Equador

Mario Vargas Llosa: A derrota de Correa

 

Mais cedo que tarde, como o Equador de hoje, a Venezuela também sairá do pesadelo

No plebiscito realizado no Equador, dia 4, não foi derrotado apenas o ex-presidente Rafael Correa, que não poderá se candidatar novamente à primeira magistratura do país, mas também o chavismo e sua criação ideológica, o “socialismo do século 21”, da qual Correa foi um promotor entusiasta.

Durante os dez anos em que esteve no governo, o exuberante demagogo que alardeava seu “socialismo cristão” foi, como o comandante Daniel Ortega, na Nicarágua, Evo Morales, na Bolívia, e Fidel e Raúl Castro, em Cuba, um propagandista tenaz das políticas que destruíram a democracia venezuelana e a transformaram numa ditadura devastada pela ruína econômica, a violência repressora e a inflação.

Por sorte dos equatorianos ingênuos que o levaram ao poder, Correa não imitou todas as políticas chavistas de nacionalização de empresas, redução drástica do setor privado, inchaço do setor estatal, corroído por incompetência e roubo, e perseguição sistemática à imprensa livre e aos críticos - embora tenha golpeado de várias maneiras os empresários privados e, entre outras ações antidemocráticas, tenha criado, em 2013, uma vergonhosa Lei Orgânica da Comunicação, condenada por todas as associações internacionais de imprensa, que equivalia a uma forma de censura ao dissidente e ao crítico e deixava suspensa uma espada de Dâmocles sobre os meios de comunicação independentes. Apesar de essa lei não ser mais aplicada, ela ainda não foi revogada.

De resto, como costuma ocorrer sempre que caudilhos se instalam no poder, a corrupção também se alastrou no Equador nos anos de Correa. Apenas encerrado o plebiscito, ele teve de depor ante a Promotoria de Guayaquil, que investiga os contratos de venda antecipada de petróleo assinados pelo Equador com China e Tailândia, os quais, segundo a Controladoria-Geral do Estado, causaram graves prejuízos ao Tesouro.

Rafael Correa sentia-se muito seguro, acreditando que seu sucessor, Lenín Moreno, que havia sido seu vice-presidente, protegeria sua retaguarda. Mas Moreno nunca concordou com a reforma constitucional promovida por Correa para - à moda de Evo e Ortega - se reeleger quantas vezes quisesse.

Desde que assumiu o poder, Moreno procurou acalmar o ambiente político e propiciar uma coexistência pacífica entre as diversas forças e partidos, visando a um consenso que permitisse reformas e progresso. Essa tranquilidade, da qual se orgulha, contrasta radicalmente com o estado de sobressalto e convulsão no qual as arengas de seu antecessor mantinham o país. Não é de se estranhar que o conflito de temperamentos, ao lado das diferenças políticas, provocasse a ruptura entre Correa e Moreno.

O presidente decidiu, sob critérios democráticos, convocar um plebiscito com várias perguntas para que o povo equatoriano se pronunciasse sobre a reeleição. Os resultados foram meridianamente claros. Uma maioria inequívoca se declarou contra e uma maioria ainda mais contundente vetou o acesso a cargos do governo de pessoas envolvidas em corrupção.

Correa, que havia voltado da Bélgica para defender suas “reformas”, fez campanha por um mês inteiro pelo país, o que serviu para comprovar, pela chuva de insultos, pedras e ovos com que foi recebido em muitos lugares, a queda radical da popularidade que teve em outros tempos - em consequência, ao que parece, de um despertar do povo equatoriano para a liberdade.

É preciso comemorar esse processo, que ao lado do que ocorreu na Argentina e da mobilização popular no Brasil contra a corrupção e pela regeneração democrática, assinala uma tendência muito positiva em toda a América Latina em favor da depuração e fortalecimento das instituições.

A outra face da moeda é sem dúvida a Venezuela. Com o surpreendente apoio do ex-primeiro-ministro espanhol Rodríguez Zapatero, que sem corar de vergonha acaba de exortar a oposição a Nicolás Maduro a participar da farsa eleitoral de abril - ou seja, a pôr no pescoço a corda com que será enforcada -, o filho putativo de Hugo Chávez espera se reeleger presidente de um país em que pelo menos três quartos dos cidadãos fazem verdadeiros milagres para sobreviver a uma penúria cotidiana na qual não há comida, remédios, trabalho ou esperança, salvo para a máfia de demagogos e narcotraficantes encastelada no poder.

Para ganhar essa eleição, Maduro precisará contrariar violentamente a vontade popular. Tomara que a heroica e maltratada oposição venezuelana não se preste a dar ao pleito uma aparência de legitimidade participando dele. Nas condições atuais, não existe nenhuma possibilidade de uma eleição legítima. A comunidade democrática internacional deveria anunciar, desde já, que não reconhecerá seus resultados.

Já o plebiscito equatoriano deixa também entrever, no governo de Lenín Moreno, a esperança de que, abandonando o servil apoio que o governo de Rafael Correa deu à ditadura de Chávez e de Maduro, o Equador se una ao chamado Grupo de Lima, que há algum tempo vem mobilizando os países democráticos de todo o mundo para continuar isolando e pressionando a Venezuela para que seu governo aceite eleições verdadeiras, sob controle das Nações Unidas e da OEA, com observadores internacionais independentes. Só assim colocaremos fim a uma das mais ineptas ditaduras da história da América Latina, que em poucos anos conseguiu transformar um dos países mais ricos do mundo em um dos mais pobres.

