pelo reforço do pilar da cooperação internacional.

Do espaço da ONU tem se valido a diplomacia brasileira no correr das décadas, exercendo com competência a arte diplomática do terceiro para articular, na interação com os Estados que integram a sociedade internacional, a voz própria e os interesses gerais do Brasil na dinâmica do funcionamento do mundo.

O multilateralismo vem propiciando soft power para o nosso país, que agrega substância à diplomacia bilateral brasileira. É o que comprovam os estudos acadêmicos e a experiência dos que viveram “de dentro” a responsabilidade de representar o Brasil em instâncias multilaterais.

É o que não percebem a diplomacia do governo Bolsonaro e a vocação negacionista de seu chanceler Ernesto Araújo, que almeja para o nosso país a condição isolacionista de pária internacional.

A figura de secretário-geral corporifica a identidade do tertius inter partes. Ele é um agente administrativo, mas também um ator político, proveniente de seu poder de iniciativa que lhe dão a Carta e a prática construída por sucessivos secretários-gerais, cabendo destacar o papel inaugural que teve Dag Hammarskjold.

Ele, aliás, dizia que a missão da ONU não era a de elevar a humanidade ao céu, mas salvá-la do inferno. Daí a responsabilidade do secretário-geral de promover iniciativas de cooperação que façam da ONU um tertius ativo no encaminhamento dos grandes problemas internacionais.

Muito tem feito, em condições difíceis, o atual secretário-geral, António Guterres, com criatividade e determinação no exercício de suas funções, para as quais vem mobilizando a opinião pública e a sociedade em prol de um mundo mais sustentável e menos precário.

Concluo lembrando conhecida elaboração de Albert O. Hirschman sobre o papel da voz, da saída e da lealdade na dinâmica da vida de organizações. A lealdade numa instituição equilibra a voz e a saída. A saída pressupõe a existência de alternativas, no caso a alternativa ao multilateralismo e suas instituições, como a ONU. Eu não creio, dada a natureza da realidade internacional, que seja possível conviver com os unilateralismos de um Estado de natureza hobbesiana e sua propensão à guerra de todos contra todos. “Somos do mundo, e não apenas estamos no mundo”, como observa Hannah Arendt.

Daí a relevância da lealdade à ONU, que é uma característica histórica da diplomacia brasileira.

Quanto à voz, não faz sentido o monólogo da discussão contra, com a qual se compraz a diplomacia de confronto do governo Bolsonaro, mas sim o diálogo de discussão com os outros integrantes da comunidade internacional, tendo como propósito encontrar interesses comuns e compartilháveis, cujos caminhos o secretário Guterres vem desbravando de maneira corajosa e pertinente.

*Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Monica Bergamo: Ex-chanceleres apoiam Maia e condenam 'utilização espúria de solo nacional' pelos EUA

FHC encabeça a lista de ex-comandantes do Itamaraty que repudiam visita de secretário de Estado norte-americano a Roraima

Os seis ex-chanceleres brasileiros vivos assinaram uma nota de apoio ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, em que igualmente repudiam a visita do secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, às instalações da Operação Acolhida, em Roraima, na fronteira com a Venezuela.

"Condenamos a utilização espúria do solo nacional por um país estrangeiro como plataforma de provocação e hostilização a uma nação vizinha", afirmam os ex-chanceleres na nota, afirmando que Rodrigo Maia foi "intérprete dos sentimentos do povo brasileiro".

Na sexta (18), Maia afirmou que a ida de Mike Pompeo, às instalações da Operação Acolhida, que recebe venezuelanos que migraram para o Brasil, é uma "afronta às tradições de autonomia e altivez" da política externa brasileira.

Em nota, o presidente da Câmara disse que a visita, a apenas 46 dias das eleições nos Estados Unidos, "não condiz com a boa prática diplomática" e internacional. Pompeo é secretário de estado de Donald Trump, que busca o segundo mandato como presidente dos EUA.

Em resposta, o chanceler brasileiro Ernesto Araújo disse que Maia se baseia em "informações equivocada" e que não é possível ignorar o "sofrimento do povo venezuelano".

A nota de apoio a Maia é assinada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que foi chanceler no governo de Itamar Franco entre outubro de 1992 e maio de 1993, e pelos ex-chanceleres Francisco Rezek [governo Collor], Celso Lafer [governos Collor e FHC], Celso Amorim [governos Itamar Franco e Lula], José Serra e Aloysio Nunes Ferreira [governo Temer].

Endossam ainda o documento o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, que é diplomata e foi embaixador em Washington, e Hussein Kallout, ex-secretário de Assuntos Estratégicos no governo de Michel Temer.

No texto, eles dizem ainda que, "de igual forma que presidente da Câmara dos Deputados", reafirmam que a Constituição estabelece os princípios pelos quais o Brasil deve guiar suas relações internacionais: independência nacional, autodetermianção dos povos, não-intervenção e defesa da paz.

"Conforme salientado na nota do presidente da Câmara, temos a obrigação de zelar pela estabilidade das fronteiras e o convívio pacífico e respeitoso com os vizinhos, pilares da soberania e da defesa", diz ainda o texto.