O ocorrido na Venezuela ficará como um dos exemplos mais trágicos de suicídio político de uma sociedade. Durante 40 anos, a terra de Bolívar teve uma democracia com eleições livres nas quais eram renovados os governos e combatia resolutamente as ditaduras que naqueles anos assolavam o restante do continente. Embora nesse período houvesse corrupção, a sociedade venezuelana prosperou mais que nenhuma outra no continente.

Chávez foi um militar que traiu sua Constituição e seu Exército, sendo por este derrotado em sua tentativa golpista. Em lugar de ser indultado pela cegueira do presidente Rafael Caldera, deveria ter sido julgado e condenado pelos tribunais. Seria outra a realidade da Venezuela hoje se o povo venezuelano não se tivesse deixado seduzir pelo canto de sereia do caudilho revolucionário.

No entanto, pelo menos, ele soube reagir e agora luta com bravura pela democracia. Mais cedo que tarde, como o Equador de hoje, a Venezuela sairá do pesadelo. Tomara que aprenda a lição e esta seja a última ditadura de sua história. / Tradução de Roberto Muniz

*Mario Vargas Llosa é prêmio Nobel de Literatura


Roberto Fendt: A Venezuela e a ‘Tríplice Aliança’

Quando o assunto da presidência rotativa do Mercosul parecia já fora de pauta e com solução encaminhada, em entrevista nesta semana o presidente Rafael Correa, do Equador, saiu-se com esta: “Você pode gostar ou não do governo da Venezuela, mas a presidência rotativa cabe à Venezuela, se é por ordem alfabética”, afirmou. E completou: “É preciso cumprir as regras do jogo”. Sem a virulência do chanceler venezuelano, as palavras de Correa indiretamente endossam a posição do chanceler venezuelano. Segundo o chanceler, Argentina, Brasil e Paraguai formaram uma “tríplice aliança” com o objetivo de “tomar de assalto” a presidência do Mercosul. Essa suposta entidade sinistra teria por objetivo “reeditar uma espécie de Operação Condor contra a Venezuela, hostilizando e criminalizando seu modelo de desenvolvimento e democracia”. Curiosa retórica.

Na Venezuela de hoje não sobrevivem nem o desenvolvimento nem a democracia. O país terminou 2015 com uma queda do PIB de 10%, com inflação de 275%, reservas internacionais em queda e com escassez generalizada de alimentos e outros bens de consumo. Estimativas otimistas projetam uma queda adicional do PIB de 8% e inflação de 720% em 2016. É desnecessário elaborar sobre os ataques às liberdades individuais dos venezuelanos, tal a extensão desses atentados e seu amplo conhecimento em todo o continente. Não pairam dúvidas entre as pessoas de boa-fé de que o presidente Nicolás Maduro não tem condições para assegurar a governança do Mercosul.

Há várias razões para essa conclusão. Do ponto de vista estritamente institucional, é promissor que Brasil, Argentina e Paraguai façam prevalecer o bom senso sobre o alfabeto na questão da presidência rotativa do Mercosul. De fato, como afirmou Correa, é preciso cumprir as regras do jogo. Cabe perguntar que regras são essas. A mais básica delas é a de que a governança do bloco comercial cabe rotativamente a seus membros plenos – os países signatários que compatibilizaram dentro dos prazos acordados nos protocolos de adesão a sua legislação comercial ao ordenamento comum. A Venezuela teve quatro anos para fazê-lo e o prazo vence no ano em curso.

Em momento algum demonstrou interesse em levar adiante esse projeto. Nada indica que poderá fazê-lo nos próximos quatro meses. A rigor, questiona-se se a Venezuela deveria ou não fazer parte do bloco comercial porque sua entrada foi efetuada contra a oposição do Paraguai, país fundador do Mercosul. Sua adesão como Estado-parte resultou de uma manobra espúria, obtida com a suspensão do Paraguai em 2012, país que se opunha a seu ingresso.

As desavenças, é claro, não estão restritas a uma questão alfabética de a quem cabe a presidência semestral rotativa do Mercosul. Trata-se de questões muito mais relevantes que abrangem desde o tamanho do Estado nas economias à escolha do regime comercial e a inserção no mundo globalizado, com todas as suas consequências para o desenvolvimento econômico. Nos últimos 15 anos a opção foi em favor de um Mercosul bolivariano, introspectivo, protecionista e com o protagonismo da política em detrimento dos aspectos de integração econômica.

Está agora começando a questionar- se esse modelo, saudoso que é dos tempos áureos da substituição de importações da década de 1950. Os governos do Brasil, Argentina e Paraguai enviaram, com a rejeição da presidência pro tempore venezuelana do Mercosul, uma clara mensagem de que o vento está começando a soprar em outra direção, a da inserção competitiva dos países do Mercosul na economia global.

Para que esses três países formem uma “tríplice aliança”, será necessário que a sustentem no tripé rejeição da autarquia econômica, do protecionismo como instrumento de desenvolvimento e integração competitiva na economia mundial. Quando isso conseguirmos, teremos feito, juntos, uma tríplice aliança do bem, para proveito dos cidadãos de nossos países. (O Estado de S. Paulo – 14/08/2016)


Fonte: pps.org.br