Leia, abaixo, a íntegra da nota

Responsáveis pelas relações internacionais do Brasil em todos os governos democráticos desde o fim da ditadura militar, os signatários se congratulam com o Deputado Rodrigo Maia, Presidente da Câmara dos Deputados, pela Nota de 18 de setembro, pela qual repudia a visita do Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, a instalações da Operação Acolhida, em Roraima, junto à fronteira com a Venezuela.

Na qualidade de Presidente do órgão supremo da vontade popular, o Deputado Rodrigo Maia foi o intérprete dos sentimentos do povo brasileiro ao constatar que tal visita, “no momento em que faltam apenas 46 dias para a eleição presidencial norte-americana, não condiz com a boa prática diplomática internacional e afronta as tradições de autonomia e altivez de nossas políticas externa e de defesa”.

De igual forma que o Presidente da Câmara dos Deputados, os signatários se sentem no dever de reafirmar o disposto no Artigo 4º da Constituição Federal, em especial os seguintes princípios pelos quais o Brasil deve guiar suas relações internacionais: (I) Independência nacional; (III) Autodeterminação dos povos; (IV) Não-intervenção e (V) Defesa da Paz.

Conforme salientado na Nota do Presidente da Câmara, temos a obrigação de zelar pela estabilidade das fronteiras e o convívio pacífico e respeitoso com os vizinhos, pilares da soberania e da defesa. Nesse sentido, condenamos a utilização espúria do solo nacional por um país estrangeiro como plataforma de provocação e hostilidade a uma nação vizinha.

Lembramos que representantes eleitos do povo de Roraima como o Senador Telmário Mota vêm repetidamente chamando a atenção para os prejuízos de toda a ordem causados às populações fronteiriças brasileiras por ações extremas do Itamaraty em relação à Venezuela, algumas das quais objetos de suspensão pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal.

Finalmente, fazemos votos para que, dando sequência à Nota do Presidente Rodrigo Maia, as duas Casas do Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, guardiões da Constituição de 1988, exerçam com plenitude as atribuições constitucionais de velar para que a política internacional do Brasil obedeça rigorosamente no espírito e na letra aos princípios estatuídos no Artigo 4º da Constituição Federal.


Maria Hermínia Tavares: Ernesto Araujo, em suma, espalha caos e sombras

Percorrer o twitter do ministro das Relações Exteriores é como entrar nos espaços retratados nas gravuras da série Cárceres do veneziano Giovanni Piranesi

Percorrer o twitter do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo, é como entrar nos espaços retratados nas gravuras da série “Cárceres” do veneziano Giovanni Piranesi (1720-1778). Pouca luz, ruínas, objetos estranhos pendurados no teto, escadas labirínticas que não levam a parte alguma. Em suma, caos e sombras.

De alguns tuítes emana um fartum conspiratório: “Infelizmente, eles não vão parar. Felizmente, nós também não.” Outros são tão presunçosos quanto vazios: “Uma sociedade não pode renunciar à ordem do espírito sem destruir-se a si mesma”. Entre uma que outra adulação ao chefe Bolsonaro, o tedioso registro de reuniões protocolares rivaliza com a rejeição de um dos pilares da ordem internacional contemporânea: “No mundo pós-Covid, precisamos de ações de cada país mais do que de ‘multilateralismo’”.

Ele não, mas de há muito os observadores conhecem a crescente importância de problemas que, por ultrapassar as fronteiras nacionais, não podem ser tratados apenas dentro de seus limites: intensificação do comércio e dos fluxos financeiros entre países; cadeias de produção regionalmente dispersas; ondas migratórias; aquecimento global; contrabando; tráfico de armas, drogas e pessoas —e, por fim, as pandemias. Sua existência explica a multiplicação dos instrumentos multilaterais, criados, lá atrás, para assegurar a paz. Sua complexidade e os conflitos entre desigualdade de poder das nações e regras da cooperação internacional dão conta da crise presente do multilateralismo.

Hoje o destino das instituições multilaterais depende de decisões tomadas em Washington e em Pequim. O Brasil pesa muito pouco nesta briga de cachorro grande, embora tenha trunfos importantes nos fóruns onde se discute o destino sustentável do planeta ou o comércio de produtos agrícolas.

Mas há outro espaço de ação internacional onde o Brasil poderia contar, não fosse a miopia nativista dos —vá lá a palavra— condutores de nossa política externa: a América Latina em geral e o espaço sul-americano em especial. O sumiço político do Brasil do seu entorno ajuda a fragmentar a região em grau raras vezes visto. Dividida, ela não conseguirá impedir, por exemplo, que a presidência do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) lhe escape. Carente de mecanismos atuantes de consulta e cooperação, não logra oferecer solução própria para a tragédia venezuelana.

Hoje cada nação combate a seu modo o novo coronavírus. Se assim continuarem, quando vier a retomada, terão perdido oportunidade única de ter voz ativa nos movimentos a caminho de mudança da ordem internacional.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.